sexta-feira, maio 03, 2024

Nêgo Lúcio (L.F.Riesemberg)

 


Uma das frases que mais ouço quando pergunto sobre ele é: 

“Eu morria de medo do Nêgo Lúcio”. 

Se há algum mito nesta cidade, cuja imagem ficou gravada na mente das pessoas, é ele. Um preto forte, mal encarado, barbudo e de olhos vermelhos, que perambulava pela cidade e dormia na beira do Iguaçu. Eu mesmo nunca o vi, pois já tinha sumido quando eu era criança, mas criei uma imagem de seu porte robusto e amedrontador, graças às ameaças que sempre ouvia: “Cuidado que o Nêgo Lúcio te pega”.

Este medo, que se espalhou como fogo em capim seco, parece ter vindo do fato desse homem, além de preto e miserável, ter cometido um assassinato. Para mim não ficou claro quem ou porque ele matou, mas as pessoas com quem falo são quase unânimes em dizer que a vítima atendia pelo nome de Juvenal e que o crime aconteceu na beira do rio, tendo uma faca ou facão como arma.

Antes, Lúcio fora marinheiro dos vapores no rio Iguaçu. Com o fim da navegação acabou virando chapa, ajudando a descarregar caminhões junto com outros homens. “Bebiam que Deus o livre. Diziam que era pra firmar o pulso”, me contaram.

Problemas mentais também eram nele observados, e a combinação com miséria, alcoolismo e preconceito pode ter levado ao trágico ato. Há quem fale que o tal Juvenal o provocava muito. Mas há quem diga que o preto era mesmo maldoso. “Matei um porco lá. Nem ligue, que era só um porco”, ele teria dito após o crime.  

Tem um piá na cidade que ganhou o apelido de “Churrasco”. Ou “Churrasco de Nêgo Lúcio”, porque este amarrou o menino, fez uma fogueira e disse que ia queimá-lo. Não deixaram, é claro.

“Ele vivia dizendo que um dia ia matar um, e matou mesmo”.

Quanto mais pergunto, mais as histórias me confundem. Algumas o descrevendo como um homem doente da cabeça e injustiçado socialmente, que só matou em legítima defesa. Outras reforçam este lado psicótico e amedrontador.

Me contaram que ele ia na hora do almoço buscar um prato de comida ali na Gilda e na Izolde Maciel, e do lado da casa tinha um terreno baldio, onde as crianças brincavam. Ele sempre ia por ali, pegar o prato de comida. A mulher com quem converso conta que, quando menina, subiu na cerca para ver o preto almoçar. Quando foi descer, o vestido enroscou e ela ficou pendurada. “O coitado veio tentar me ajudar, pra me tirar da cerca, mas eu fiz um escândalo tão grande que a vizinhança inteira saiu pra ver. Ele não fez nada, só queria me ajudar, mas eu gritei tanto, esperneei tanto, que todo mundo correu pra ver o que estava acontecendo”.

Essa onda de pânico pode ter contribuído para o seu fim. Não descobri se ele chegou a ser preso pelo crime, nem se o mataram. Mas seria impossível continuar vivendo em uma cidade pequena sendo tão temido. Temor este que sobreviveu por muito tempo e, até hoje, ainda habita as memórias de uma geração.

E, só por precaução, cuidado, que o Nêgo Lúcio te pega.

Dino (L.F.Riesemberg)


Na minha remota infância, lembro de constantemente encontrar pelas ruas de São Mateus um negro forte, de olhos bondosos e roupas rasgadas, carregando um saco nas costas e uma garrafa na mão. Era onipresente, deitado na calçada ou caminhando muito lentamente com suas botas sete léguas, na companhia de um cachorro. Só mais tarde fui saber que seu nome era Dino, irmão do Borraio, outra figura folclórica da cidade, este dado a corridas.

Dino fazia parte do cenário. Quando criança eu tinha pavor dele, não sei porque. Talvez tenham me colocado medo, por ser preto e pobre, como se isso fosse alguma ameaça. Mas ele era inofensivo, sempre andando com passos muito lentos e um sorriso no olhar. Certa vez passei perto e ele me cumprimentou com um “bão?” e eu respondi: “bão”.

Fui crescendo sem me dar conta de que um dia ele desapareceria, e foi o que aconteceu. Na última vez que o vi ele estava olhando dentro das latas de lixo perto da igreja, à noite. Eu estava com a metade de um x-salada que não tinha aguentado comer no Luizinho e levava para casa em uma sacola. Perguntei a ele: “Tá com fome?”. Ele disse que sim e agradeceu, sempre com o olhar bondoso e humilde, seguindo caminho pela praça escura.

Por muitos anos, sem nunca mais vê-lo, acreditei que havia encontrado um fim trágico como o irmão, e sentia falta de sua presença marcante pelas ruas. Porém, querendo saber que fim o tinha levado, o descobri vivo e bem, com noventa anos. “Tô véio, né? Até me perdi na idade”, falou.

Fui até a Vila Bom Jesus e passei uma tarde de sábado conversando com ele, a irmã e uma sobrinha. Me narraram muitas histórias boas, que um dia preciso contar.

Ele só tinha sumido porque uma moto bateu e lhe quebrou as duas pernas, numa noite de Natal. Agora estava bem, mas não saía mais de casa. Também não tomava mais os goles de antes: só mascava fumo, de vez em quando. Lembrou de quando andava com os mendigos, de quando carpia lotes em troca de moedas. Teve um tempo que andava com um papagaio no ombro, mas roubaram. E aquele cachorrinho, que companheiro! “Mas tudo acaba, né?”.

Não, não gostava de correr igual o irmão. Mas teve um tempo que tinha um cavalo e até carroça. Saí de lá satisfeito por ter encontrado, vivo e bem, um personagem folclórico que habitava minhas memórias. “Mas tudo termina, né? Tá louco!”, disse.

Não voltei, e não sei se ainda está lá. Mas sei que vai estar sempre aqui, dentro de mim.

quarta-feira, maio 01, 2024

Las Sesiones (L.F.Riesemberg)

Durante mucho tiempo, cuando le preguntaban quién era su ídolo en el cine, Jorge respondía con calma: Ricardo Darín. Y siempre escuchaba, paciente, que nunca habían oído ese nombre. Nunca nadie veía películas argentinas.

Por lo tanto, fue con sorpresa que escuchó, de la señora Amélia, que "El Hijo de la Novia" se proyectaría en una sesión especial, a medianoche, en una sala alternativa de la ciudad. No dejó para después y se unió a la conversación ajena, reafirmando su amor por el actor argentino, deseando saber más detalles sobre la proyección.

"Finalmente un joven con buen gusto", exclamó la viuda. Tenía ochenta años, pero la sonrisa juvenil y el brillo en los ojos la conservaban con una belleza discreta. Quedaron en ir juntos. Sería la primera vez que Jorge vería esa película en pantalla grande. Amélia ya había tenido esa oportunidad en el momento del estreno, pero no la de disfrutar el momento con una compañía tan agradable, según sus propias palabras.

Antes de que comenzara la proyección, el tema era, naturalmente, las películas del artista que tanto amaban. Solo no pudieron decidir cuál era la mejor. Para Jorge, "El Secreto de sus Ojos". Para Amélia, "El Mismo Amor, La Misma Lluvia". Pero ambos estaban de acuerdo en que lo que más les gustaba era el mensaje que esas historias dejaban, de que la vida tiene complicaciones, pero no debemos dejar de lado la ternura. "Mira, Jorge, la película ya va a empezar".

En la oscuridad de la proyección, al igual que los pocos espectadores, ambos rieron y derramaron lágrimas ante la conmovedora belleza cotidiana de esas escenas. Se reconocían allí, representados por un actor que hablaba por ellos. Y Jorge se dio cuenta de que, extrañamente, amaba a esa mujer sentada a su lado.

Cuando los créditos subieron y se encendió la luz, volvió a la realidad al ver la mano de su compañera en el apoyabrazos de la butaca, cuyas marcas delataban el tiempo que los separaba. Caminaron largamente en silencio y luego se despidieron, hasta que Jorge, inspirado por el personaje de la película, venció sus miedos e la invitó a ver otra, en su casa o en la de ella, en una fecha próxima.

Solo, de cierta manera abandonada por los familiares vivos, Amélia sonrió y aceptó la invitación. El encuentro se concretó días después, en la residencia de la señora, con la proyección de "El Club de la Luna", que él había llevado en disco.

Lado a lado en el sofá, la pareja exhalaba un sentimiento que no era correspondido por palabras o miradas, sino por las sonrisas y los suspiros que soltaban, al unísono, durante la película. Una vez más, para Jorge, esos ciento veinte minutos a media luz señalaban una comunión de almas, sobre la cual no se atrevería a hablar, so pena de romper el encanto.

Comenzaron a encontrarse todas las noches de viernes, para ver cada vez una película diferente del adorado actor argentino. Y ese amor platónico duraba mientras duraba la película. Nada necesitaba ser dicho. La emoción casi silenciosa de esas sesiones decía más que cualquier palabra. Y así pasaron los viernes, hasta que se vio la última película.

"Jorge, quiero decir que estos momentos que pasamos juntos fueron muy especiales", dijo ella, antes de despedirse. "Sepa que, gracias a nuestros encuentros, debo haber prolongado un poco mis días".

"Qué va, doña Amélia. La señora vivirá mucho aún. Para que podamos ver las nuevas películas de Ricardo Darín", dijo él, emocionado. Y, sin saber qué más decir, recibió de regalo el collar que ella sacó de su cuello. "Para que no me olvide".

Durante mucho tiempo, el joven miró la foto de Amélia joven, dentro del dije. Aún más después de enterarse de que ella había partido, serenamente mientras dormía, en una fría noche de invierno.

Con una nostalgia devastadora, el joven veía solitariamente las mismas películas, sin encontrar a otra persona con quien compartir las risas y los llantos de esas escenas.

Sin embargo, al enterarse de que la nueva película del actor se estrenaría pronto en Argentina, hizo lo que su corazón le indicaba: juntó sus ahorros y fue allí, a ver el estreno. Si el espíritu de su amada pudiera elegir dónde estar, seguro sería allí.

Ya sentado en la primera fila, esperando el inicio de la película, Jorge escucha una voz masculina pedir permiso para sentarse a su lado. Lo reconoce, no sabe de dónde, y mira, con el rabillo de sus ojos. Imposible creer en mejor suerte. Era él mismo, muy simpático, en carne y hueso, Ricardo Darín, listo para verse a sí mismo en la pantalla. "Muchísimas, muchísimas gracias por todo", fue lo que Jorge pensó en decirle, pero las luces ya se estaban apagando. "¡Qué no daría para que Amélia estuviera aquí conmigo!".

Y, en el asiento del otro lado, una hermosa joven sonrió dulcemente. "Mira, Jorge, la película ya va a empezar".

segunda-feira, abril 01, 2024

Caçando discos-voadores (L.F.Riesemberg)

 


Certa vez meus pais chegaram de viagem estupefatos. Era uma agradável noite de sexta, em pleno Verão, e eles vinham da capital – um trajeto de duas horas e meia, no máximo, que eles faziam cerca de uma vez por mês. No carro ainda estavam minha irmã, meu tio e uma vizinha, então todos foram testemunhas. Era normal chegarem cansados, porém comentando animadamente algo de “extraordinário” que ocorrera em sua rápida visita à cidade grande. Qualquer coisa podia ser motivo de espanto para pacatos moradores de uma cidadezinha do interior. Porém, daquela vez, era algo realmente grande: minha família relatava, com toda a seriedade, ter presenciado a aparição de um óvni.

Eu quis saber todos os detalhes, é claro, e foi incrível poder ouvir as diferentes versões de todos os passageiros. Em resumo, o que ouvi foi que já no terço final da viagem, pouco depois de anoitecer, minha irmã, no banco de trás do carro, notou pela janela uma luz no céu e brincou, dizendo estar vendo um disco-voador. Com a insistência do objeto luminoso que viajava acompanhando o veículo, todos os ocupantes se interessaram e passaram a observar a estranha luz em movimento. Meu pai, que dirigia e, portanto, não podia ficar olhando, resolveu parar no acostamento e também viu, com mais detalhes, o estranho objeto voador.

É claro que várias teorias tentaram explicar o fenômeno, como a possibilidade de ser um avião (não era, pois estes sempre voam em linha reta, e aquele fazia movimentos de sobe e desce). De volta à estrada, em certo momento todos viram a luz mudar de direção e desaparecer de vista em altíssima velocidade, deixando um rastro branco que logo se dissipou. Até a hora de ir para a cama eu os ouvi contando essa história muitas e muitas vezes, e ninguém desmentiu ou duvidou das próprias palavras.

Naquela noite ninguém conseguiu dormir direito, principalmente eu, lamentando não estar presente no carro. Sempre me fascinaram todos os tipos de mistérios, e a vida em outros planetas é um dos que mais me intrigam. Eu daria tudo para ter um contato com um ser extraterrestre, ou pelo menos avistar uma nave espacial, como, aparentemente, toda a minha família o fez naquele dia.

Excitados com o testemunho e sentindo o meu desapontamento por não ter presenciado, meus pais decidiram, na noite seguinte, me levar até o local do avistamento. Rumamos sem tirar os olhos do céu, que estava apinhado de estrelas, e paramos em um campo próximo à rodovia, debaixo de araucárias, aguardando novo espetáculo.

Ficamos lá por mais de uma hora, meio temerosos do que podia ocorrer, conversando sobre aquele que era um dos maiores mistérios do universo. Somos tão pequenos e há tanto espaço, tantos planetas... Faria algum sentido se fôssemos os únicos seres inteligentes do universo? Pensávamos nessas ideias enquanto aguardávamos que um disco-voador surgisse no céu e... quem sabe o que aconteceria depois?

Não vimos nada. Não apareceu qualquer sinal de luz ou nave no céu, e voltamos para casa frustrados. Talvez estivéssemos aliviados, por estarmos a salvo após nos colocarmos em possível risco diante do desconhecido. Mas a verdade é que aquela noite em que minha família viu um objeto voador não-identificado nos marcou profundamente e é um assunto que sempre surge em uma roda de conversa numa noite estrelada.

Às vezes estamos reunidos, olhando para o céu à procura de qualquer coisa que nos maravilhe, e alguém sempre irá lembrar do ocorrido. Desde então nunca nenhum de nós viu nada igual, mas a remota possibilidade de ver novamente já nos manteve tanto tempo com os olhos voltados para cima, que já testemunhamos, em conjunto, inúmeros outros fenômenos maravilhosos, verdadeiros presentes da Criação para nossas insignificantes vidinhas aqui embaixo. Chuvas de meteoros, satélites, cometas, constelações e até a simples passagem de um avião, com suas luzes piscando, são cenas para gravar em nossas retinas. O silêncio da noite, em uma calma noite numa cidade pequena, permite que até mesmo possamos ouvir o som de uma solitária aeronave, a quilômetros de distância acima de nós. E é uma maravilha, em uma noite gloriosa, testemunhar, ao lado de pessoas que você ama, qualquer um desses pequenos milagres.

Se veremos, algum dia, algo realmente espantoso? Tenho certeza que sim. Até lá, sempre teremos esses encontros incríveis, olhando o céu noturno, conversando sobre o Cosmos e o sentido da vida, nos sentindo pequeninos diante de algo tão imenso e maravilhoso, eternamente renovando a nossa infinita capacidade de assombro.

quarta-feira, março 27, 2024

O Último Dia (L.F. Riesemberg)

 


Cheguei ao hospital por volta das sete e, do alto de sua cama, ele sorriu ao me ver entrar. Emagrecido, parecia menor sob aquele amontoado de cobertas, vestindo um gorro grande demais para a cabeça. Meu pai era apenas uma sombra do homem forte que sempre fora, mas ainda demonstrava uma resiliência desconcertante, nem sequer pensando em desanimar.

O cumprimentei com um beijo no rosto e sentei na poltrona ao lado. Ele estava animado por ter passado uma noite tranquila, o que significava simplesmente que não havia tido a necessidade de ser transferido para a UTI, como acontecera algumas vezes no último mês. Sua saúde piorara drasticamente desde o início daquele ano, mas já havia sido internado tantas vezes, e melhorado de emergências tão assustadoras, que nada mais nos angustiava tanto. Naquele momento ele estava se sentindo bem, e era isso que importava.

Ele reclamou de frio, o que foi amenizado ligando o aquecedor, e depois o ajudei com o café da manhã, dando colheradas de mingau de aveia em sua boca. Ligamos a tv, e estava passando um programa de sobrevivência na neve, o que garantiu nossa atenção por alguns minutos, até que a chegada de duas enfermeiras interrompeu o programa. Era hora do banho.

Elas despiram meu pai, apesar de seus protestos contra o frio, e ali mesmo, no leito, o higienizaram com lenços umedecidos e cremes. Em seguida trocaram sua fralda, visão que sempre me fazia me sentir estranho, por mais que eu já tivesse presenciado aquela cena outras vezes. Parecia que ali era eu o homem, e meu pai a criança, e isso não me soava nada natural. Apesar disso, meu pai estava muito brincalhão e interagiu alegremente com as moças, fazendo piadas e arrancando gargalhadas de todos nós. Por fim, ajudei-as a trocar os lençóis, já que fazer aquilo sem tirar o paciente da cama exigia certa dose de esforço.

Toda aquela movimentação foi cansativa para ele, pois logo que as enfermeiras se despediram, pediu para tirar um cochilo. Apaguei as luzes e fiquei em silêncio, esperando que descansasse. Naquela tarde ele passaria por uma pequena cirurgia, o que não deixava de ser preocupante. Cada dia havia uma nova surpresa em relação ao seu estado de saúde, e nos restava ter a esperança de que ele atravessaria, mais uma vez, outro desafio.

A força de meu pai era incrível. Eu nunca terei a garra para enfrentar tantas dores e desafios como ele demonstrara, na última década, desde que seus problemas se tornaram mais evidentes. Lembro de muitas vezes segurar sua mão enquanto um enfermeiro tentava achar uma veia boa, picando insistentemente seu braço com uma grossa agulha, pois eu queria sentir a dor por ele.

Aquele sono durou até o momento em que o médico foi ao quarto e deu algumas explicações sobre como seria a vida de meu pai depois que ele voltasse para casa. Uma alimentação muito restrita, sem líquidos, com a necessidade de três hemodiálises por semana. Papai ouviu tudo com a habitual resiliência e apenas brincou: “Puxa, eu queria sair daqui direto para uma churrascaria”, tirando uma pequena gargalhada de si mesmo.

Ficamos em silêncio após a saída do doutor, imaginando como seria essa nova vida após a alta. Eu não queria pensar daquele jeito, mas não seria uma vida de verdade. Exigiria muitos esforços, haveria muito sofrimento, mas ainda assim ele não estava reclamando, e eu tinha certeza de que se manteria assim, até o último dia.

Devido a cirurgia marcada, naquele dia ele não poderia almoçar. Fiquei com muita pena quando chegou o meu prato e ele sentiu o cheiro de comida. Comi o mais rápido que pude, para não torturá-lo com aquilo, e depois procurei conversar sobre histórias felizes do passado, na tentativa de distraí-lo.   

Pouco depois vieram buscá-lo. Não falávamos a respeito do que estava acontecendo. Apenas obedecíamos às exigências do momento, que incluíam vestir o camisolão, o que significava que meu pai passaria frio outra vez. Eu acompanhei a enfermeira para fora do quarto, ajudando-a a empurrar a maca, sem tirar os olhos do meu pai, que parecia saber o que ia acontecer. Seus olhinhos levemente tristes me diziam muito naquele trajeto. Eu podia ler neles um pouco de medo, mas nem de longe se comparava ao terror que eu estava sentindo, por ver meu pai tão frágil sendo levado para uma cirurgia.

E se desistíssemos? Ele estava tão bem naquele dia! Brincava. Fazia piadas. E se prolongássemos aquelas horas agradáveis? Pensei em despistar a enfermeira e correr com a maca para fora do hospital, colocá-lo ao sol, que ele não sentia na pele há mais de um mês. Ele teria gostado de fazer uma loucura dessas comigo?

Mas tudo o que fiz foi acompanhá-lo em silêncio, com as pernas e o olhar, até o último ponto em que eu podia ir, diante da entrada do centro cirúrgico. Dei um último beijo em seu rosto e ele foi, com a coragem de sempre, sem deixar de dizer uma última frase, que expressava toda a sua existência perante a minha: “Filho, eu te amo. Nunca se esqueça disso...”. Falou lentamente, talvez segurando o choro, e eu respondi de imediato: “Eu também te amo, pai”, sabendo que ele estaria logo ali, sorrindo outra vez, como sempre fizera depois de tantas outras adversidades muito piores que aquela, e em cujo exemplo sempre me inspirarei, até o dia em que eu próprio, fatalmente, enunciar a minha última despedida.

terça-feira, março 26, 2024

A Fogueira (L.F.Riesemberg)

 

Toda sexta-feira era dia de faxina, e recebíamos a diarista que vinha fazer a limpeza pesada. Mas mamãe não deixava por menos e também pegava na vassoura e no esfregão para deixar a casa brilhando. Lenços amarrados na cabeça, elas viravam tudo, sempre animadas, limpando cada mancha dos sofás e cada pingo de gordura de trás do fogão. Era um momento mágico para mim, que via o habitual costume do dia-a-dia ir pelos ares, exatamente como o pó que era varrido de cada canto da residência.

Aquele dia era especial não só pela momentânea bagunça que ficava pela casa, com móveis arrastados e tapetes arrancados, revelando paredes e pisos nus, mas também pela mistura de odores de produtos de limpeza que se espalhavam pelo ar e ainda pela sinfonia de ruídos que tomava conta dos cômodos, como o das escovas raspando paredes e das vassouras penteando as lajotas.

Nesse dia não dava para assistir aos meus desenhos animados na TV, visto que o aspirador de pó faria um barulho tão alto e daria tantas interferências na imagem que minha mãe recomendava eu fosse brincar lá fora, no quintal. E eu obedecia com gosto, armando inúteis arapucas com caixas de papelão ou balaios de vime. Era muito bom sair da rotina, sabendo que eu estava de certa forma ajudando, simplesmente por não causar nenhum atrapalho.

Ao fim da tarde tudo voltaria à normalidade, com o trabalho resultando em um ambiente limpo, organizado e cheiroso, pronto para receber visitas no final de semana. Porém, antes havia o momento pelo qual eu mais esperava - o ritual de coroação daquela cerimônia. Por volta das 17 horas, quando a diarista ia embora, minha mãe terminava de varrer o quintal e lá fazia um grande amontoado de folhas secas e outros detritos, que ela chamava de ciscos, para, por fim, queimar tudo em uma formidável fogueira, cujas chamas ardiam belas e maravilhosas bem no centro do quintal, como uma pira sagrada em homenagem aos deuses.

Eu gostava de ver o fogo, mas mamãe preferia a fumaça. Ficávamos a observar o pó, o papel, o papelão e tudo mais que fora varrido, enfim, o cisco, evaporar e ser levado aos ares pelo vento, afastando definitivamente de nossa casa tudo aquilo que não mais prestava. Eu via minha mãe com a testa suada, as mãos sujas, mas sorrindo, satisfeita pelo trabalho bem realizado. Às vezes ela soltava alguma pérola, relacionando aquele puxado dia de limpeza com o trabalho que temos que constantemente fazer para eliminar o mal de nossa vida.

Eu não sabia, e muito menos ela mesma, mas eu tinha uma mãe sábia, que me mostrava como lidar com os problemas de um jeito prático, usando o simples ambiente doméstico - ainda que ela não fizesse a menor ideia que estava me ensinando algo tão importante.

Sabe, é uma pena que os problemas de hoje não sejam tão simples como os do passado. Gostaria de poder contar ainda com minha mãezinha ao meu lado, animada e varrendo todo o cisco em um grande monte no meio do quintal. Às vezes chego a fechar os olhos e mentalmente faço todo esse lixo de hoje arder em uma grande fogueira e ser levado para bem longe, como a fumaça esvoaçando naqueles fins de dias de faxina.


segunda-feira, março 25, 2024

A Mulher Dragão (L.F.Riesemberg)

 


“Meu nome é Robert, hoje é uma segunda-feira e estou indo em direção ao trabalho enquanto olho pela janela do ônibus e vejo o semáforo mudar para a luz verde”. Nessas horas, forço a voz da minha cabeça a narrar tudo o que está acontecendo à minha volta para eu voltar à realidade e não ser pego. Tem dias que funciona de primeira, mas às vezes é mais duro, como está sendo hoje. Ninguém vê o que eu vejo, mas se a coisa continuar a aparecer, as pessoas ao meu redor vão notar. Volto a narrar, com minha voz mental, o que está acontecendo ao redor: “Uma velhinha acabou de entrar no ônibus e ela paga o cobrador com moedas. Lá fora, um ciclista passa perto demais de um automóvel e leva uma buzinada”. Parece que funcionou, não estou mais vendo nada, graças a Deus.

Tudo começou há mais de um ano. Não sou homem de festanças ou bebedeiras, mas naquele carnaval um conhecido me levou até um inconfessável antro cheio de prazeres e perdições. Não é um lugar para se ir, agora o sei, mas ébrios estávamos, e nessas horas tudo o que fazemos é nos deixar guiar pelos instintos mais baixos da carne e pelas sensações efêmeras com que os sentidos nos brindam. Assim, durante horas, permaneci me entorpecendo e me relacionando com as mulheres mais estranhas com quem eu já pude estar, ainda que, naquele momento, minha razão não pudesse avaliar claramente o que eu estava fazendo.

De todas as ações que vivi e pessoas com quem estive naquela noite, uma em particular me chamou a atenção: uma mulher oriental, talvez chinesa, que por algum motivo me fez pensar em um dragão de rasgados olhos vermelhos fumegando pelas ventas. Oh, não se engane, ela era bela, com certeza. A visão do seu corpo me entorpecera, e seus longos cabelos negros me envolveram como se fossem uma coberta de seda. Os vapores dos entorpecentes me faziam ver coisas que, agora, não sei dizer se eram reais ou apenas visões.

No dia seguinte eu estava de ressaca, tentando juntar os cacos de memória para compreender tudo o que havia se passado naquela noite de devassidão. Porém, a lembrança mais forte que me vinha era a do rosto da mulher-dragão. Não sei explicar de outro modo. Ela é uma mulher, mas tem uma energia densa e escura, e me provoca arrepios. Não só isso, mas ela me causa uma ansiedade, a ponto de eu não saber mais o que estou fazendo, aonde estou indo...

Isso já me aconteceu tantas vezes, que já perdi as contas. Posso estar fazendo qualquer coisa, como estar ouvindo uma música, ou tomando um café, e de repente sinto calafrios que começam na base da coluna e sobem até a nuca. Nessas horas já sei que vou vê-la rastejando, saindo de uma sombra. Então ela se coloca à minha frente, com os cabelos imensos até o chão e os olhos com raiva, e solta um grito gutural, assustador, como se eu houvesse lhe tomado algo muito valioso e ela quisesse se vingar. Meu coração dispara, a pressão sobe às alturas e eu chego a ter espasmos e convulsões até que alguém me salve.

Meu terapeuta ensinou essa técnica, de quando começar a sentir que ela se aproxima, começar a narrar o que está se passando ao meu redor, para eu voltar à realidade. Ele diz que devo ter passado por algum trauma, algo que abalou ferozmente o meu psiquismo, e reajo deste modo. Ele está tentando se aprofundar, durante as sessões, para chegar no cerne do meu problema. Mas eu sei que não é nada disso...

Naquela noite, eu tive o azar de ser pego por uma antiga maldição. De tantos homens que passaram por aquele local sinistro naquele carnaval, fui eu o brindado. Desde então, sofro com a aparição, que me persegue quando menos espero, em qualquer canto, e me faz agir como louco. Uma vez corri para a rua, tentando fugir, e fui atropelado. Sei que, se não me cuidar, posso ser morto em uma dessas crises, por isso tenho que sempre lembrar da técnica que me traz novamente ao presente e me afasta da mulher-dragão.

Achei um livro na biblioteca outro dia. Um calhamaço de capa dura, escrito em Português arcaico. E lá mencionava uma maldição que teria chegado com um viajante que viera das Índias. Não cheguei na parte que narra como tudo começou, mas entendi que, quando alguém é pego, não há escape. A mulher é implacável e me perseguirá até conseguir o que deseja, que é minha morte. Muitos homens já caíram vítimas dela. E agora sou eu... vejo-a ali, debaixo daquele assento do ônibus, com seus olhos me fuzilando. Desvio o olhar e tento narrar o que vejo. “O ônibus passa agora pela frente do banco, e ali se encontra um vendedor de jornais”. Mas não está mais funcionando. A cada vez que volto meus olhos para lá, a vejo mais próxima. “Uma moto de entrega passa ao lado do ônibus”. Ela está mais perto. Não dá mais, não está funcionando, hoje ela vai me pegar.


terça-feira, março 19, 2024

Dente de leão (L.F.Riesemberg)

 


A cena é a de um menino entregando uma flor para uma garotinha, em retribuição ao selinho que ganhara dela outro dia. Ou melhor, este é o sentimento que quero transmitir, pois a apresentação de tal cena, na realidade, foi um pouco diferente. O menininho era um jovem de dezesseis anos, e ele não entregava uma flor, e sim um disco, à jovem em que dera seu primeiro beijo.

Sim, ele era um rapaz um pouco atrasado, pelo jeito pouco confiante e sua dificuldade em fazer amigos. Já ela, com apenas treze anos, era bem mais experiente e articulada socialmente.

O cenário real é uma cidadezinha de interior no final dos anos 90, época em que os jovens resgataram a moda e a música dos anos 70. Assim, ela se apresentava, em sua imaginação, como uma fada hippie pé-na-estrada, cabelo dourado ao sol sobre um gramado verde, o que o fazia lembrar daquelas florezinhas amarelas que invadiam a cidade durante todo o verão.  

Ele queria estar com ela a toda hora, para ouvir sua voz, sentir seu perfume e, auge dos auges, ganhar mais um beijo como aquele do momento crucial em sua vida. Ela teria percebido que era o seu primeiro? Ele ficava horas e horas lembrando daquela cena, sentindo a sensação indescritível, as línguas dançando em círculos, o hálito quente, o sabor do brilho labial de morango...

Para sua extrema felicidade, houve outras vezes. Foi em uma delas, de tão satisfeito, que lhe deu de presente um de seus discos, de uma banda que ela gostava. Adorou a forma como ela parecia incrédula, perguntando “sério?” ao receber o mimo. Sim, era muito sério. Ela o fazia “pirar” e merecia muito mais. Obviamente essas palavras não saíram de sua boca.

A comunicação entre eles era limitada. Talvez pela timidez, trocavam poucas palavras quando estavam juntos. Ainda assim, para ele, eram namorados. Mesmo nunca tendo conversado a respeito.

Foram havendo algumas ligações telefônicas muito envergonhadas, alguns pequenos encontros, até que um dia ele precisou voar daquela cidadezinha. Ela ficou, mas pouco depois foi embora também, para outro lugar, ainda mais longe. Era claro que a alma dela era grande demais para ficar lá. Precisava de aventuras, de descobertas, de experiências, de perigos e de pessoas mais loucas.

Nunca tive a chance de dizer o quanto a amava, nem de como meu coração batia forte quando a via ao acaso, andando pela rua com seus longos cabelos esvoaçando ao vento. Também nunca agradeci pela memória do primeiro beijo, gravada até a eternidade na minha alma imortal.

Hoje a vejo pelas fotos e o que vejo é uma linda e livre mulher, viajada, universal, culta, sexy e dona de um refinado sarcasmo do qual já dava sinais na adolescência. É uma diva, femme fatale, top model, rata de praia, musa, disco queen ou algo assim. É muito difícil defini-la acompanhando somente pelas redes sociais, mas nenhuma definição abraçaria o que ela é, de fato.

Uma vez li que o dente de leão, aquela florzinha amarela que dá no verão e se transforma em uma bola de penugem branca que gostamos de assoprar, se espalhou pelo mundo inteiro por conta disso. Ele viajou continentes e chegou a terras distantes, por suas características aéreas. Pois é isso que ela é: um dente de leão. Quando ao sol, brilha lindamente, mas não foi criada para ficar presa e portanto viaja eternamente pelo vento, causando admiração e amores, que ficam marcados, como ficou meu coração.  

Recentemente, finalmente conversamos. À distância, é claro, pois ela é inalcançável. E, lembrança das lembranças, me contou que tem, até hoje, o disco que lhe dei e a memória daquele dia. E por alguns instantes voltei a me sentir como aquele menininho, entregando flores para uma menininha de quem recebera um beijo.