domingo, abril 10, 2022

A Cafeteria (L.F.Riesemberg)

 


De alguns anos para cá tenho feito sempre a mesma coisa nas tardes chuvosas de sexta-feira. Eu caminho até esta cafeteria no centro, peço uma xícara de capuccino e bebo enquanto olho pela janela. Os atendentes já me conhecem, e sabem que prefiro o silêncio, então não me aborrecem puxando conversa.

Como falei, faço isto somente nas sextas de chuva. Se não for assim, nem entro neste lugar, porque já não será mais o mesmo. É preciso ter as condições ideais para conseguir o que busco, e só as obtenho se for numa sexta-feira chuvosa.

Tudo começou há muitos anos. Eu estava totalmente sem rumo na vida. Havia sofrido duas perdas recentes, e não tinha nenhuma vontade de continuar vivendo. Resolvi sair e caminhei por horas, atingindo uma parte da cidade que me era desconhecida. Enfim, começou a chover. 

Eu teria continuado minha rota por lugares cada vez mais estranhos, mas me deparei com as portas deste convidativo lugar.

Entrei, inexpressivo, nas dependências do estabelecimento, e me sentei nesta mesma mesa. O cardápio tinha vários tipos de café, que é uma bebida que não costumo rejeitar em nenhuma ocasião. Então pedi um capuccino a fim de ter uma sensação agradável, para variar. Há muito tempo eu não sabia o que era ter uma alegria, mesmo que das mais simples.

Enquanto sorvia lentamente o café, fiquei observando pelo vitrô os transeuntes com seus guarda-chuvas, e a água encharcando a via, sentindo-me privilegiado por estar ali dentro, protegido e aquecido. O som da chuva que chegava aos meus ouvidos era como o suave cantar dos anjos. E a simpatia dos atendentes coroava a situação. Era uma magnífica combinação de sensações, que me faziam sentir a alma sair do corpo e flutuar por uma região celestial.

Fechei meus olhos e voei. Vi a mim mesmo, sentado naquela cafeteria. Um sentimento muito estranho, mas agradável, tomou conta do meu ser. Não era como se eu olhasse no espelho. Havia algo mais profundo, como se eu estivesse conhecendo alguém. Aparentemente eu nunca havia notado que era real. As coisas sempre foram acontecendo na minha vida, uma após a outra, como que automaticamente. Eu nunca havia notado a minha presença, nem o quanto eu poderia mudar as coisas à minha volta, de acordo com minha vontade.

Nunca me senti tão poderoso quanto naquele momento.

Eu estava ali, no café, mas ao mesmo tempo eu estava em um trono. Eu era um homem comum, mas também era um rei, um herói ou um deus. Tudo ao meu redor era fantástico, cheio de cores, e sons e gostos maravilhosos, que eu poderia manipular de acordo com minha vontade, e eu nunca tinha percebido.

Aquilo foi uma revelação, um despertar para uma nova vida. Toda a minha existência passou diante dos meus olhos e pude avaliar cada erro, cada acerto. Comecei a imaginar, a fazer planos... Tudo isso em uma simples xícara de capuccino, em uma sexta-feira chuvosa, na mesa daquele café.

Este é o meu local, o meu refúgio, onde as leis do tempo e do espaço são suspensas e eu experimento a eternidade. É o momento onde eu saio da vida, para ficar mais vivo. É meu nirvana, meu clímax, meu estado de fascínio. 

Este café. Este dia da semana. Este clima. 

Espero que você encontre o seu.


sexta-feira, abril 08, 2022

A redação (L.F.Riesemberg)

 


Aquela pilha de textos dos meus alunos já deveria ter sido corrigida há semanas, mas algo sempre me adiava aquela tarefa. Havia os cuidados com meu pai no hospital, as brigas pelo recente divórcio, mas no fundo talvez fosse a apatia daquela turma do ensino médio que me tirava qualquer empolgação de mergulhar nos seus textos.

Porém, como a coordenadora já havia me cobrado duas vezes pelo fechamento daquelas notas, não tive opção. Peguei uma xícara de nescafé e comecei a leitura, que prometia ser tediosa e decepcionante.

Eu nunca me dei bem com esta turma. Costumo entrar em sala de aula dando bom dia, e normalmente ninguém responde. Continuam conversando quando começo a explicação, sem ao menos se dar ao trabalho de abrir o livro. Às vezes me sinto invisível diante daquelas faces inexpressivas. No início eu chegava a gritar com eles para que prestassem atenção às minhas falas. Mas com o tempo perdi totalmente o interesse e passei a apenas cumprir minha obrigação de estar presente e despejar o conteúdo, mesmo que ninguém estivesse ouvindo.

Há tempos tem sido assim, apenas fingindo que estou ensinando. E agora, ao ler esses textos, eu teria que entrar naquelas mentes das quais eu só queria distância. “Vamos acabar logo com isso”, pensei, pegando o maço de papel.

Como previsto, as primeiras narrativas já cometiam verdadeiros crimes contra a língua. Textos carentes de revisões e com a caligrafia sofrível desafiavam minha capacidade de lê-los até o final. Os menos ruins não passavam de contos tolos, medíocres, sem qualquer traço de criatividade.

Fui me torturando com aquelas péssimas histórias, até que cheguei em uma cujo título era O Incendiário, de um dos alunos menos participativos da turma. Na verdade aquele menino me dava arrepios. Era anormalmente calado, nunca interagia com os colegas nem demonstrava qualquer emoção. Sentava no canto da sala, geralmente com a cabeça coberta pelo capuz do agasalho, ocultando um fone de ouvido que eu fingia não notar.

Seu texto continha os típicos atentados ortográficos cometidos nas outras redações, mas aquele trabalho se destacava totalmente do resto. Narrava a história de um jovem que aparentemente tinha uma vida normal, vivendo com os pais, mas que em segredo praticava incêndios criminosos em sua vizinhança. O texto de oito páginas – o mais longo de toda a turma – descrevia com riqueza de detalhes o metódico planejamento de um desses crimes.

De início me deixei levar pela narrativa ágil. Mas conforme a história avançava, comecei a questionar se aquele adolescente teria capacidade para imaginar tantas minúcias sobre materiais inflamáveis e métodos de arrombamento. O que mais me perturbou naquele texto foi o desfecho, no qual o criminoso descrevia o prazer de assistir a um casal de idosos sendo queimados. A descrição do sofrimento das vítimas, contrastando com o sentimento de realização do personagem, me incomodou profundamente.

O conto era ótimo, afinal. Mereceu nota máxima, apesar dos erros gramaticais. Mas o meu incômodo não acabou com o fim do texto. Lembrei de uma notícia de semanas atrás, sobre um casal de idosos morto num incêndio, em um bairro próximo. Não dei muita atenção na época, supondo ter sido um lamentável acidente doméstico.

Mas uma rápida pesquisa nas notícias antigas revelou o que eu mais temia. O fogo ocorrera três dias antes da data em que o aluno me entregou a redação. E agora? Não posso ficar calado, diante da terrível possibilidade. “Amanhã falarei com o diretor do colégio sobre este aluno”, pensei. Não faria mal algum investigar.

Dormi muito mal naquela noite, imaginando a possibilidade de estar convivendo com um criminoso em sala de aula, e de ter recebido uma possível confissão num dever de casa. Ele poderia ter cometido outros crimes depois? Se ao menos eu tivesse lido as redações antes...

Era esse tipo de pensamento que passava pela minha cabeça quando cheguei ao colégio na manhã seguinte. Eu refletia no destino que o rapaz teria se fosse mesmo culpado, concluindo que esta possibilidade – a da redação ser um relato autêntico – era muito distante. Seria apenas ficção produzida por um estudante, não? Mas todas essas ideias foram interrompidas quando avistei a multidão em volta e a imensa fumaça negra que saía do prédio. Todo o colégio estava sendo consumido pelo fogo.

quarta-feira, abril 06, 2022

O Bombardeio (L.F.Riesemberg)

A brincadeira estava divertida, mas de repente tudo ficou estranho. O clarão e um som ensurdecedor ocorreram num piscar de olhos. Então Santiago só viu escombros. Sua casa era agora apenas um amontoado de pedras e de aço, semioculto pela névoa que surgira.

Em um minuto ele brincava na rua, com outras crianças, sob o sol do verão. No seguinte estava caído, coberto de pó e rodeado por trevas.

Ouviu gritos e soluços.

Com dificuldade, colocou-se em pé, tentando compreender o tumulto ao seu redor. Havia pessoas estiradas pelo chão, imóveis, enquanto outras corriam desordenadamente, como alucinadas.

No seu endereço, as paredes e o telhado se fundiam num desolador emaranhado. Em desespero o menino correu até aquele monte de blocos e fuligem que antes lhe servira de lar.

“Mamãe!”. “Papai!”. “Sarah!”.

Ele gritava e levantava as pedras, procurando incessantemente por qualquer vestígio de vida naquele sítio devastado. Suas frágeis mãos não tinham a força exigida, e os gritos por socorro de seus fatigados pulmões não obtinham qualquer resposta. Todos ali estavam ocupados procurando seus próprios mortos.

Vez ou outra esbarrava em algum desorientado que cambaleava pelo terreno, ainda sem compreender a exata dimensão da tragédia. Teria sido um ataque aéreo? Acidente ou proposital? Santiago sabia que as respostas poderiam vir com o tempo, mas não queria nem pensar nas dores que se arrastariam indefinidamente a partir dali.

Caiu de joelhos, observando a paisagem triste que se estabelecera. A rua de sua infância, palco de brincadeiras e amizades, havia se esfacelado de uma hora para outra.

Os pais e a irmã estariam debaixo de toneladas de concreto.

Somente um objeto colorido se destacou no chão cinzento. Um urso de pelúcia sorrindo, contrastando com todo aquele horror. Era o urso de Sarah, agora imundo e mutilado.

O garoto escondeu o rosto com as mãos e lamentou sua sorte. Aquele era o fim, que chegou sem qualquer aviso. Nada mais seria como antes...

Mas, de surpresa, um som agradável finalmente acariciava seus ouvidos. Era o som mais doce, em oposição aos ruídos cortantes que enchiam a atmosfera.

“Santiago, você está bem?”.

A voz surgia do meio da neblina cinzenta, como a luz de um farol que salva o marinheiro em noite escura. Impossível não reconhecer. Eram eles, os pais e a irmã, mãos estendidas em sua direção. Estavam intactos, com as vestes muito brancas e limpas, serenos, na mais pura representação da paz.

“Vamos conosco, meu filho. Sigamos o nosso caminho...”.

domingo, maio 30, 2021

A Ânsia (L.F. Riesemberg)

 


Muito cedo, antes do Sol despontar atrás das montanhas, quando a noite dava seus últimos suspiros, fui despertado por algo rondando a barraca. Permaneci em silêncio, temendo o ataque de predadores ou delinquentes, mas aquele ruído era totalmente estranho para mim. Arrisquei circundar o acampamento, empunhando uma arma. Ela não poderia combater o que espreitava, mas ainda assim minha ingênua ousadia me fez dar um grito longo e assombroso, intentando expulsar o invasor.

O berro ecoou pela mata, destruindo o silêncio e desestabilizando o intrincado sistema de criaturas micro e macroscópicas que viviam naquele habitat, de líquens e musgos a aves e roedores. Não percebi o tumulto que causei com tremendo ato, e fiquei a observar apenas uma floresta que parecia quieta e solitária, mas que se agitava intensamente e me observava com milhares de olhos.

Meu brado despertou algo que eu não poderia compreender naquele momento, e estranho fenômeno ocorreu. Uma força poderosa e antiga, presente em cada ser vivo daquele perímetro, reagiu em intensidade desigual contra mim. Não há palavras em línguas humanas para explicar, mas toda a energia dos arredores materializou-se em uma entidade tão bela quanto imponente, dando a entender que estivesse irritada com minha presença.

Naquele meu estado, ainda escravizado pela ignorância e pelas superstições, concluí que estava diante de uma assombração. A última lembrança de tal momento é a do espectro avançando sobre mim e aplicando uma mordida em meu antebraço – por menor sentido que isso possa fazer -  o que me causou um certeiro torpor e me tombou ao solo, com total perda dos sentidos.

Acordei com o sol no rosto, sem pistas sobre o que havia se dado realmente. O braço doía, mas não havia um ferimento visível. Não tardei a deixar a floresta e evitei relatar a experiência a qualquer conhecido, temendo que a maledicência me agredisse mais violentamente que aquela visagem. Planejei ocultar o sucedido nas entranhas da consciência, cobrindo com excessos de todo tipo, mas antes que pudesse dar o primeiro passo nesta direção, um estranho magnetismo me impediu.

Eu já havia marcado com dois companheiros um festival de luxúria e entorpecimento, quando um ímpeto irresistível me obrigou a cancelar o convite para praticar algo impensável. Ao invés de dar vazão aos desejos irracionais, típicos da carne, passei a noite dentro de casa, lendo um livro. Não era uma grande obra, visto que não havia qualquer outro exemplar no ambiente, mas foi um fato inédito em uma vida inteira sem pretensões intelectuais. Devorei as centenas de páginas em algumas horas, seguindo a atividade com uma espécie de embriaguez gramatical que me levou a declamar poemas janela afora.

Esse foi o primeiro episódio de uma série de ocorrências que me trouxeram, em dezoito meses, a este singelo relato que redijo desajeitadamente, atendendo a uma necessidade irresistível. Desde então não obtive um minuto de paz de espírito. Fui acometido por esta moléstia que não me permite ver o tempo passar sem que eu o aproveite de um modo que me enriqueça espiritualmente. Passei a sentir horror às banalidades, desenvolvi uma fobia de ignorância, em uma desesperada fuga da incultura, principalmente por constatar que gastei toda a minha vida no obscurantismo da mediocridade.

Enquanto escrevo, noto um homem na mesa ao lado. Sei que é um potencial suicida, pois seus olhos indicam uma depressão profunda com pensamentos em desalinho. Minha condição me obrigou a interromper este texto e a ir ter com ele, pois empatia é um dos sintomas deste distúrbio que me acometeu, e só estou voltando a empunhar o lápis depois que o pobre saiu reconfortado e decidido a buscar ajuda médica.

Estou chegando ao fim das folhas de papel e já prevejo a abstinência que sofrerei em seguida. Precisarei com urgência de Mozart em meus ouvidos, de Tolstói, de Sócrates, de correr para um museu, escrever um soneto. Estarei angustiado, necessitado de um debate, com fome de conhecimento, porque o que me mordeu naquela fatídica noite foi o espírito da natureza, a deusa da sapiência ou como queira chamar, mas me transmitiu este vírus que me faz querer sempre aprender mais, que me obriga a fazer cursos, a estudar metodologias, a pesquisar teorias, a formular hipóteses...

Sei que estranhas, caro leitor. “Como isso poderia ser ruim?”, tu dirás. Mas o problema não é a sede de conhecimento, e sim a sua ausência. Olho ao redor e só vejo indivíduos ainda iludidos, se entretendo com frivolidades, vivendo em uma caverna de ignorância, e isso me faz querer gritar, pedir para que por favor acordem dessa letargia, que leiam um livro, que busquem a verdade!

Às vezes minha dor é tamanha que sinto uma terrível vontade de também morder alguém, de passar esse vírus adiante, provocar uma epidemia de ânsia por conhecimento, acabar com esse mal que acomete a tantos, que é a estupidez humana. Há agora mesmo um jovem no recinto, cujo sorriso denuncia uma burrice voluntária, e estou salivando de vontade de atacá-lo, de fazê-lo acordar, mostrar que vive na escuridão. Mas sei que, se eu me aproximar, o segurança que não tira os olhos de mim virá rapidamente em meu desfavor, pois a cor da minha pele o incomoda mais do que tudo.   

sábado, maio 29, 2021

Biografia do autor

Alguns estudantes e professores frequentemente solicitam uma biografia do autor, para acrescentar aos seus trabalhos. Portanto seguem alguns dados a respeito:

Infância na rua Eduardo Sprada, em São Mateus do Sul (PR)

Luiz Fernando Ehlke Riesemberg nasceu em 06 de Outubro de 1980 em São Mateus do Sul, Paraná. Teve uma infância feliz, com toda a liberdade que uma pequena cidade do interior podia proporcionar naquela época, antes do surgimento da Internet. Filho de Gabriel Ludgero Moreira Riesemberg, técnico em contabilidade em uma refinaria de xisto, e de Rita Ehlke Riesemberg, dona de casa e cortineira, passou a infância em uma casa na rua Eduardo Sprada, onde morava com os pais e três irmãs mais velhas: Célia, Cláudia e Selma. 

O autor no clube de sua infância

Gostava de acampar, andar de bicicleta, brincar com bonequinhos de plástico e de explorar terrenos baldios. Junto com seus amigos da rua formou um clube, em um daqueles terrenos, onde havia uma velha casinha de madeira abandonada. Desde pequeno foi leitor de quadrinhos, principalmente os da Turma da Mônica e do Tio Patinhas, e mais tarde, na adolescência, apaixonou-se pelos livros do Sidney Sheldon, recomendados por seu pai. 

Cenário de muitas aventuras de sua infância 

A adolescência foi cheia de altos em baixos, iniciando feliz, como um prolongamento natural da infância dourada. Até os treze anos vivia rodeado de amigos, tanto na rua quanto na escola. Com os da rua vivenciava aventuras nas matas, estourava bombinhas e corria em carrinhos de rolimã. Com os da escola frequentava a videolocadora, ouvia discos, jogava videogame e lia quadrinhos. Sozinho, em casa, lia revistas.

Com 13 anos de idade

A leitura foi sua maior companheira entre os 14 e os 16 anos, quando as mudanças vindas com a idade fizeram suas amizades se evaporarem. Detestava o Ensino Médio, mas se encantou com as aulas de Literatura Brasileira. Foi graças à forma como os livros combateram sua solidão que nasceu a vontade de se tornar escritor, mas ainda não tinha maturidade nem prática suficientes para escrever suficientemente bem. Nesta época era bastante calado, solitário, triste, sentindo falta das alegrias compartilhadas com amigos. 

Com sua cachorra Tanza

Aos 17 mudou-se para a capital Curitiba, onde cursou a faculdade de Jornalismo e voltou a ter amigos, recobrando a alegria dos tempos da infância. Foi uma época de socialização e descobertas, onde houve um grande avanço sobre a timidez e a introversão adquiridas nos anos anteriores. 

Formatura como jornalista, aos 21 anos.

Após a formatura, voltou a morar com os pais em São Mateus do Sul. Seu primeiro emprego foi como professor e criador de conteúdo para o site da mesma escola onde fez o Ensino Médio, e os fantasmas que ainda habitavam aquele lugar voltaram a persegui-lo. Mesmo sem acreditar na sua vocação como professor, continuou dando aulas, ainda sonhando em se tornar escritor. Aos 22 anos ingressou na faculdade de Letras, em uma extensão da UEPG em São Mateus do Sul, com a intenção de aprender mais sobre Literatura. Foi nesta época que, inspirado pelo ambiente, começou a escrever. Logo em seguida, aos 23 anos, finalmente conseguiu um emprego como jornalista, no periódico semanal da cidade, e passou a praticar diariamente sua escrita.

Entrevistando o cantor Maurício Manieri

Seu primeiro conto foi Eu Não Matei Charles Bronson, escrito em 2003, e incluído em seu primeiro livro, Grafias Noturnas, lançado em 2009. Tinha interesse em escrever romances, mas optou pelos contos inicialmente como uma forma de exercício e para poder pedir aos professores que lessem seu trabalho e dessem suas opiniões. Uma dessas professoras, incentivando o aluno, lhe emprestou o livro O Homem Ilustrado, de Ray Bradbury, autor que passou a ser a maior inspiração para seus próprios contos. 

Com professores da faculdade de Letras

Desde que se formou em Jornalismo, aos 21 anos, sempre esteve envolvido com a área da Educação, dando aulas de Português ou Inglês em diversas instituições de São Mateus do Sul e da capital Curitiba, onde passou a morar em 2012, no mesmo ano em que se casou com a professora Rafaela da Rosa e nasceu seu filho, Tiago. 

Casamento com Rafaela, em 2012

De início Luiz Fernando Riesemberg não tinha interesse em seguir a carreira de professor, mas com o tempo passou a amar o ofício, principalmente pelo forte vínculo sentimental estabelecido com algumas de suas turmas.

Com alunos da Guarda Mirim do Paraná, em 2012

Segue escrevendo e recomenda a todos que façam o mesmo. "A escrita é uma cura. Eu deixo todas as minhas dores nas histórias e me sinto renovado a cada uma que finalizo", revela.



Sobre o site Contos Fantásticos:

O site Contos Fantásticos foi criado a princípio para a divulgação de contos de autores clássicos do gênero, e mais tarde passou a ser o local de publicação para seus próprios textos, depois de desiludir-se com a publicação de livros impressos. O tempo e as despesas necessários para a produção de um livro físico poderiam ser melhor empregados na escrita de novos trabalhos, desta vez voltados ao público da Internet. Os contos passaram a ser mais curtos e, percebendo que havia um grande público de professores e estudantes entre os leitores, passou a considerar sua produção literária como uma forma de contribuir com a Educação de seu país.

O Fantástico para L.F. Riesemberg, como assina seus contos, não é o tradicional, com histórias povoadas por criaturas folclóricas. Para o autor, Fantástico é tudo o que causa perplexidade, encanto e assombro, independentemente se é a aparição de um fantasma ou o bater das asas de uma borboleta. O escritor procura seguir a sugestão do mestre Ray Bradbury, quando este diz que as pessoas precisam constantemente renovar sua capacidade de assombro. 

"Para uma criança, tudo é Fantástico, porque para ela tudo é novo. Mas aos poucos ela vai perdendo essa habilidade de se encantar. Minha intenção, ao fazer Literatura Fantástica, é resgatar essa capacidade que perdemos de achar tudo maravilhoso", diz o autor. "Algo que acho fantástico é nossa habilidade de viajar no tempo através de nossas lembranças sobre o passado ou dos nossos sonhos sobre o futuro", continua. Os temas recorrentes na obra do autor são as saudades da infância, a passagem do tempo, a morte e, acima de tudo, o aprendizado de vida que tudo isso nos proporciona.

Seu conto A Máquina da Alegria foi incluído em um livro didático pela primeira vez em 2012, através da FTD, e desde então esta e outras histórias já apareceram em diversas publicações de diferentes editoras voltadas ao ensino. "Achei que minha missão era apenas ser escritor, mas com o tempo percebi que era algo muito maior. Adoro a ideia de poder estar em várias salas de aulas ao mesmo tempo, contribuindo para a educação de tantos jovens", conclui o autor.


 

terça-feira, maio 25, 2021

A Gaveta (L.F.Riesemberg)

 

Há muitos anos eu não visitava aquele quarto, nem olhava aqueles móveis. Tudo estava com um leve cheiro de mofo e coberto por uma fina camada de poeira. Era o quarto de vovô, que havia partido há muito tempo. De repente vi algo que me chamou a atenção: a gaveta da escrivaninha onde ele guardava seu maior mistério.

Quando eu era menino, costumava correr pela casa, fingindo ser um explorador que fugia de canibais. Às vezes acontecia de eu ir parar neste quarto. Mas tudo parecia maior naquela época. A cama era alta como uma montanha. O lustre, que hoje bate na minha cabeça, ficava no céu. E, numa das vezes em que adentrei sorrateiramente aquele cômodo mágico, avistei vovô sozinho, sentado na cama, diante da gaveta aberta.

Ele estava paralisado, pensativo, olhando ao longe, como se a parede à sua frente fosse um deserto a se perder de vista. Entrei devagar para não assustá-lo, acreditando que ele logo sairia daquele transe, e instintivamente saí do meu papel: deixei de ser um aventureiro em fuga para voltar a ser uma criança na casa dos avós. Lentamente me coloquei à sua frente, para que me notasse, mas aquilo não foi o suficiente para fazê-lo voltar. Ele estava como que hipnotizado, olhando para o nada, como se só o seu corpo estivesse ali sentado, e sua alma tivesse sido capturada por alguma força sobrenatural.

“Vovô, tudo bem?”, perguntei, e ainda assim ele permaneceu naquele estado, levado para um mundo desconhecido, como se nada existisse ao seu redor. Fiquei com muito medo naquela hora. Teria meu vozinho morrido? Era sinistro pensar que alguém poderia morrer naquela posição, mas todo o resto da cena indicava que não havia nada ali, a não ser seu corpo. Onde estaria aquele avô amável que me pegava no colo, que me dava trocados para comprar sorvete e sempre tinha uma bala no bolso para me oferecer?

Com todo o cuidado o cutuquei no joelho. Ele continuou com os olhos desfocados, então toquei com mais força, falando “vovô, vovô!”, até que ele finalmente voltou a si e me viu em sua frente. Por algum tempo ainda permaneceu sem me reconhecer, apenas me olhando, mas eu soube que ele estava de volta no momento em que sorriu, como sempre fazia ao me receber. O brilho que renasceu em seus olhos iluminou o quarto todo, e fiquei aliviado por ter meu vozinho de volta.

Aquela experiência, apesar de rápida, havia sido tão assustadora que o abracei com toda a minha força e não quis mais largá-lo. Sinto que até hoje ainda estou abraçado a ele. Por muitos anos, sempre que eu recordava daquele momento sentia arrepios ao imaginar o que haveria dentro daquela gaveta aberta, diante da qual ele estava posicionado. Em minha imaginação, ele havia avistado lá dentro algum objeto amaldiçoado que estava tentando sequestrar sua alma, mas eu cheguei a tempo de salvá-lo e o trouxe de volta.

E agora estou aqui, diante dela, depois de tantos anos. Tudo no quarto continua igual, então aquilo que meu avô havia visto continuaria lá, esperando. Era possível!

Não tenho mais medo e abro a gaveta. De fato, havia algo lá. Uma fotografia. Era muito antiga, bastante amarelada, mas não me era desconhecida. No retrato apareciam meu próprio vozinho, ainda criança, ao lado do meu bisavô, ou seu pai. Ele a me mostrava e falava a respeito do seu tempo. Fiquei olhando aquela foto e sentei na cama, como ele mesmo estava naquele dia, há tanto tempo.

Muitas coisas se passaram pela minha mente naquele momento. Fiquei pensando na passagem do tempo, e isso me levou a ver minha própria infância, com cenas de eu menino correndo por aquela casa, bancando o explorador. Não sei quanto tempo fiquei ali, preso a tais lembranças, abraçando aquelas saudades antigas do alguém que eu havia sido. Era como se houvessem suspendido as leis da natureza e eu adentrasse aquele reino mágico, um lugar doce, de tons dourados e odores fascinantes, onde eu era criança e podia ser o que eu quisesse. Desejei voar e voei, e estava nas nuvens. Entendi que era lá que meu avô estava, quando subitamente fui trazido de volta ao meu corpo, pelo toque suave de uma mãozinha.

“Pai, você tá bem? Eu falava e você não respondia”, disse meu filho, um tanto acanhado.

Minha alma entristeceu por voltar ao mundo, mas aqueles olhinhos a animaram novamente.

domingo, julho 12, 2020

Homens de Verdade Não Choram (L.F.Riesemberg)




Após ter colocado o filho para dormir, o homem chegou na sala e viu a esposa dormindo no sofá, diante do televisor ligado. Pelo costume, ele deveria sentar-se ao lado dela, mas naquela noite fez diferente. Foi até o banheiro e trancou a porta.

Olhou-se no espelho e viu um homem envelhecido, quase totalmente infeliz. A única alegria vinha do filho, que parecia ser a última criatura do mundo a quem sua existência fazia alguma diferença. Marcos não tinha nenhum outro orgulho na vida, exceto o de ser pai.

Suspirou, arrependido da maioria de suas decisões ao longo das décadas. Chegava a um ponto em que não restavam muitas alternativas, e era duro ter que encarar aquela realidade. “O que você fez com todo aquele potencial?”, perguntou ao seu reflexo. O estrondo de uma batida na porta parecia trazer uma resposta, mas era apenas a esposa reclamando sua ausência. “O que você tá fazendo aí dentro?”, ela perguntou.

Marcos saiu e tentou justificar-se. “Vi que você já estava dormindo, por isso não me sentei ao seu lado hoje”. Ela parecia desconfiada. “É claro! Estou cansada porque trabalhei muito. E hoje você demorou mais para fazê-lo dormir. Por quê?”.

Ela não tinha interesse pelos monstros em que o filho acreditava, e não queria que isso fosse incentivado nele. Marcos teve que inventar outra desculpa para não irritar a esposa. “Ele estava um pouco agitado hoje, só isso”. Ela era muito prática, e não queria que o filho tivesse qualquer ímpeto artístico, como o pai.

“Bem, eu vou dormir, porque amanhã saio cedo”, disse ela. Marcos sentia o ressentimento nas palavras dela, por ter um marido que não contribuía financeiramente no lar. “Eu também vou indo”, ele respondeu, mesmo estando sem sono. Sua esperança era que ela dissesse: “Tudo bem, pode ficar aí e assistir alguma coisa na TV”, mas ela apenas perguntou: “E aquele emprego que você foi ver semana passada, não deu em nada?”.

Marcos estava há meses em casa, e sentia-se bem fazendo as atividades domésticas, cuidando da educação do filho e, nas horas vagas, escrevendo sobre monstros. Contudo, as cobranças da esposa sempre o lembravam de que aquela situação não poderia continuar. Ele tinha que arrumar um emprego que não lhe desse nenhuma alegria mas que pagasse um salário.

“Eu vou arranjar alguma coisa logo, prometo”, disse, enquanto ela se afastava sem prestar atenção. Marcos sentou-se no sofá e lembrou a conversa que teve com o filho, na qual ele confessava estar sofrendo nas mãos de colegas. Na sua época não existia a palavra bullying, o que era muito pior. Ficou lembrando das humilhações, dos xingamentos e das feridas que o bombardeavam na infância.

“Vai contar pra sua mãezinha, seu palerma?”, gritava aquele menino bronco, depois de estapeá-lo no rosto e rasgar seu gibi. "Palerma! Palerma!". Marcos nunca esqueceu as provocações, as ameaças e os risos. Eram crianças, mas naquele tempo, para ele, eram demônios.

“Ele não é de nada mesmo”, zombavam os outros meninos, enquanto Marcos engolia o choro. Foi assim há trinta anos, e continuava sendo. A vida sempre o sufocava, fosse através de uma gangue de garotos malvados, de um chefe injusto ou de uma esposa autoritária. Uma lágrima escorreu, mas Marcos a enxugou. O melhor era pensar em alguma lembrança feliz, antes que a mulher o visse daquele jeito. Senão, ela o chamaria mais uma vez de fraco e patético, já que homens de verdade não choram.