quarta-feira, julho 26, 2023

A Japonesinha (L.F.Riesemberg)


 Rick não estava muito interessado naquele encontro, mas como há muito tempo não beijava ninguém, resolveu que aproveitaria a chance. Havia conversado muito com ela pelo bate-papo e uma única vez ao telefone. Ela parecia fazer o tipo ingênua e boa-moça, que ria de todas as suas piadas. Fisicamente, a única descrição que tinha dela era a de ser “descendente de orientais”. Não era o que ele queria, mas aceitava.

Encontraram-se na frente do shopping, como era comum. Ela atrasou, pois havia esperado na entrada errada, o que gerou os primeiros risos entre os dois. Decidiram ir a outro local e caminharam alguns quarteirões – em cujo tempo ganharam alguma cumplicidade. No caminho, Rick pensou: Ficarei hoje com ela, mas será a única vez.

Ele nunca havia feito isso. Toda vez que alguém demonstrava interesse, ele se apaixonava. Estava cansado de sofrer. Queria simplesmente curtir, como muitos jovens faziam. Desta vez não se sentiria culpado por não iniciar um relacionamento sério depois de alguns beijos. Queria apenas a diversão daquelas horas e depois dispensaria a moça, por mais que essas palavras não caíssem muito bem.

Compraram os ingressos para o filme que estreara, mas ainda havia uma hora para a sessão. Caminharam lado a lado, pelas lojas de discos, conversando sobre música. Ela sempre sorridente e falante. Havia uma luz especial nela, quase infantil. Ele estava contido, mas apreciando o momento. Sentia como se tivesse levado uma criança para passear. Porém, a intenção de beijar na boca não cessara, e os pequenos esbarrões que davam sem querer na caminhada apenas aumentavam sua vontade.

Era evidente que ela também queria. Às vezes ele a pegava encarando fixamente, por uma fração de segundo, o admirando, mas a timidez os fazia disfarçar. Até que chegou a hora de ver o filme.

Na sala escura, a tensão subiu. O filme era bom, então Rick não quis tirar os olhos da tela. Mas, num ímpeto de audácia, avançou os dedos para a poltrona ao lado e tocou a sua mão. Foi um misto de ingenuidade com o mais alto atrevimento, e aqueles dois quase-estranhos passaram a hora seguinte de mãos dadas, como se fossem um casal.

Ao fim da exibição, veio a dúvida: seguiriam segurando a mão um do outro? Ou se largariam e agiriam como se nada tivesse acontecido? Quando as luzes acenderam e era hora de levantar, ela olhou para ele e ficou novamente encarando, desta vez sem desviar, dizendo muito com aqueles olhinhos puxados. Ele, compreendendo, avançou a boca para a dela e deram ali seu primeiro beijo.

Foram segundos mágicos, como sempre é o primeiro beijo em alguém. Quando terminou, já eram pessoas diferentes, quase como uma só. Saíram do cinema caminhando de mãos dadas da maneira mais natural possível.

O resto da tarde foi de muitos beijos. Entre um e outro havia aquelas conversas triviais que os animavam. Uma delas sobre cachorros. Descobriram que ambos tinham cães da mesma raça: Akita. Assim, a tarde se esvaiu muito rápido, e chegou a hora da despedida.

Diante da estação, abraçados, a noite começava a cair. Quando a condução dela estava chegando, ele perguntou se ela havia gostado do dia. “Muito”, respondeu. “Hoje foi muito especial”. E aquelas palavras tinham um sabor agridoce, pois ele sabia que aquilo nunca mais se repetiria.

Ele chegou em casa satisfeito e pronto para a próxima. Aquela japonesinha ficaria guardada na sua memória, mas nunca a procuraria novamente. Ela ligou dias depois, desejando um novo encontro, mas ele disse que não podia ir, e assim perderam contato.

Passaram-se mais de vinte anos daquele dia. Rick pensa em sua vida, e acha que, se tivesse ficado com aquela jovem simpática e ingênua, iluminada, que estava realmente interessada nele, muitas das suas decepções atuais teriam sido evitadas. Como seria sua vida se tivessem casado? Onde estará a japonesa hoje? Infelizmente não há nenhuma pista para procurá-la, e mesmo que houvesse, hoje ela não seria mais aquela moça graciosa, como eu não sou aquele jovem e impetuoso Rick. Eu não construí nada do que me orgulhe e, por isso minha luz se apagou. Estou envelhecido e morrendo...

Ainda bem que possuo, ao menos, a lembrança daquele dia feliz, em que fui amado por uma jovenzinha de olhos puxados chamada Luciane. É o que me resta: todos os dias fecho os olhos e me transporto para aquela tarde. Foi um dia quase banal, mas que hoje tem um gosto muito diferente.

Obrigado por este presente. Desculpa por ter estragado tudo. Espero, com minhas últimas forças, que a sua luz continue brilhando.

sábado, maio 20, 2023

Peçonhento (L.F.Riesemberg)

 

O presidente da República tinha ido ao Chile, em uma viagem diplomática. Os compromissos oficiais já haviam encerrado, mas antes de retornar ao Brasil o chefe de Estado resolveu passar uma noite em Valparaíso - não por ter sido a morada de Pablo Neruda, mas por ser a cidade natal do seu verdadeiro herói, Augusto Pinochet.  

Após uma tranquila tarde no hotel, abusando das cervezas e das empanadas de pino servidas à beira da piscina, o presidente retirou-se sozinho para a luxuosa suíte e caiu na espaçosa cama vestindo apenas uma cueca verde-oliva. Já havia fechado os olhos, pensando nas futuras eleições e esperando o sono chegar, quando foi surpreendido por uma dolorosa picada na nádega esquerda. Imediatamente ele recordou, em silencioso desespero, de uma notícia que recebera dias antes em um grupo, sobre a “epidemia” de animais peçonhentos, ou seja, venenosos, que ocorria naquele país.

O aviso de “utilidade pública”, enviado por um confiável eleitor, destacava a perigosa aranha-reclusa chilena (Loxosceles laeta), com a recomendação de que, enquanto estivesse no Chile, examinasse atentamente o interior dos sapatos antes de calçá-los. De acordo com o texto amplamente compartilhado, o mencionado aracnídeo era muito pequeno, tinha hábitos noturnos e sua mordedura poderia matar um boi.

Sua experiência como capitão do exército o indicou que, numa situação como aquela, era necessário ter sangue frio e procurar ajuda o mais rápido possível. Prestou atenção aos sinais vitais, já sentindo um aumento da frequência cardíaca e certa dificuldade para respirar. Apesar do seu histórico de atleta, teria que agir rápido, ou no dia seguinte todos os brasileiros estariam de luto.

O telefone celular estava sobre a mesa de cabeceira (ainda chamada de “criado-mudo” pelo presidente), à direita da cama, mas assim que tentou apanhá-lo para chamar alguém, teve uma nova surpresa. Percebeu, aterrorizado, que não conseguia mexer nenhum músculo. Apenas seus globos oculares se moviam, mas o resto do corpo estava completamente paralisado. Lembrou-se, assim, de outro trecho da notícia lida, que falava sobre as aranhas injetarem uma proteína imobilizante em suas presas.

Imediatamente sentiu-se como quando vive a experiência de paralisia do sono, quase toda semana. Nessas ocasiões, ao dormir, fica preso em um recorrente pesadelo no qual milhões de brasileiros mortos o acusam, sem que possa se mover ou gritar. Porém, o que estava se passando no momento, naquele hotel, não era nenhum sonho, mas algo real - e o terror estava intensificado por haver uma dose de veneno em seu sangue.

Pensou nas opções que lhe restavam para sair daquela situação, e concluiu que a morte por falência de algum órgão vital seria inevitável, a não ser que conseguisse mover a mão até o telefone e chamar alguém.

Concentrou-se, tentando superar a dolorosa mortificação dos membros, e depois de muito tempo conseguiu esticar o dedo mínimo. Apesar do sufoco, sua insistência fez com que após alguns instantes conseguisse levantar toda a mão, o que se seguiu a uma rudimentar elevação do braço.

Da testa brotavam gotas de suor, e com muito esforço o presidente conseguiu heroicamente esticar o braço e derrubar a mão amortecida sobre o aparelho telefônico. Quase vencera o formigamento local, mas temendo que a aranha ainda se encontrasse sobre o lençol, evitou qualquer movimento desnecessário.

Com a cabeça colada ao travesseiro, sem poder olhar a tela do dispositivo, seguiu tateando-o intuitivamente, procurando acionar o viva-voz e a discagem automática para contatar algum assessor. Depois de um tempo indefinido, o plano acabou funcionando.

“Alô”, disse uma voz masculina do outro lado da linha. Como que amarrado à cama, o político conseguiu entonar apenas um mugido incompreensível. Do outro lado da linha, alguém respondeu:

“Pai? Algum problema?”.

Reconhecia claramente aquela voz. Havia ligado para o primogênito, que o acompanhava naquela viagem oficial mesmo sem fazer parte do governo. Chegou a se emocionar pensando na abnegação do filho amado.

Entre gaguejos e relinchos, o presidente conseguiu pronunciar lenta e desesperadamente as seguintes sílabas: “so-co-rro”, “quar-to” e “mé-di-co”. O filho, que estava tomando uma piña colada no bar do hotel, respondeu: “Tudo bem, pai, fique calmo. Eu logo chego com ajuda”.

Quinze minutos se passaram até que a porta da suíte se abrisse. Entraram três homens: o filho do presidente, o gerente do hotel e, atrás deles, um rapaz de estatura baixa e pele escura, carregando uma surrada maleta de couro.

“Señor Presidente, este es el Dr. Gonzales, un médico que amablemente se ha puesto a su disposición para asistirlo”, disse o gerente.

“Pai, a gente precisa entender exatamente o que aconteceu”, disse o filho, preocupado. E sussurrou ao gerente: “Crêdio que mi padre sofreste un derrame”, em péssimo portunhol.

Neste ponto, a autoridade brasileira já conseguia falar melhor, apesar de ainda manter uma rigidez quase cadavérica. Em seus olhos estava registrado o medo de perecer sobre aquela cama, fora do seu país, sem fazer ao menos um último pronunciamento para a nação.

“Foi a aranha-reclusa. Picou lá embaixo”, conseguiu balbuciar com o canto da boca, apontando com os olhos arregalados.

O jovem médico pediu licença e, com ajuda dos outros dois homens, virou de lado o corpo do presidente. Ao abaixarem a cueca para examinar as nádegas, verificaram algo incomum e trocaram olhares antes da emissão de qualquer conclusão precipitada.

“Señor presidente, ¿ha visto la araña?”, o médico perguntou, educadamente.

“Ele quer saber se você viu a aranha, pai”, traduziu o filho.

“Não vi. Tava escuro. Já deve estar longe”, falou, com certa dificuldade, enquanto tinha os membros massageados pelo médico para ir recuperando os movimentos.

O doutor verificou a pressão arterial e, sempre sério, voltou a olhar em direção ao filho e ao gerente. Este não conseguiu segurar um riso sutil.

“Pai, essa cueca é nova?”.

“Sei lá. Por quê?”.

O filho relutou, mas disse:

“O que tinha na sua bunda era a etiqueta com um alfinete. Foi isso que te espetou”.

O médico, mantendo o respeito, concluiu: "Afortunadamente, no parece haber ningún signo de picadura en su cuerpo, señor".

“Mas e a paralisia?”, perguntou o presidente, visivelmente contrariado.

“Le pasa a algunas personas en casos de mucho estrés. Pero parece que el efecto ha desaparecido”, explicou o médico.

“Ele disse stress? Comigo, não. Isso é coisa de fresco”.

O médico ignorou, passando a perguntar:“¿Puedes levantarte?”.

O presidente conseguiu sentar na beirada da cama e o filho aproveitou para tentar quebrar o gelo. “Que cueca perigosa, hein, pai? Graças a Deus foi só um susto”.

Mostrando-se ainda mais mal humorado com a piada diante daqueles estranhos, o presidente levantou-se com violência, confirmando estar bem. Antes que fizessem outra gozação, fechou o rosto, duro como uma rocha.

“Pois eu sei que levei uma picada. Talvez não de uma aranha, mas tenho certeza absoluta que não foi só um alfinete!”.

E, despachando os três homens para fora do quarto, falou em tom elevado com o filho: “Onde foi que você arrumou esse médico? O cara tem a maior cara de homossexual! E esses chilenos não entendem porcaria nenhuma de medicina”.

Soy cubano, señor”, disse o médico.

“Ah, piorou! Na próxima vez mandem um profissional de verdade, tá ok?”.

Então bateu a porta e ficou sozinho, nas sombras, intoxicado pelo único veneno de verdade que percorria suas veias.

domingo, abril 10, 2022

A Cafeteria (L.F.Riesemberg)

 


De alguns anos para cá tenho feito sempre a mesma coisa nas tardes chuvosas de sexta-feira. Eu caminho até esta cafeteria no centro, peço uma xícara de capuccino e bebo enquanto olho pela janela. Os atendentes já me conhecem, e sabem que prefiro o silêncio, então não me aborrecem puxando conversa.

Como falei, faço isto somente nas sextas de chuva. Se não for assim, nem entro neste lugar, porque já não será mais o mesmo. É preciso ter as condições ideais para conseguir o que busco, e só as obtenho se for numa sexta-feira chuvosa.

Tudo começou há muitos anos. Eu estava totalmente sem rumo na vida. Havia sofrido duas perdas recentes, e não tinha nenhuma vontade de continuar vivendo. Resolvi sair e caminhei por horas, atingindo uma parte da cidade que me era desconhecida. Enfim, começou a chover. 

Eu teria continuado minha rota por lugares cada vez mais estranhos, mas me deparei com as portas deste convidativo lugar.

Entrei, inexpressivo, nas dependências do estabelecimento, e me sentei nesta mesma mesa. O cardápio tinha vários tipos de café, que é uma bebida que não costumo rejeitar em nenhuma ocasião. Então pedi um capuccino a fim de ter uma sensação agradável, para variar. Há muito tempo eu não sabia o que era ter uma alegria, mesmo que das mais simples.

Enquanto sorvia lentamente o café, fiquei observando pelo vitrô os transeuntes com seus guarda-chuvas, e a água encharcando a via, sentindo-me privilegiado por estar ali dentro, protegido e aquecido. O som da chuva que chegava aos meus ouvidos era como o suave cantar dos anjos. E a simpatia dos atendentes coroava a situação. Era uma magnífica combinação de sensações, que me faziam sentir a alma sair do corpo e flutuar por uma região celestial.

Fechei meus olhos e voei. Vi a mim mesmo, sentado naquela cafeteria. Um sentimento muito estranho, mas agradável, tomou conta do meu ser. Não era como se eu olhasse no espelho. Havia algo mais profundo, como se eu estivesse conhecendo alguém. Aparentemente eu nunca havia notado que era real. As coisas sempre foram acontecendo na minha vida, uma após a outra, como que automaticamente. Eu nunca havia notado a minha presença, nem o quanto eu poderia mudar as coisas à minha volta, de acordo com minha vontade.

Nunca me senti tão poderoso quanto naquele momento.

Eu estava ali, no café, mas ao mesmo tempo eu estava em um trono. Eu era um homem comum, mas também era um rei, um herói ou um deus. Tudo ao meu redor era fantástico, cheio de cores, e sons e gostos maravilhosos, que eu poderia manipular de acordo com minha vontade, e eu nunca tinha percebido.

Aquilo foi uma revelação, um despertar para uma nova vida. Toda a minha existência passou diante dos meus olhos e pude avaliar cada erro, cada acerto. Comecei a imaginar, a fazer planos... Tudo isso em uma simples xícara de capuccino, em uma sexta-feira chuvosa, na mesa daquele café.

Este é o meu local, o meu refúgio, onde as leis do tempo e do espaço são suspensas e eu experimento a eternidade. É o momento onde eu saio da vida, para ficar mais vivo. É meu nirvana, meu clímax, meu estado de fascínio. 

Este café. Este dia da semana. Este clima. 

Espero que você encontre o seu.


sexta-feira, abril 08, 2022

A redação (L.F.Riesemberg)

 


Aquela pilha de textos dos meus alunos já deveria ter sido corrigida há semanas, mas algo sempre me adiava aquela tarefa. Havia os cuidados com meu pai no hospital, as brigas pelo recente divórcio, mas no fundo talvez fosse a apatia daquela turma do ensino médio que me tirava qualquer empolgação de mergulhar nos seus textos.

Porém, como a coordenadora já havia me cobrado duas vezes pelo fechamento daquelas notas, não tive opção. Peguei uma xícara de nescafé e comecei a leitura, que prometia ser tediosa e decepcionante.

Eu nunca me dei bem com esta turma. Costumo entrar em sala de aula dando bom dia, e normalmente ninguém responde. Continuam conversando quando começo a explicação, sem ao menos se dar ao trabalho de abrir o livro. Às vezes me sinto invisível diante daquelas faces inexpressivas. No início eu chegava a gritar com eles para que prestassem atenção às minhas falas. Mas com o tempo perdi totalmente o interesse e passei a apenas cumprir minha obrigação de estar presente e despejar o conteúdo, mesmo que ninguém estivesse ouvindo.

Há tempos tem sido assim, apenas fingindo que estou ensinando. E agora, ao ler esses textos, eu teria que entrar naquelas mentes das quais eu só queria distância. “Vamos acabar logo com isso”, pensei, pegando o maço de papel.

Como previsto, as primeiras narrativas já cometiam verdadeiros crimes contra a língua. Textos carentes de revisões e com a caligrafia sofrível desafiavam minha capacidade de lê-los até o final. Os menos ruins não passavam de contos tolos, medíocres, sem qualquer traço de criatividade.

Fui me torturando com aquelas péssimas histórias, até que cheguei em uma cujo título era O Incendiário, de um dos alunos menos participativos da turma. Na verdade aquele menino me dava arrepios. Era anormalmente calado, nunca interagia com os colegas nem demonstrava qualquer emoção. Sentava no canto da sala, geralmente com a cabeça coberta pelo capuz do agasalho, ocultando um fone de ouvido que eu fingia não notar.

Seu texto continha os típicos atentados ortográficos cometidos nas outras redações, mas aquele trabalho se destacava totalmente do resto. Narrava a história de um jovem que aparentemente tinha uma vida normal, vivendo com os pais, mas que em segredo praticava incêndios criminosos em sua vizinhança. O texto de oito páginas – o mais longo de toda a turma – descrevia com riqueza de detalhes o metódico planejamento de um desses crimes.

De início me deixei levar pela narrativa ágil. Mas conforme a história avançava, comecei a questionar se aquele adolescente teria capacidade para imaginar tantas minúcias sobre materiais inflamáveis e métodos de arrombamento. O que mais me perturbou naquele texto foi o desfecho, no qual o criminoso descrevia o prazer de assistir a um casal de idosos sendo queimados. A descrição do sofrimento das vítimas, contrastando com o sentimento de realização do personagem, me incomodou profundamente.

O conto era ótimo, afinal. Mereceu nota máxima, apesar dos erros gramaticais. Mas o meu incômodo não acabou com o fim do texto. Lembrei de uma notícia de semanas atrás, sobre um casal de idosos morto num incêndio, em um bairro próximo. Não dei muita atenção na época, supondo ter sido um lamentável acidente doméstico.

Mas uma rápida pesquisa nas notícias antigas revelou o que eu mais temia. O fogo ocorrera três dias antes da data em que o aluno me entregou a redação. E agora? Não posso ficar calado, diante da terrível possibilidade. “Amanhã falarei com o diretor do colégio sobre este aluno”, pensei. Não faria mal algum investigar.

Dormi muito mal naquela noite, imaginando a possibilidade de estar convivendo com um criminoso em sala de aula, e de ter recebido uma possível confissão num dever de casa. Ele poderia ter cometido outros crimes depois? Se ao menos eu tivesse lido as redações antes...

Era esse tipo de pensamento que passava pela minha cabeça quando cheguei ao colégio na manhã seguinte. Eu refletia no destino que o rapaz teria se fosse mesmo culpado, concluindo que esta possibilidade – a da redação ser um relato autêntico – era muito distante. Seria apenas ficção produzida por um estudante, não? Mas todas essas ideias foram interrompidas quando avistei a multidão em volta e a imensa fumaça negra que saía do prédio. Todo o colégio estava sendo consumido pelo fogo.

quarta-feira, abril 06, 2022

O Bombardeio (L.F.Riesemberg)

A brincadeira estava divertida, mas de repente tudo ficou estranho. O clarão e um som ensurdecedor ocorreram num piscar de olhos. Então Santiago só viu escombros. Sua casa era agora apenas um amontoado de pedras e de aço, semioculto pela névoa que surgira.

Em um minuto ele brincava na rua, com outras crianças, sob o sol do verão. No seguinte estava caído, coberto de pó e rodeado por trevas.

Ouviu gritos e soluços.

Com dificuldade, colocou-se em pé, tentando compreender o tumulto ao seu redor. Havia pessoas estiradas pelo chão, imóveis, enquanto outras corriam desordenadamente, como alucinadas.

No seu endereço, as paredes e o telhado se fundiam num desolador emaranhado. Em desespero o menino correu até aquele monte de blocos e fuligem que antes lhe servira de lar.

“Mamãe!”. “Papai!”. “Sarah!”.

Ele gritava e levantava as pedras, procurando incessantemente por qualquer vestígio de vida naquele sítio devastado. Suas frágeis mãos não tinham a força exigida, e os gritos por socorro de seus fatigados pulmões não obtinham qualquer resposta. Todos ali estavam ocupados procurando seus próprios mortos.

Vez ou outra esbarrava em algum desorientado que cambaleava pelo terreno, ainda sem compreender a exata dimensão da tragédia. Teria sido um ataque aéreo? Acidente ou proposital? Santiago sabia que as respostas poderiam vir com o tempo, mas não queria nem pensar nas dores que se arrastariam indefinidamente a partir dali.

Caiu de joelhos, observando a paisagem triste que se estabelecera. A rua de sua infância, palco de brincadeiras e amizades, havia se esfacelado de uma hora para outra.

Os pais e a irmã estariam debaixo de toneladas de concreto.

Somente um objeto colorido se destacou no chão cinzento. Um urso de pelúcia sorrindo, contrastando com todo aquele horror. Era o urso de Sarah, agora imundo e mutilado.

O garoto escondeu o rosto com as mãos e lamentou sua sorte. Aquele era o fim, que chegou sem qualquer aviso. Nada mais seria como antes...

Mas, de surpresa, um som agradável finalmente acariciava seus ouvidos. Era o som mais doce, em oposição aos ruídos cortantes que enchiam a atmosfera.

“Santiago, você está bem?”.

A voz surgia do meio da neblina cinzenta, como a luz de um farol que salva o marinheiro em noite escura. Impossível não reconhecer. Eram eles, os pais e a irmã, mãos estendidas em sua direção. Estavam intactos, com as vestes muito brancas e limpas, serenos, na mais pura representação da paz.

“Vamos conosco, meu filho. Sigamos o nosso caminho...”.

domingo, maio 30, 2021

A Ânsia (L.F. Riesemberg)

 


Muito cedo, antes do Sol despontar atrás das montanhas, quando a noite dava seus últimos suspiros, fui despertado por algo rondando a barraca. Permaneci em silêncio, temendo o ataque de predadores ou delinquentes, mas aquele ruído era totalmente estranho para mim. Arrisquei circundar o acampamento, empunhando uma arma. Ela não poderia combater o que espreitava, mas ainda assim minha ingênua ousadia me fez dar um grito longo e assombroso, intentando expulsar o invasor.

O berro ecoou pela mata, destruindo o silêncio e desestabilizando o intrincado sistema de criaturas micro e macroscópicas que viviam naquele habitat, de líquens e musgos a aves e roedores. Não percebi o tumulto que causei com tremendo ato, e fiquei a observar apenas uma floresta que parecia quieta e solitária, mas que se agitava intensamente e me observava com milhares de olhos.

Meu brado despertou algo que eu não poderia compreender naquele momento, e estranho fenômeno ocorreu. Uma força poderosa e antiga, presente em cada ser vivo daquele perímetro, reagiu em intensidade desigual contra mim. Não há palavras em línguas humanas para explicar, mas toda a energia dos arredores materializou-se em uma entidade tão bela quanto imponente, dando a entender que estivesse irritada com minha presença.

Naquele meu estado, ainda escravizado pela ignorância e pelas superstições, concluí que estava diante de uma assombração. A última lembrança de tal momento é a do espectro avançando sobre mim e aplicando uma mordida em meu antebraço – por menor sentido que isso possa fazer -  o que me causou um certeiro torpor e me tombou ao solo, com total perda dos sentidos.

Acordei com o sol no rosto, sem pistas sobre o que havia se dado realmente. O braço doía, mas não havia um ferimento visível. Não tardei a deixar a floresta e evitei relatar a experiência a qualquer conhecido, temendo que a maledicência me agredisse mais violentamente que aquela visagem. Planejei ocultar o sucedido nas entranhas da consciência, cobrindo com excessos de todo tipo, mas antes que pudesse dar o primeiro passo nesta direção, um estranho magnetismo me impediu.

Eu já havia marcado com dois companheiros um festival de luxúria e entorpecimento, quando um ímpeto irresistível me obrigou a cancelar o convite para praticar algo impensável. Ao invés de dar vazão aos desejos irracionais, típicos da carne, passei a noite dentro de casa, lendo um livro. Não era uma grande obra, visto que não havia qualquer outro exemplar no ambiente, mas foi um fato inédito em uma vida inteira sem pretensões intelectuais. Devorei as centenas de páginas em algumas horas, seguindo a atividade com uma espécie de embriaguez gramatical que me levou a declamar poemas janela afora.

Esse foi o primeiro episódio de uma série de ocorrências que me trouxeram, em dezoito meses, a este singelo relato que redijo desajeitadamente, atendendo a uma necessidade irresistível. Desde então não obtive um minuto de paz de espírito. Fui acometido por esta moléstia que não me permite ver o tempo passar sem que eu o aproveite de um modo que me enriqueça espiritualmente. Passei a sentir horror às banalidades, desenvolvi uma fobia de ignorância, em uma desesperada fuga da incultura, principalmente por constatar que gastei toda a minha vida no obscurantismo da mediocridade.

Enquanto escrevo, noto um homem na mesa ao lado. Sei que é um potencial suicida, pois seus olhos indicam uma depressão profunda com pensamentos em desalinho. Minha condição me obrigou a interromper este texto e a ir ter com ele, pois empatia é um dos sintomas deste distúrbio que me acometeu, e só estou voltando a empunhar o lápis depois que o pobre saiu reconfortado e decidido a buscar ajuda médica.

Estou chegando ao fim das folhas de papel e já prevejo a abstinência que sofrerei em seguida. Precisarei com urgência de Mozart em meus ouvidos, de Tolstói, de Sócrates, de correr para um museu, escrever um soneto. Estarei angustiado, necessitado de um debate, com fome de conhecimento, porque o que me mordeu naquela fatídica noite foi o espírito da natureza, a deusa da sapiência ou como queira chamar, mas me transmitiu este vírus que me faz querer sempre aprender mais, que me obriga a fazer cursos, a estudar metodologias, a pesquisar teorias, a formular hipóteses...

Sei que estranhas, caro leitor. “Como isso poderia ser ruim?”, tu dirás. Mas o problema não é a sede de conhecimento, e sim a sua ausência. Olho ao redor e só vejo indivíduos ainda iludidos, se entretendo com frivolidades, vivendo em uma caverna de ignorância, e isso me faz querer gritar, pedir para que por favor acordem dessa letargia, que leiam um livro, que busquem a verdade!

Às vezes minha dor é tamanha que sinto uma terrível vontade de também morder alguém, de passar esse vírus adiante, provocar uma epidemia de ânsia por conhecimento, acabar com esse mal que acomete a tantos, que é a estupidez humana. Há agora mesmo um jovem no recinto, cujo sorriso denuncia uma burrice voluntária, e estou salivando de vontade de atacá-lo, de fazê-lo acordar, mostrar que vive na escuridão. Mas sei que, se eu me aproximar, o segurança que não tira os olhos de mim virá rapidamente em meu desfavor, pois a cor da minha pele o incomoda mais do que tudo.   

sábado, maio 29, 2021

Biografia do autor

Alguns estudantes e professores frequentemente solicitam uma biografia do autor, para acrescentar aos seus trabalhos. Portanto seguem alguns dados a respeito:

Infância na rua Eduardo Sprada, em São Mateus do Sul (PR)

Luiz Fernando Ehlke Riesemberg nasceu em 06 de Outubro de 1980 em São Mateus do Sul, Paraná. Teve uma infância feliz, com toda a liberdade que uma pequena cidade do interior podia proporcionar naquela época, antes do surgimento da Internet. Filho de Gabriel Ludgero Moreira Riesemberg, técnico em contabilidade em uma refinaria de xisto, e de Rita Ehlke Riesemberg, dona de casa e cortineira, passou a infância em uma casa na rua Eduardo Sprada, onde morava com os pais e três irmãs mais velhas: Célia, Cláudia e Selma. 

O autor no clube de sua infância

Gostava de acampar, andar de bicicleta, brincar com bonequinhos de plástico e de explorar terrenos baldios. Junto com seus amigos da rua formou um clube, em um daqueles terrenos, onde havia uma velha casinha de madeira abandonada. Desde pequeno foi leitor de quadrinhos, principalmente os da Turma da Mônica e do Tio Patinhas, e mais tarde, na adolescência, apaixonou-se pelos livros do Sidney Sheldon, recomendados por seu pai. 

Cenário de muitas aventuras de sua infância 

A adolescência foi cheia de altos em baixos, iniciando feliz, como um prolongamento natural da infância dourada. Até os treze anos vivia rodeado de amigos, tanto na rua quanto na escola. Com os da rua vivenciava aventuras nas matas, estourava bombinhas e corria em carrinhos de rolimã. Com os da escola frequentava a videolocadora, ouvia discos, jogava videogame e lia quadrinhos. Sozinho, em casa, lia revistas.

Com 13 anos de idade

A leitura foi sua maior companheira entre os 14 e os 16 anos, quando as mudanças vindas com a idade fizeram suas amizades se evaporarem. Detestava o Ensino Médio, mas se encantou com as aulas de Literatura Brasileira. Foi graças à forma como os livros combateram sua solidão que nasceu a vontade de se tornar escritor, mas ainda não tinha maturidade nem prática suficientes para escrever suficientemente bem. Nesta época era bastante calado, solitário, triste, sentindo falta das alegrias compartilhadas com amigos. 

Com sua cachorra Tanza

Aos 17 mudou-se para a capital Curitiba, onde cursou a faculdade de Jornalismo e voltou a ter amigos, recobrando a alegria dos tempos da infância. Foi uma época de socialização e descobertas, onde houve um grande avanço sobre a timidez e a introversão adquiridas nos anos anteriores. 

Formatura como jornalista, aos 21 anos.

Após a formatura, voltou a morar com os pais em São Mateus do Sul. Seu primeiro emprego foi como professor e criador de conteúdo para o site da mesma escola onde fez o Ensino Médio, e os fantasmas que ainda habitavam aquele lugar voltaram a persegui-lo. Mesmo sem acreditar na sua vocação como professor, continuou dando aulas, ainda sonhando em se tornar escritor. Aos 22 anos ingressou na faculdade de Letras, em uma extensão da UEPG em São Mateus do Sul, com a intenção de aprender mais sobre Literatura. Foi nesta época que, inspirado pelo ambiente, começou a escrever. Logo em seguida, aos 23 anos, finalmente conseguiu um emprego como jornalista, no periódico semanal da cidade, e passou a praticar diariamente sua escrita.

Entrevistando o cantor Maurício Manieri

Seu primeiro conto foi Eu Não Matei Charles Bronson, escrito em 2003, e incluído em seu primeiro livro, Grafias Noturnas, lançado em 2009. Tinha interesse em escrever romances, mas optou pelos contos inicialmente como uma forma de exercício e para poder pedir aos professores que lessem seu trabalho e dessem suas opiniões. Uma dessas professoras, incentivando o aluno, lhe emprestou o livro O Homem Ilustrado, de Ray Bradbury, autor que passou a ser a maior inspiração para seus próprios contos. 

Com professores da faculdade de Letras

Desde que se formou em Jornalismo, aos 21 anos, sempre esteve envolvido com a área da Educação, dando aulas de Português ou Inglês em diversas instituições de São Mateus do Sul e da capital Curitiba, onde passou a morar em 2012, no mesmo ano em que se casou com a professora Rafaela da Rosa e nasceu seu filho, Tiago. 

Casamento com Rafaela, em 2012

De início Luiz Fernando Riesemberg não tinha interesse em seguir a carreira de professor, mas com o tempo passou a amar o ofício, principalmente pelo forte vínculo sentimental estabelecido com algumas de suas turmas.

Com alunos da Guarda Mirim do Paraná, em 2012

Segue escrevendo e recomenda a todos que façam o mesmo. "A escrita é uma cura. Eu deixo todas as minhas dores nas histórias e me sinto renovado a cada uma que finalizo", revela.



Sobre o site Contos Fantásticos:

O site Contos Fantásticos foi criado a princípio para a divulgação de contos de autores clássicos do gênero, e mais tarde passou a ser o local de publicação para seus próprios textos, depois de desiludir-se com a publicação de livros impressos. O tempo e as despesas necessários para a produção de um livro físico poderiam ser melhor empregados na escrita de novos trabalhos, desta vez voltados ao público da Internet. Os contos passaram a ser mais curtos e, percebendo que havia um grande público de professores e estudantes entre os leitores, passou a considerar sua produção literária como uma forma de contribuir com a Educação de seu país.

O Fantástico para L.F. Riesemberg, como assina seus contos, não é o tradicional, com histórias povoadas por criaturas folclóricas. Para o autor, Fantástico é tudo o que causa perplexidade, encanto e assombro, independentemente se é a aparição de um fantasma ou o bater das asas de uma borboleta. O escritor procura seguir a sugestão do mestre Ray Bradbury, quando este diz que as pessoas precisam constantemente renovar sua capacidade de assombro. 

"Para uma criança, tudo é Fantástico, porque para ela tudo é novo. Mas aos poucos ela vai perdendo essa habilidade de se encantar. Minha intenção, ao fazer Literatura Fantástica, é resgatar essa capacidade que perdemos de achar tudo maravilhoso", diz o autor. "Algo que acho fantástico é nossa habilidade de viajar no tempo através de nossas lembranças sobre o passado ou dos nossos sonhos sobre o futuro", continua. Os temas recorrentes na obra do autor são as saudades da infância, a passagem do tempo, a morte e, acima de tudo, o aprendizado de vida que tudo isso nos proporciona.

Seu conto A Máquina da Alegria foi incluído em um livro didático pela primeira vez em 2012, através da FTD, e desde então esta e outras histórias já apareceram em diversas publicações de diferentes editoras voltadas ao ensino. "Achei que minha missão era apenas ser escritor, mas com o tempo percebi que era algo muito maior. Adoro a ideia de poder estar em várias salas de aulas ao mesmo tempo, contribuindo para a educação de tantos jovens", conclui o autor.