“Meu
nome é Robert, hoje é uma segunda-feira e estou indo em direção ao trabalho
enquanto olho pela janela do ônibus e vejo o semáforo mudar para a luz verde”. Nessas
horas, forço a voz da minha cabeça a narrar tudo o que está acontecendo à minha
volta para eu voltar à realidade e não ser pego. Tem dias que funciona de
primeira, mas às vezes é mais duro, como está sendo hoje. Ninguém vê o que eu
vejo, mas se a coisa continuar a aparecer, as pessoas ao meu redor vão notar.
Volto a narrar, com minha voz mental, o que está acontecendo ao redor: “Uma
velhinha acabou de entrar no ônibus e ela paga o cobrador com moedas. Lá fora,
um ciclista passa perto demais de um automóvel e leva uma buzinada”. Parece que
funcionou, não estou mais vendo nada, graças a Deus.
Tudo
começou há mais de um ano. Não sou homem de festanças ou bebedeiras, mas
naquele carnaval um conhecido me levou até um inconfessável antro cheio de prazeres
e perdições. Não é um lugar para se ir, agora o sei, mas ébrios estávamos, e
nessas horas tudo o que fazemos é nos deixar guiar pelos instintos mais baixos
da carne e pelas sensações efêmeras com que os sentidos nos brindam. Assim,
durante horas, permaneci me entorpecendo e me relacionando com as mulheres mais
estranhas com quem eu já pude estar, ainda que, naquele momento, minha razão
não pudesse avaliar claramente o que eu estava fazendo.
De
todas as ações que vivi e pessoas com quem estive naquela noite, uma em
particular me chamou a atenção: uma mulher oriental, talvez chinesa, que por
algum motivo me fez pensar em um dragão de rasgados olhos vermelhos fumegando
pelas ventas. Oh, não se engane, ela era bela, com certeza. A visão do seu
corpo me entorpecera, e seus longos cabelos negros me envolveram como se fossem
uma coberta de seda. Os vapores dos entorpecentes me faziam ver coisas que,
agora, não sei dizer se eram reais ou apenas visões.
No
dia seguinte eu estava de ressaca, tentando juntar os cacos de memória para
compreender tudo o que havia se passado naquela noite de devassidão. Porém, a
lembrança mais forte que me vinha era a do rosto da mulher-dragão. Não sei
explicar de outro modo. Ela é uma mulher, mas tem uma energia densa e escura, e
me provoca arrepios. Não só isso, mas ela me causa uma ansiedade, a ponto de eu
não saber mais o que estou fazendo, aonde estou indo...
Isso
já me aconteceu tantas vezes, que já perdi as contas. Posso estar fazendo qualquer
coisa, como estar ouvindo uma música, ou tomando um café, e de repente sinto
calafrios que começam na base da coluna e sobem até a nuca. Nessas horas já sei
que vou vê-la rastejando, saindo de uma sombra. Então ela se coloca à minha
frente, com os cabelos imensos até o chão e os olhos com raiva, e solta um
grito gutural, assustador, como se eu houvesse lhe tomado algo muito valioso e
ela quisesse se vingar. Meu coração dispara, a pressão sobe às alturas e eu chego
a ter espasmos e convulsões até que alguém me salve.
Meu
terapeuta ensinou essa técnica, de quando começar a sentir que ela se aproxima,
começar a narrar o que está se passando ao meu redor, para eu voltar à
realidade. Ele diz que devo ter passado por algum trauma, algo que abalou ferozmente
o meu psiquismo, e reajo deste modo. Ele está tentando se aprofundar, durante
as sessões, para chegar no cerne do meu problema. Mas eu sei que não é nada
disso...
Naquela
noite, eu tive o azar de ser pego por uma antiga maldição. De tantos homens que
passaram por aquele local sinistro naquele carnaval, fui eu o brindado. Desde
então, sofro com a aparição, que me persegue quando menos espero, em qualquer
canto, e me faz agir como louco. Uma vez corri para a rua, tentando fugir, e
fui atropelado. Sei que, se não me cuidar, posso ser morto em uma dessas
crises, por isso tenho que sempre lembrar da técnica que me traz novamente ao
presente e me afasta da mulher-dragão.
Achei um livro na biblioteca outro dia. Um calhamaço
de capa dura, escrito em Português arcaico. E lá mencionava uma maldição que
teria chegado com um viajante que viera das Índias. Não cheguei na parte que
narra como tudo começou, mas entendi que, quando alguém é pego, não há escape.
A mulher é implacável e me perseguirá até conseguir o que deseja, que é minha
morte. Muitos homens já caíram vítimas dela. E agora sou eu... vejo-a ali,
debaixo daquele assento do ônibus, com seus olhos me fuzilando. Desvio o olhar e
tento narrar o que vejo. “O ônibus passa agora pela frente do banco, e ali se
encontra um vendedor de jornais”. Mas não está mais funcionando. A cada vez que
volto meus olhos para lá, a vejo mais próxima. “Uma moto de entrega passa ao
lado do ônibus”. Ela está mais perto. Não dá mais, não está funcionando, hoje
ela vai me pegar.
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