terça-feira, agosto 18, 2009

O Zahir (Jorge Luis Borges)


Em Buenos Aires, o Zahir é uma moeda comum, de vinte centavos; marcas de navalha ou de canivete riscam as letras N T e o número dois; 1929 é a data gravada no anverso. (Em Guzerat, em fins do século XVIII, um tigre foi Zahir; em Java, um cego da mesquita de Surakarta, que os fiéis apedrejaram; na Pérsia, um astrolábio que Nadir Shah mandou atirar no fundo do mar; nas prisões do Mahdi, por volta de 1892, uma pequena bússola que Rudolf Carl von Slatin tocou, envolta numa dobra de turbante; na mesquita de Córdoba, segundo Zotenberg, um veio no mármore de um dos mil e duzentos pilares; entre os judeus de Tetuan, o fundo de um poço.) Hoje é 13 de novembro; no dia 7 de junho, de madrugada, chegou às minhas mãos o Zahir; não sou o que então eu era, mas ainda me é dado recordar, e talvez contar, o ocorrido. Se bem que, parcialmente, ainda sou Borges.
Em 6 de junho morreu Teodelina Villar. Seus retratos, por volta de 193O, enchiam as revistas mundanas; essa abundância contribuiu talvez para que a julgassem muito bonita, embora nem todas as imagens apoiassem incondicionalmente essa hipótese. Além do mais, Teodelina Villar se preocupava menos com a beleza que com a perfeição. Os hebreus e os chineses codificaram todas as circunstâncias humanas; na Mishnah se lê que, iniciado o crepúsculo do sábado, um alfaiate não deve sair à rua com uma agulha; no Livro dos Ritos se lê que um hóspede, ao receber o primeiro copo, deve assumir um ar grave e, ao receber o segundo, um ar respeitoso e feliz. Análogo, porém mais minucioso, era o rigor que Teodelina Villar exigia de si mesma. Procurava, como o adepto de Confúcio ou
o talmudista, a irrepreensível correção de cada ato, mas seu empenho era mais admirável e mais duro, pois as normas de seu credo não eram eternas, já que se rendiam às casualidades de Paris ou de Hollywood. Teodelina Villar mostrava-se em lugares ortodoxos, em hora ortodoxa, com atributos ortodoxos, com tédio ortodoxo, mas o tédio, os atributos, a hora e os lugares caducavam quase imediatamente e serviriam (na boca de Teodelina Villar) para definição do ridículo. Procurava o absoluto, como Flaubert, mas o absoluto no momentâneo. Sua vida era exemplar e, no entanto, um desespero interior a roía sem trégua. Ensaiava contínuas metamorfoses, como para fugir de si mesma; a cor de seus cabelos e as formas de seu penteado eram famosamente instáveis. Também variavam o sorriso, a tez, a obliqüidade dos olhos. Desde 1932, foi estudadamente delgada... A guerra deu-lhe muito que pensar. Ocupada Paris pelos alemães, como seguir a moda? Um estrangeiro de quem ela sempre desconfiara permitiu-se abusar de sua boa-fé para vender-lhe uma porção de chapéus cilíndricos; durante o ano, propagou-se que esses objetos extravagantes nunca haviam aparecido em Paris e, por conseguinte, não eram chapéus, mas arbitrários e desautorizados caprichos. As desgraças não vêm sozinhas; o doutor Villar teve de mudar-se para a rua Aráoz e o retrato de sua filha ilustrou anúncios de cremes e de automóveis. (Os cremes que ela tanto se aplicava, os automóveis que já não possuía!) Ela sabia que o bom exercício de sua arte exigia grande fortuna; preferiu retirar-se a claudicar. Além disso, doía-lhe competir com garotinhas insubstanciais. O sinistro distrito de Aráoz mostrou-se demasiado oneroso; em 6 de junho, Teodelina Villar cometeu
o solecismo de morrer em pleno Barrio Sur. Confessarei que, movido pela mais sincera das paixões argentinas, o esnobismo, estava apaixonado por ela e que sua morte me afetou até as lágrimas? Talvez já o tenha suspeitado o leitor. Nos velórios, o progresso da decomposição faz com que o morto recupere suas faces anteriores. Em algum momento da confusa noite do dia 6, Teodelina Villar foi magicamente a que fora havia vinte anos; seus traços recobraram a autoridade imposta pela soberba, pelo dinheiro, pela juventude, pela consciência de coroar uma hierarquia, pela falta de imaginação, pelas limitações, pela estupidez. Pensei mais ou menos assim: nenhuma versão dessa face que tanto me inquietou será tão memorável como esta; convém que seja a última, já que pôde ser a primeira. Rígida entre as flores deixei-a, aperfeiçoando seu desdém pela morte. Seriam duas da manhã quando saí. Fora, as previstas fileiras de casas baixas e de casas de um pavimento tinham assumido esse ar abstrato que costumam assumir à noite, quando a sombra e o silêncio as simplificam. Ébrio de uma piedade quase impessoal, caminhei pelas ruas. Na esquina das ruas Chile e Tacuarí, vi um armazém aberto. Naquele armazém, para minha desgraça, três homens jogavam o truco.
Na figura que se chama oxímoro, aplica-se a uma palavra um epíteto que parece contradizê-la; assim os gnósticos falaram de luz obscura, os alquimistas, de um sol negro. Sair de minha última visita a Teodelina Villar e tomar cachaça num armazém era uma espécie de oxímoro; sua grosseria e sua facilidade me tentaram. (A circunstância de que se jogavam cartas aumentava o contraste.) Pedi uma aguardente de laranja; de troco, deram-me o Zahir; olhei-o por um instante; saí à rua, talvez com um princípio de febre. Pensei que não existe moeda que não seja símbolo das moedas que resplandecem interminavelmente na história e na fábula. Pensei no óbolo de Caronte; no óbolo que Belisário pediu; nos trinta dinheiros de Judas; nas dracmas da cortesã Laís; na antiga moeda que ofereceu um dos adormecidos de Éfeso; nas claras moedas do feiticeiro das Mil e Uma Noites, que depois eram círculos de papel; no denário inesgotável de Isaac Laquedem; nas sessenta mil peças de prata, uma para cada verso de uma epopéia, as quais Firdusi devolveu a um rei por não serem de ouro; na onça de ouro que Ahab fez cravar no mastro; no florim irreversível de Leopold Bloom; no luís cuja efígie denunciou, perto de Varennes, o fugitivo Luís XVI. Como num sonho, o pensamento de que toda moeda permite essas ilustres conotações pareceu-me de imensa, se bem que inexplicável, importância. Percorri, com crescente velocidade, as ruas e as praças desertas. O cansaço me deixou numa esquina. Vi uma gasta grade; por trás, vi os ladrilhos negros e brancos do átrio da Concepción. Errara em círculo; agora estava a uma quadra do armazém onde me deram o Zahir.
Dobrei; a esquina escura me indicou, de longe, que o armazém estava fechado. Na rua Belgrano tomei um táxi. Insone, possesso, quase feliz, pensei que não existe nada menos material que o dinheiro, já que qualquer moeda (uma moeda de vinte centavos, digamos) é, a rigor, um repertório de futuros possíveis. O dinheiro é abstrato, repeti, o dinheiro é tempo futuro. Pode ser uma tarde nos arredores, pode ser música de Brahms, pode ser mapas, pode ser xadrez, pode ser café, pode ser as palavras de Epicteto, que ensinam o desprezo pelo ouro; é um Proteu mais versátil que o da ilha de Faros. E tempo imprevisível, tempo de Bergson, não duro tempo do Islã ou do Pórtico. Os deterministas
negam que haja no mundo um único fato possível, id est um fato que pôde acontecer; uma moeda simboliza nosso livre-arbítrio. (Não suspeitava eu que esses "pensamentos" eram um artifício contra o Zahir e uma primeira forma de sua demoníaca influência.) Dormi após tenazes cavilações, mas sonhei que eu era as moedas que um grifo custodiava.
No dia seguinte, decidi que tinha estado bêbado. Também resolvi livrar-me da moeda que tanto me inquietava. Olhei-a: nada tinha de particular, a não ser algumas ranhuras. Enterrá-la no jardim ou escondê-la num canto da biblioteca teria sido o melhor, mas eu queria distanciar-me de sua órbita. Preferi perdê-la. Não fui ao Pilar, essa manhã, nem ao cemitério; fui, de metrô, a Constitución e de Constitución a San Juan e Boedo. Saltei, impensadamente, em Urquiza; dirigi-me ao oeste e ao sul; baralhei, com desordem estudada, umas quantas esquinas e, numa rua que me pareceu igual a todas, entrei num botequim qualquer, pedi uma caninha e paguei-a com o Zahir. Entrecerrei os olhos, por trás das lentes esfumadas; consegui não ver os números das casas nem o nome da rua. Essa noite, tomei uma pastilha de veronal e dormi tranqüilo.
Até fins de junho, distraiu-me a tarefa de compor um conto fantástico. Ele encerra duas ou três perífrases enigmáticas – em lugar de sangue, traz água da espada; em lugar de ouro, leito da serpente – e está escrito em primeira pessoa. O narrador é um asceta que renunciou ao trato com os homens e vive numa espécie de páramo. (Gnitaheidr é o nome desse lugar.) Dada a candura e a simplicidade de sua vida, há os que o julgam um anjo; isso é um piedoso exagero, pois não existe homem que esteja livre de culpa. Sem ir mais longe, ele mesmo degolou seu pai; é bem verdade que este era um famoso feiticeiro que se apoderara, por artes mágicas, de um tesouro infinito. Resguardar o tesouro da insana cobiça dos humanos é a missão a que dedicou sua vida; dia e noite vela sobre ele. Rápido, talvez demasiadamente rápido, essa vigília terá fim: as estrelas disseram-lhe que já se forjou a espada que a decepará para sempre. (firam é o nome dessa espada.) Num estilo cada vez mais tortuoso, pondera o brilho e a flexibilidade de seu corpo; em algum parágrafo, fala distraidamente de escamas; em outro, diz que o tesouro que guarda é de ouro fulgurante e de anéis vermelhos. No final, entendemos que o asceta é a serpente Fafnir e o tesouro em que jaz, o dos Nibelungos. A aparição de Sigurd corta bruscamente a história.
Disse que a execução dessa ninharia (em cujo decurso intercalei, pseudoeruditamente, algum verso da Fáfnismál) permitiu-me esquecer a moeda. Noites houve em que me acreditei tão seguro de poder esquecê-la que voluntariamente a recordava. O certo é que abusei desses momentos; dar-lhes início resultava mais fácil que lhes dar fim. Em vão repeti que esse abominável disco de níquel não diferia dos outros que passam de uma para outra mão, iguais, infinitos e inofensivos. Impelido por essa reflexão, procurei pensar em outra moeda, mas não pude. Também me lembro de alguma experiência, frustrada, com cinco e dez centavos chilenos e com um vintém oriental. Em 16 de julho, adquiri uma libra esterlina; não a olhei durante o dia, mas nessa noite (e outras) coloquei-a sob uma lente de aumento e estudei-a à luz de uma poderosa lâmpada elétrica. Depois, desenhei-a com um lápis, através de um papel. De nada me valeram o fulgor e o dragão e São Jorge; não consegui livrar-me da idéia fixa.
No mês de agosto, optei por consultar um psiquiatra. Não lhe confiei toda a minha ridícula história; disse-lhe que a insônia me atormentava e que a imagem de um objeto qualquer costumava perseguir-me; a de uma ficha ou a de uma moeda, digamos... Pouco depois, exumei em uma livraria da rua Sarmiento um exemplar de Urkunden zur Geschichte der Zahirsage (Breslau, 1899), de Julius Barlach.
Naquele livro estava declarado meu mal. Segundo o prólogo, o autor se propôs "reunir em um único volume em legível oitavo-maior todos os documentos que se referem à superstição do Zahir, inclusive quatro peças pertencentes ao arquivo de Habicht e o manuscrito original do relatório de Philip Meadows Taylor". A crença no Zahir é islâmica e data, ao que parece, do século XVIII. (Barlach impugna as passagens que Zotenberg atribui a Abulfeda.) Zahir, em árabe, quer dizer evidente, visível; em tal sentido, é um dos noventa e nove nomes de Deus; a plebe, em terras muçulmanas, chama-o de "os seres ou coisas que têm a terrível virtude de ser inolvidáveis e cuja imagem acaba por enlouquecer as pessoas". O primeiro testemunho incontrovertido é o do persa Lutf Ali Azur. Nas derradeiras páginas da enciclopédia biográfica intitulada Templo do Fogo, esse polígrafo e dervixe narrou que, num colégio de Shiraz, houve um astrolábio de cobre, "construído de tal modo que quem o olhasse uma vez não pensava em outra coisa e assim o rei ordenou que o atirassem no mais profundo do mar, para que os homens não se esquecessem do universo". Mais extenso é o relatório de Meadows Taylor, que serviu ao soberano de Haidarabad e compôs a famosa novela Confessions of a Thug. Por volta de 1832, Taylor ouviu nos arrabaldes de Bhuj a estranha locução "Ter visto o Tigre" (Verily he has looked on the Tiger) para significar a loucura ou a santidade. Disseram-lhe que a referência era a um tigre mágico, que foi a perdição de quantos o viram, mesmo de muito longe, pois todos continuaram pensando nele até o fim de seus dias. Alguém disse que um desses desventurados fugira para Mysore, onde pintara num palácio a figura do tigre. Anos depois, Taylor visitou os cárceres desse reino; no de Nithur, o governador lhe mostrou uma cela em cujo piso, em cujos muros e em cuja abóbada um faquir muçulmano desenhara (em bárbaras cores que o tempo, em vez de apagar, delineava) uma espécie de tigre infinito. Esse tigre estava feito de muitos tigres, de vertiginosa maneira; atravessavam-no tigres, estava raiado de tigres, incluía mares e Himalaias e exércitos que pareciam outros tigres. O pintor morrera, havia anos, nessa mesma cela; vinha de Sind ou talvez de Guzerat e seu propósito inicial fora traçar um mapa-múndi. Desse propósito restavam vestígios na monstruosa imagem. Taylor narrou a história a Muhammad Al-Yemeni, de Fort William; este lhe disse que não havia criatura no mundo que não se inclinasse para Zaheer,1 mas que o Todo-Misericordioso não deixa que duas coisas o sejam ao mesmo tempo, já que uma só pode fascinar multidões. Disse que sempre existe um Zahir e que na Idade da Ignorância foi o ídolo que se chamou Yauq e depois um profeta do Kurassan, que usava um véu recamado de pedras ou uma máscara de ouro.2 Disse também que Deus é inescrutável.
Muitas vezes li a monografia de Barlach. Não decifro quais foram meus sentimentos; recordo o desespero quando compreendi que já nada me salvaria, o intrínseco alívio de saber que eu não era culpado de minha desdita, a inveja que me deram aqueles homens cujo Zahir não foi uma moeda mas um pedaço de mármore ou um tigre. Que empresa fácil não pensar num tigre, refleti. Também me lembro da inquietude singular
com que li este parágrafo: "Um comentador do Gulshan i Raz diz que quem viu o Zahir logo verá a Rosa e cita um verso interpolado no Asrar Nama (Livro de Coisas que se Ignoram), de Attar: o Zahir é a sombra da Rosa e a rasgadura do Véu".
Na noite em que velaram Teodelina, surpreendeu-me não ver entre os presentes a senhora de Abascal, sua irmã mais moça. Em outubro, uma sua amiga me disse:
– Pobre Julita, ficou tão estranha que a internaram no Bosch. Como não estará estafando as enfermeiras que lhe dão comida na boca! Continua obcecada pela moeda, idêntica ao chauffeur de Morena Sackmann. O tempo, que atenua as lembranças, agrava a do Zahir. Antes, eu imaginava o anverso e depois o reverso; agora, vejo simultaneamente os dois. Isso não ocorre como se fosse de cristal o Zahir, pois uma face não se superpõe à outra; ocorre, isso sim, como se a visão fosse esférica e o Zahir sobressaísse no centro. O que não é o Zahir me chega depurado e como que distante: a desdenhosa imagem de Teodelina, a dor física. Disse Tennyson que, se pudéssemos compreender uma única flor, saberíamos quem somos e o que é o mundo. Talvez quisesse dizer que não existe fato, por humilde que seja, que não implique a história universal e sua infinita concatenação de efeitos e causas. Talvez quisesse dizer que o mundo visível se dá inteiro em cada representação, da mesma maneira que a vontade, segundo Schopenhauer, se dá inteira em cada indivíduo. Os cabalistas entenderam que o homem é um microcosmo, um simbólico espelho do universo; tudo, segundo Tennyson, o seria. Tudo, até o intolerável Zahir.
Antes de 1948, o destino de Julia talvez já tenha me atingido. Terão de alimentar-me e vestir-me, não saberei se é tarde ou manhã, não saberei quem foi Borges. Qualificar de terrível esse futuro é uma falácia, já que nenhuma de suas circunstâncias terá significado para mim. Tanto valeria sustentar que é terrível a dor de um anestesiado a quem abrem o crânio. Já não perceberei o universo, perceberei o Zahir. Segundo a doutrina idealista, os verbos viver e sonhar são rigorosamente sinônimos; de milhares de aparências, passarei a uma; de um sonho muito complexo a um sonho muito simples. Outros sonharão que estou louco, e eu com o Zahir. Quando todos os homens da terra pensarem, dia e noite, no Zahir, qual será um sonho e qual uma realidade, a terra ou o Zahir?
Nas horas desertas da noite ainda posso caminhar pelas ruas. A aurora costuma surpreender-me num banco da praça Garay, pensando (procurando pensar) naquela passagem do Asrar Nama, na qual se diz que o Zahir é a sombra da Rosa e a rasgadura do Véu. Vinculo essa opinião a esta notícia: para perder-se em Deus, os sufis repetem seu próprio nome ou os noventa e nove nomes divinos até que eles já nada querem dizer. Eu desejo percorrer esse caminho. Talvez acabe por gastar o Zahir à força de pensar e repensar nele; talvez, por trás da moeda, esteja Deus.

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