quarta-feira, março 27, 2024

O Último Dia (L.F. Riesemberg)

 


Cheguei ao hospital por volta das sete e, do alto de sua cama, ele sorriu ao me ver entrar. Emagrecido, parecia menor sob aquele amontoado de cobertas, vestindo um gorro grande demais para a cabeça. Meu pai era apenas uma sombra do homem forte que sempre fora, mas ainda demonstrava uma resiliência desconcertante, nem sequer pensando em desanimar.

O cumprimentei com um beijo no rosto e sentei na poltrona ao lado. Ele estava animado por ter passado uma noite tranquila, o que significava simplesmente que não havia tido a necessidade de ser transferido para a UTI, como acontecera algumas vezes no último mês. Sua saúde piorara drasticamente desde o início daquele ano, mas já havia sido internado tantas vezes, e melhorado de emergências tão assustadoras, que nada mais nos angustiava tanto. Naquele momento ele estava se sentindo bem, e era isso que importava.

Ele reclamou de frio, o que foi amenizado ligando o aquecedor, e depois o ajudei com o café da manhã, dando colheradas de mingau de aveia em sua boca. Ligamos a tv, e estava passando um programa de sobrevivência na neve, o que garantiu nossa atenção por alguns minutos, até que a chegada de duas enfermeiras interrompeu o programa. Era hora do banho.

Elas despiram meu pai, apesar de seus protestos contra o frio, e ali mesmo, no leito, o higienizaram com lenços umedecidos e cremes. Em seguida trocaram sua fralda, visão que sempre me fazia me sentir estranho, por mais que eu já tivesse presenciado aquela cena outras vezes. Parecia que ali era eu o homem, e meu pai a criança, e isso não me soava nada natural. Apesar disso, meu pai estava muito brincalhão e interagiu alegremente com as moças, fazendo piadas e arrancando gargalhadas de todos nós. Por fim, ajudei-as a trocar os lençóis, já que fazer aquilo sem tirar o paciente da cama exigia certa dose de esforço.

Toda aquela movimentação foi cansativa para ele, pois logo que as enfermeiras se despediram, pediu para tirar um cochilo. Apaguei as luzes e fiquei em silêncio, esperando que descansasse. Naquela tarde ele passaria por uma pequena cirurgia, o que não deixava de ser preocupante. Cada dia havia uma nova surpresa em relação ao seu estado de saúde, e nos restava ter a esperança de que ele atravessaria, mais uma vez, outro desafio.

A força de meu pai era incrível. Eu nunca terei a garra para enfrentar tantas dores e desafios como ele demonstrara, na última década, desde que seus problemas se tornaram mais evidentes. Lembro de muitas vezes segurar sua mão enquanto um enfermeiro tentava achar uma veia boa, picando insistentemente seu braço com uma grossa agulha, pois eu queria sentir a dor por ele.

Aquele sono durou até o momento em que o médico foi ao quarto e deu algumas explicações sobre como seria a vida de meu pai depois que ele voltasse para casa. Uma alimentação muito restrita, sem líquidos, com a necessidade de três hemodiálises por semana. Papai ouviu tudo com a habitual resiliência e apenas brincou: “Puxa, eu queria sair daqui direto para uma churrascaria”, tirando uma pequena gargalhada de si mesmo.

Ficamos em silêncio após a saída do doutor, imaginando como seria essa nova vida após a alta. Eu não queria pensar daquele jeito, mas não seria uma vida de verdade. Exigiria muitos esforços, haveria muito sofrimento, mas ainda assim ele não estava reclamando, e eu tinha certeza de que se manteria assim, até o último dia.

Devido a cirurgia marcada, naquele dia ele não poderia almoçar. Fiquei com muita pena quando chegou o meu prato e ele sentiu o cheiro de comida. Comi o mais rápido que pude, para não torturá-lo com aquilo, e depois procurei conversar sobre histórias felizes do passado, na tentativa de distraí-lo.   

Pouco depois vieram buscá-lo. Não falávamos a respeito do que estava acontecendo. Apenas obedecíamos às exigências do momento, que incluíam vestir o camisolão, o que significava que meu pai passaria frio outra vez. Eu acompanhei a enfermeira para fora do quarto, ajudando-a a empurrar a maca, sem tirar os olhos do meu pai, que parecia saber o que ia acontecer. Seus olhinhos levemente tristes me diziam muito naquele trajeto. Eu podia ler neles um pouco de medo, mas nem de longe se comparava ao terror que eu estava sentindo, por ver meu pai tão frágil sendo levado para uma cirurgia.

E se desistíssemos? Ele estava tão bem naquele dia! Brincava. Fazia piadas. E se prolongássemos aquelas horas agradáveis? Pensei em despistar a enfermeira e correr com a maca para fora do hospital, colocá-lo ao sol, que ele não sentia na pele há mais de um mês. Ele teria gostado de fazer uma loucura dessas comigo?

Mas tudo o que fiz foi acompanhá-lo em silêncio, com as pernas e o olhar, até o último ponto em que eu podia ir, diante da entrada do centro cirúrgico. Dei um último beijo em seu rosto e ele foi, com a coragem de sempre, sem deixar de dizer uma última frase, que expressava toda a sua existência perante a minha: “Filho, eu te amo. Nunca se esqueça disso...”. Falou lentamente, talvez segurando o choro, e eu respondi de imediato: “Eu também te amo, pai”, sabendo que ele estaria logo ali, sorrindo outra vez, como sempre fizera depois de tantas outras adversidades muito piores que aquela, e em cujo exemplo sempre me inspirarei, até o dia em que eu próprio, fatalmente, enunciar a minha última despedida.

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