terça-feira, fevereiro 20, 2024

O Defumador (L.F.Riesemberg)

 


Às sextas-feiras era o dia de defumar a casa. Não sei de onde surgiu tal costume, mas minha mãe sempre tinha três caixas de diferentes defumadores em tabletes, e religiosamente, uma vez por semana, cumpria o ritual, tendo a mim como ajudante. Primeiro pegávamos os tabletes, que eram de diferentes colorações - um verde, outro amarelo, outro vermelho - e atendiam por nobres nomes como Hei de Vencer, Abre Caminho e Anjo da Guarda.

Em seguida os acendíamos, com certa dificuldade, sempre gastando vários palitos de fósforo no processo. Somente após a ponta acender com uma chama, a qual rapidamente apagávamos com um leve sopro, é que a fumaça começava a esvoaçar e dávamos início à peregrinação doméstica. Mamãe na frente, de chinelos de dedo e lenço amarrado na cabeça, segurando o pires com os três defumadores equilibrados esfumaçando, e eu atrás, a seguindo. Íamos orando mentalmente, pedindo aos bons espíritos que limpassem o ambiente e que todo o mal se afastasse do nosso lar.

Começávamos pela sala, fumegando cada canto, inclusive atrás do sofá, pois poderia haver ali algum espírito escondido. Mas aonde quer que a fumaça branca chegasse, varreria todo o mal invisível que lá se ocultasse. Então íamos aos quartos, os preenchendo com o odor adocicado de ervas e serragem. Nenhum cômodo era esquecido, nem mesmo a despensa, a churrasqueira, a garagem. Por fim, dávamos a volta na casa, sempre em silêncio, desejando a proteção dos anjos da guarda, e deixávamos os tocos dos defumadores terminando de queimar em um canto meio escondido na área externa, ao chão, para papai não ver quando chegasse do trabalho. Não que ele proibisse nosso ritual, mas ele não acreditava.

Passados muitos anos, relembro nossas defumações e percebo que, só depois que cresci e interrompemos aquele costume, é que as coisas tristes começaram a acontecer. A razão diria que uma coisa não tem nada a ver com a outra, e que quando crescemos o normal é que a vida pare de ser cor-de-rosa como na infância, e que deixemos de crer nas fantasias de então.

Mesmo assim, debaixo dos meus cabelos grisalhos, dou uma olhada ao redor, sentindo o turbilhão em que se transformou o lar formado, e desejo que as coisas possam voltar à simplicidade dos tempos de criança. Que bom seria acender um defumador e espantar todos os maus espíritos que causam tamanha infelicidade, afugentar os monstros que ainda assombram, mais assustadores do que nunca. Mais que isso, que bom seria percorrer os cômodos desta casa atraindo a proteção de guias, a bênção de anjos, a alegria de seres iluminados.

Sozinho, desolado com os males que frequentemente se abatem sob este teto, retiro da sacola sobre a mesa as três caixas retangulares da loja de produtos religiosos, e observo as embalagens idênticas às da minha infância. Acendo os três tabletes, com a mesma dificuldade de antes, quase queimando a ponta dos dedos, e após um sopro desajeitado vejo a fumaça branca tomar conta, adocicando o ar ao redor com seu conhecido perfume de serragem, alecrim e alfazema.

Percorro os cômodos da casa com a fé de que aquela fumaça espantará cada espírito que causa meus dissabores, e que tudo o que sempre desejei chegará rapidamente até mim. Espalho a doce emanação por trás de cada objeto, dentro de todo armário, até mesmo pelo boxe do banheiro, fazendo minha prece mental, agradecendo por, apesar de tudo o que houve nas últimas décadas, eu ainda estar por aqui, sobrevivendo, com a coragem para tomar rumos desconhecidos.

Naquele dia eu não sabia, mas estava cercado por uma legião de bons espíritos, que conforme eu andava pelos cômodos iam me enchendo de ânimo para não desistir. E o mais iluminado deles, de chinelos de dedo e lenço na cabeça, caminhava à minha frente, me inspirando, me abençoando, me guiando. “Tenha paciência, filho, que teus caminhos estão se abrindo outra vez”.

quarta-feira, janeiro 24, 2024

Memórias (L.F.Riesemberg)

 



Chegamos ao café e olhei ao redor, procurando gravar o máximo de detalhes daquele local. Graças a isso, jamais esquecerei da mesa onde ficamos, debaixo de velhos canecos de chopp pendurados no teto, ao lado da grande janela que apontava para verdes folhagens. Nunca esquecerei da conversa interminável da garçonete, que antes mesmo de sentarmos, contou toda a triste história de como viu a velha dona daquele lugar ir muito doente dar uma última olhada no estabelecimento antes de morrer. Também não esquecerei das duas moças sentadas na mesa ao lado, que chegaram depois de nós e partiram antes, já que ficamos conversando por quase três horas, lembrando histórias da nossa infância.

Sempre hei de recordar o momento em que deixamos o café já à noite e caía uma fina chuva, cujas gotas estavam douradas graças à luz dos holofotes, e que corremos de mãos dadas até o automóvel. E, é óbvio, lembrarei para sempre do primeiro beijo, dentro do carro estacionado, debaixo daqueles mesmos pingos dourados de chuva que escorriam pelo para-brisa.

A história de nós dois é antiga, começa na pré-escola. Minha tendência era gravar na memória apenas os momentos que me causaram embaraço e remorso, como quando a fiz chorar depois que fechei a apostila para que não copiasse minha tarefa, ou quando, ao fazer um trabalho em sua casa, derramei o copo de Tang de laranja que sua mãe havia me dado, encharcando a toalha. Senti tanta vergonha que nem pude pedir desculpas.

Mas passaram-se quase quarenta anos destes dois acontecimentos, quarenta voltas ao redor do Sol, nas quais estivemos separados, lutando sozinhos nossas próprias lutas. Como dois viajantes, enfrentamos os perigos deste longo trajeto e sobrevivemos, até que aconteceu o fato mais natural de todos, segundo as leis da física. Um professor me ensinou que os elementos se buscam porque os átomos estão sempre tentando alcançar o estado mais estável possível. E cá estamos nós, juntos outra vez.

Das memórias que ambos guardávamos da terna infância, a mais forte é a de minha mãe prevendo que um dia iríamos nos casar. Conforme a minha já anunciada tendência, não esqueci disto por conta do embaraço que isso outrora me causava. Porém, hoje, é apenas doce a ideia de estar contigo pelo tempo que nos resta. E é por isso que, a cada encontro que tivermos, farei todos os esforços para gravar até os menores detalhes.

Assim como fiquei todos esses anos com você em minha mente, querendo me desculpar por ter te causado lágrimas um dia, meu sonho hoje é passar a eternidade rememorando os momentos cheios de beleza que ainda teremos juntos, gravando cada minúcia, cada detalhe, para brilharem eternamente em minha mente, como uma noite estrelada ou uma mina de diamantes.  

quarta-feira, julho 26, 2023

A Japonesinha (L.F.Riesemberg)


 Rick não estava muito interessado naquele encontro, mas como há muito tempo não beijava ninguém, resolveu que aproveitaria a chance. Havia conversado muito com ela pelo bate-papo e uma única vez ao telefone. Ela parecia fazer o tipo ingênua e boa-moça, que ria de todas as suas piadas. Fisicamente, a única descrição que tinha dela era a de ser “descendente de orientais”. Não era o que ele queria, mas aceitava.

Encontraram-se na frente do shopping, como era comum. Ela atrasou, pois havia esperado na entrada errada, o que gerou os primeiros risos entre os dois. Decidiram ir a outro local e caminharam alguns quarteirões – em cujo tempo ganharam alguma cumplicidade. No caminho, Rick pensou: Ficarei hoje com ela, mas será a única vez.

Ele nunca havia feito isso. Toda vez que alguém demonstrava interesse, ele se apaixonava. Estava cansado de sofrer. Queria simplesmente curtir, como muitos jovens faziam. Desta vez não se sentiria culpado por não iniciar um relacionamento sério depois de alguns beijos. Queria apenas a diversão daquelas horas e depois dispensaria a moça, por mais que essas palavras não caíssem muito bem.

Compraram os ingressos para o filme que estreara, mas ainda havia uma hora para a sessão. Caminharam lado a lado, pelas lojas de discos, conversando sobre música. Ela sempre sorridente e falante. Havia uma luz especial nela, quase infantil. Ele estava contido, mas apreciando o momento. Sentia como se tivesse levado uma criança para passear. Porém, a intenção de beijar na boca não cessara, e os pequenos esbarrões que davam sem querer na caminhada apenas aumentavam sua vontade.

Era evidente que ela também queria. Às vezes ele a pegava encarando fixamente, por uma fração de segundo, o admirando, mas a timidez os fazia disfarçar. Até que chegou a hora de ver o filme.

Na sala escura, a tensão subiu. O filme era bom, então Rick não quis tirar os olhos da tela. Mas, num ímpeto de audácia, avançou os dedos para a poltrona ao lado e tocou a sua mão. Foi um misto de ingenuidade com o mais alto atrevimento, e aqueles dois quase-estranhos passaram a hora seguinte de mãos dadas, como se fossem um casal.

Ao fim da exibição, veio a dúvida: seguiriam segurando a mão um do outro? Ou se largariam e agiriam como se nada tivesse acontecido? Quando as luzes acenderam e era hora de levantar, ela olhou para ele e ficou novamente encarando, desta vez sem desviar, dizendo muito com aqueles olhinhos puxados. Ele, compreendendo, avançou a boca para a dela e deram ali seu primeiro beijo.

Foram segundos mágicos, como sempre é o primeiro beijo em alguém. Quando terminou, já eram pessoas diferentes, quase como uma só. Saíram do cinema caminhando de mãos dadas da maneira mais natural possível.

O resto da tarde foi de muitos beijos. Entre um e outro havia aquelas conversas triviais que os animavam. Uma delas sobre cachorros. Descobriram que ambos tinham cães da mesma raça: Akita. Assim, a tarde se esvaiu muito rápido, e chegou a hora da despedida.

Diante da estação, abraçados, a noite começava a cair. Quando a condução dela estava chegando, ele perguntou se ela havia gostado do dia. “Muito”, respondeu. “Hoje foi muito especial”. E aquelas palavras tinham um sabor agridoce, pois ele sabia que aquilo nunca mais se repetiria.

Ele chegou em casa satisfeito e pronto para a próxima. Aquela japonesinha ficaria guardada na sua memória, mas nunca a procuraria novamente. Ela ligou dias depois, desejando um novo encontro, mas ele disse que não podia ir, e assim perderam contato.

Passaram-se mais de vinte anos daquele dia. Rick pensa em sua vida, e acha que, se tivesse ficado com aquela jovem simpática e ingênua, iluminada, que estava realmente interessada nele, muitas das suas decepções atuais teriam sido evitadas. Como seria sua vida se tivessem casado? Onde estará a japonesa hoje? Infelizmente não há nenhuma pista para procurá-la, e mesmo que houvesse, hoje ela não seria mais aquela moça graciosa, como eu não sou aquele jovem e impetuoso Rick. Eu não construí nada do que me orgulhe e, por isso minha luz se apagou. Estou envelhecido e morrendo...

Ainda bem que possuo, ao menos, a lembrança daquele dia feliz, em que fui amado por uma jovenzinha de olhos puxados chamada Luciane. É o que me resta: todos os dias fecho os olhos e me transporto para aquela tarde. Foi um dia quase banal, mas que hoje tem um gosto muito diferente.

Obrigado por este presente. Desculpa por ter estragado tudo. Espero, com minhas últimas forças, que a sua luz continue brilhando.

sábado, maio 20, 2023

Peçonhento (L.F.Riesemberg)

 

O presidente da República tinha ido ao Chile, em uma viagem diplomática. Os compromissos oficiais já haviam encerrado, mas antes de retornar ao Brasil o chefe de Estado resolveu passar uma noite em Valparaíso - não por ter sido a morada de Pablo Neruda, mas por ser a cidade natal do seu verdadeiro herói, Augusto Pinochet.  

Após uma tranquila tarde no hotel, abusando das cervezas e das empanadas de pino servidas à beira da piscina, o presidente retirou-se sozinho para a luxuosa suíte e caiu na espaçosa cama vestindo apenas uma cueca verde-oliva. Já havia fechado os olhos, pensando nas futuras eleições e esperando o sono chegar, quando foi surpreendido por uma dolorosa picada na nádega esquerda. Imediatamente ele recordou, em silencioso desespero, de uma notícia que recebera dias antes em um grupo, sobre a “epidemia” de animais peçonhentos, ou seja, venenosos, que ocorria naquele país.

O aviso de “utilidade pública”, enviado por um confiável eleitor, destacava a perigosa aranha-reclusa chilena (Loxosceles laeta), com a recomendação de que, enquanto estivesse no Chile, examinasse atentamente o interior dos sapatos antes de calçá-los. De acordo com o texto amplamente compartilhado, o mencionado aracnídeo era muito pequeno, tinha hábitos noturnos e sua mordedura poderia matar um boi.

Sua experiência como capitão do exército o indicou que, numa situação como aquela, era necessário ter sangue frio e procurar ajuda o mais rápido possível. Prestou atenção aos sinais vitais, já sentindo um aumento da frequência cardíaca e certa dificuldade para respirar. Apesar do seu histórico de atleta, teria que agir rápido, ou no dia seguinte todos os brasileiros estariam de luto.

O telefone celular estava sobre a mesa de cabeceira (ainda chamada de “criado-mudo” pelo presidente), à direita da cama, mas assim que tentou apanhá-lo para chamar alguém, teve uma nova surpresa. Percebeu, aterrorizado, que não conseguia mexer nenhum músculo. Apenas seus globos oculares se moviam, mas o resto do corpo estava completamente paralisado. Lembrou-se, assim, de outro trecho da notícia lida, que falava sobre as aranhas injetarem uma proteína imobilizante em suas presas.

Imediatamente sentiu-se como quando vive a experiência de paralisia do sono, quase toda semana. Nessas ocasiões, ao dormir, fica preso em um recorrente pesadelo no qual milhões de brasileiros mortos o acusam, sem que possa se mover ou gritar. Porém, o que estava se passando no momento, naquele hotel, não era nenhum sonho, mas algo real - e o terror estava intensificado por haver uma dose de veneno em seu sangue.

Pensou nas opções que lhe restavam para sair daquela situação, e concluiu que a morte por falência de algum órgão vital seria inevitável, a não ser que conseguisse mover a mão até o telefone e chamar alguém.

Concentrou-se, tentando superar a dolorosa mortificação dos membros, e depois de muito tempo conseguiu esticar o dedo mínimo. Apesar do sufoco, sua insistência fez com que após alguns instantes conseguisse levantar toda a mão, o que se seguiu a uma rudimentar elevação do braço.

Da testa brotavam gotas de suor, e com muito esforço o presidente conseguiu heroicamente esticar o braço e derrubar a mão amortecida sobre o aparelho telefônico. Quase vencera o formigamento local, mas temendo que a aranha ainda se encontrasse sobre o lençol, evitou qualquer movimento desnecessário.

Com a cabeça colada ao travesseiro, sem poder olhar a tela do dispositivo, seguiu tateando-o intuitivamente, procurando acionar o viva-voz e a discagem automática para contatar algum assessor. Depois de um tempo indefinido, o plano acabou funcionando.

“Alô”, disse uma voz masculina do outro lado da linha. Como que amarrado à cama, o político conseguiu entonar apenas um mugido incompreensível. Do outro lado da linha, alguém respondeu:

“Pai? Algum problema?”.

Reconhecia claramente aquela voz. Havia ligado para o primogênito, que o acompanhava naquela viagem oficial mesmo sem fazer parte do governo. Chegou a se emocionar pensando na abnegação do filho amado.

Entre gaguejos e relinchos, o presidente conseguiu pronunciar lenta e desesperadamente as seguintes sílabas: “so-co-rro”, “quar-to” e “mé-di-co”. O filho, que estava tomando uma piña colada no bar do hotel, respondeu: “Tudo bem, pai, fique calmo. Eu logo chego com ajuda”.

Quinze minutos se passaram até que a porta da suíte se abrisse. Entraram três homens: o filho do presidente, o gerente do hotel e, atrás deles, um rapaz de estatura baixa e pele escura, carregando uma surrada maleta de couro.

“Señor Presidente, este es el Dr. Gonzales, un médico que amablemente se ha puesto a su disposición para asistirlo”, disse o gerente.

“Pai, a gente precisa entender exatamente o que aconteceu”, disse o filho, preocupado. E sussurrou ao gerente: “Crêdio que mi padre sofreste un derrame”, em péssimo portunhol.

Neste ponto, a autoridade brasileira já conseguia falar melhor, apesar de ainda manter uma rigidez quase cadavérica. Em seus olhos estava registrado o medo de perecer sobre aquela cama, fora do seu país, sem fazer ao menos um último pronunciamento para a nação.

“Foi a aranha-reclusa. Picou lá embaixo”, conseguiu balbuciar com o canto da boca, apontando com os olhos arregalados.

O jovem médico pediu licença e, com ajuda dos outros dois homens, virou de lado o corpo do presidente. Ao abaixarem a cueca para examinar as nádegas, verificaram algo incomum e trocaram olhares antes da emissão de qualquer conclusão precipitada.

“Señor presidente, ¿ha visto la araña?”, o médico perguntou, educadamente.

“Ele quer saber se você viu a aranha, pai”, traduziu o filho.

“Não vi. Tava escuro. Já deve estar longe”, falou, com certa dificuldade, enquanto tinha os membros massageados pelo médico para ir recuperando os movimentos.

O doutor verificou a pressão arterial e, sempre sério, voltou a olhar em direção ao filho e ao gerente. Este não conseguiu segurar um riso sutil.

“Pai, essa cueca é nova?”.

“Sei lá. Por quê?”.

O filho relutou, mas disse:

“O que tinha na sua bunda era a etiqueta com um alfinete. Foi isso que te espetou”.

O médico, mantendo o respeito, concluiu: "Afortunadamente, no parece haber ningún signo de picadura en su cuerpo, señor".

“Mas e a paralisia?”, perguntou o presidente, visivelmente contrariado.

“Le pasa a algunas personas en casos de mucho estrés. Pero parece que el efecto ha desaparecido”, explicou o médico.

“Ele disse stress? Comigo, não. Isso é coisa de fresco”.

O médico ignorou, passando a perguntar:“¿Puedes levantarte?”.

O presidente conseguiu sentar na beirada da cama e o filho aproveitou para tentar quebrar o gelo. “Que cueca perigosa, hein, pai? Graças a Deus foi só um susto”.

Mostrando-se ainda mais mal humorado com a piada diante daqueles estranhos, o presidente levantou-se com violência, confirmando estar bem. Antes que fizessem outra gozação, fechou o rosto, duro como uma rocha.

“Pois eu sei que levei uma picada. Talvez não de uma aranha, mas tenho certeza absoluta que não foi só um alfinete!”.

E, despachando os três homens para fora do quarto, falou em tom elevado com o filho: “Onde foi que você arrumou esse médico? O cara tem a maior cara de homossexual! E esses chilenos não entendem porcaria nenhuma de medicina”.

Soy cubano, señor”, disse o médico.

“Ah, piorou! Na próxima vez mandem um profissional de verdade, tá ok?”.

Então bateu a porta e ficou sozinho, nas sombras, intoxicado pelo único veneno de verdade que percorria suas veias.

domingo, abril 10, 2022

A Cafeteria (L.F.Riesemberg)

 


De alguns anos para cá tenho feito sempre a mesma coisa nas tardes chuvosas de sexta-feira. Eu caminho até esta cafeteria no centro, peço uma xícara de capuccino e bebo enquanto olho pela janela. Os atendentes já me conhecem, e sabem que prefiro o silêncio, então não me aborrecem puxando conversa.

Como falei, faço isto somente nas sextas de chuva. Se não for assim, nem entro neste lugar, porque já não será mais o mesmo. É preciso ter as condições ideais para conseguir o que busco, e só as obtenho se for numa sexta-feira chuvosa.

Tudo começou há muitos anos. Eu estava totalmente sem rumo na vida. Havia sofrido duas perdas recentes, e não tinha nenhuma vontade de continuar vivendo. Resolvi sair e caminhei por horas, atingindo uma parte da cidade que me era desconhecida. Enfim, começou a chover. 

Eu teria continuado minha rota por lugares cada vez mais estranhos, mas me deparei com as portas deste convidativo lugar.

Entrei, inexpressivo, nas dependências do estabelecimento, e me sentei nesta mesma mesa. O cardápio tinha vários tipos de café, que é uma bebida que não costumo rejeitar em nenhuma ocasião. Então pedi um capuccino a fim de ter uma sensação agradável, para variar. Há muito tempo eu não sabia o que era ter uma alegria, mesmo que das mais simples.

Enquanto sorvia lentamente o café, fiquei observando pelo vitrô os transeuntes com seus guarda-chuvas, e a água encharcando a via, sentindo-me privilegiado por estar ali dentro, protegido e aquecido. O som da chuva que chegava aos meus ouvidos era como o suave cantar dos anjos. E a simpatia dos atendentes coroava a situação. Era uma magnífica combinação de sensações, que me faziam sentir a alma sair do corpo e flutuar por uma região celestial.

Fechei meus olhos e voei. Vi a mim mesmo, sentado naquela cafeteria. Um sentimento muito estranho, mas agradável, tomou conta do meu ser. Não era como se eu olhasse no espelho. Havia algo mais profundo, como se eu estivesse conhecendo alguém. Aparentemente eu nunca havia notado que era real. As coisas sempre foram acontecendo na minha vida, uma após a outra, como que automaticamente. Eu nunca havia notado a minha presença, nem o quanto eu poderia mudar as coisas à minha volta, de acordo com minha vontade.

Nunca me senti tão poderoso quanto naquele momento.

Eu estava ali, no café, mas ao mesmo tempo eu estava em um trono. Eu era um homem comum, mas também era um rei, um herói ou um deus. Tudo ao meu redor era fantástico, cheio de cores, e sons e gostos maravilhosos, que eu poderia manipular de acordo com minha vontade, e eu nunca tinha percebido.

Aquilo foi uma revelação, um despertar para uma nova vida. Toda a minha existência passou diante dos meus olhos e pude avaliar cada erro, cada acerto. Comecei a imaginar, a fazer planos... Tudo isso em uma simples xícara de capuccino, em uma sexta-feira chuvosa, na mesa daquele café.

Este é o meu local, o meu refúgio, onde as leis do tempo e do espaço são suspensas e eu experimento a eternidade. É o momento onde eu saio da vida, para ficar mais vivo. É meu nirvana, meu clímax, meu estado de fascínio. 

Este café. Este dia da semana. Este clima. 

Espero que você encontre o seu.


sexta-feira, abril 08, 2022

A redação (L.F.Riesemberg)

 


Aquela pilha de textos dos meus alunos já deveria ter sido corrigida há semanas, mas algo sempre me adiava aquela tarefa. Havia os cuidados com meu pai no hospital, as brigas pelo recente divórcio, mas no fundo talvez fosse a apatia daquela turma do ensino médio que me tirava qualquer empolgação de mergulhar nos seus textos.

Porém, como a coordenadora já havia me cobrado duas vezes pelo fechamento daquelas notas, não tive opção. Peguei uma xícara de nescafé e comecei a leitura, que prometia ser tediosa e decepcionante.

Eu nunca me dei bem com esta turma. Costumo entrar em sala de aula dando bom dia, e normalmente ninguém responde. Continuam conversando quando começo a explicação, sem ao menos se dar ao trabalho de abrir o livro. Às vezes me sinto invisível diante daquelas faces inexpressivas. No início eu chegava a gritar com eles para que prestassem atenção às minhas falas. Mas com o tempo perdi totalmente o interesse e passei a apenas cumprir minha obrigação de estar presente e despejar o conteúdo, mesmo que ninguém estivesse ouvindo.

Há tempos tem sido assim, apenas fingindo que estou ensinando. E agora, ao ler esses textos, eu teria que entrar naquelas mentes das quais eu só queria distância. “Vamos acabar logo com isso”, pensei, pegando o maço de papel.

Como previsto, as primeiras narrativas já cometiam verdadeiros crimes contra a língua. Textos carentes de revisões e com a caligrafia sofrível desafiavam minha capacidade de lê-los até o final. Os menos ruins não passavam de contos tolos, medíocres, sem qualquer traço de criatividade.

Fui me torturando com aquelas péssimas histórias, até que cheguei em uma cujo título era O Incendiário, de um dos alunos menos participativos da turma. Na verdade aquele menino me dava arrepios. Era anormalmente calado, nunca interagia com os colegas nem demonstrava qualquer emoção. Sentava no canto da sala, geralmente com a cabeça coberta pelo capuz do agasalho, ocultando um fone de ouvido que eu fingia não notar.

Seu texto continha os típicos atentados ortográficos cometidos nas outras redações, mas aquele trabalho se destacava totalmente do resto. Narrava a história de um jovem que aparentemente tinha uma vida normal, vivendo com os pais, mas que em segredo praticava incêndios criminosos em sua vizinhança. O texto de oito páginas – o mais longo de toda a turma – descrevia com riqueza de detalhes o metódico planejamento de um desses crimes.

De início me deixei levar pela narrativa ágil. Mas conforme a história avançava, comecei a questionar se aquele adolescente teria capacidade para imaginar tantas minúcias sobre materiais inflamáveis e métodos de arrombamento. O que mais me perturbou naquele texto foi o desfecho, no qual o criminoso descrevia o prazer de assistir a um casal de idosos sendo queimados. A descrição do sofrimento das vítimas, contrastando com o sentimento de realização do personagem, me incomodou profundamente.

O conto era ótimo, afinal. Mereceu nota máxima, apesar dos erros gramaticais. Mas o meu incômodo não acabou com o fim do texto. Lembrei de uma notícia de semanas atrás, sobre um casal de idosos morto num incêndio, em um bairro próximo. Não dei muita atenção na época, supondo ter sido um lamentável acidente doméstico.

Mas uma rápida pesquisa nas notícias antigas revelou o que eu mais temia. O fogo ocorrera três dias antes da data em que o aluno me entregou a redação. E agora? Não posso ficar calado, diante da terrível possibilidade. “Amanhã falarei com o diretor do colégio sobre este aluno”, pensei. Não faria mal algum investigar.

Dormi muito mal naquela noite, imaginando a possibilidade de estar convivendo com um criminoso em sala de aula, e de ter recebido uma possível confissão num dever de casa. Ele poderia ter cometido outros crimes depois? Se ao menos eu tivesse lido as redações antes...

Era esse tipo de pensamento que passava pela minha cabeça quando cheguei ao colégio na manhã seguinte. Eu refletia no destino que o rapaz teria se fosse mesmo culpado, concluindo que esta possibilidade – a da redação ser um relato autêntico – era muito distante. Seria apenas ficção produzida por um estudante, não? Mas todas essas ideias foram interrompidas quando avistei a multidão em volta e a imensa fumaça negra que saía do prédio. Todo o colégio estava sendo consumido pelo fogo.

quarta-feira, abril 06, 2022

O Bombardeio (L.F.Riesemberg)

A brincadeira estava divertida, mas de repente tudo ficou estranho. O clarão e um som ensurdecedor ocorreram num piscar de olhos. Então Santiago só viu escombros. Sua casa era agora apenas um amontoado de pedras e de aço, semioculto pela névoa que surgira.

Em um minuto ele brincava na rua, com outras crianças, sob o sol do verão. No seguinte estava caído, coberto de pó e rodeado por trevas.

Ouviu gritos e soluços.

Com dificuldade, colocou-se em pé, tentando compreender o tumulto ao seu redor. Havia pessoas estiradas pelo chão, imóveis, enquanto outras corriam desordenadamente, como alucinadas.

No seu endereço, as paredes e o telhado se fundiam num desolador emaranhado. Em desespero o menino correu até aquele monte de blocos e fuligem que antes lhe servira de lar.

“Mamãe!”. “Papai!”. “Sarah!”.

Ele gritava e levantava as pedras, procurando incessantemente por qualquer vestígio de vida naquele sítio devastado. Suas frágeis mãos não tinham a força exigida, e os gritos por socorro de seus fatigados pulmões não obtinham qualquer resposta. Todos ali estavam ocupados procurando seus próprios mortos.

Vez ou outra esbarrava em algum desorientado que cambaleava pelo terreno, ainda sem compreender a exata dimensão da tragédia. Teria sido um ataque aéreo? Acidente ou proposital? Santiago sabia que as respostas poderiam vir com o tempo, mas não queria nem pensar nas dores que se arrastariam indefinidamente a partir dali.

Caiu de joelhos, observando a paisagem triste que se estabelecera. A rua de sua infância, palco de brincadeiras e amizades, havia se esfacelado de uma hora para outra.

Os pais e a irmã estariam debaixo de toneladas de concreto.

Somente um objeto colorido se destacou no chão cinzento. Um urso de pelúcia sorrindo, contrastando com todo aquele horror. Era o urso de Sarah, agora imundo e mutilado.

O garoto escondeu o rosto com as mãos e lamentou sua sorte. Aquele era o fim, que chegou sem qualquer aviso. Nada mais seria como antes...

Mas, de surpresa, um som agradável finalmente acariciava seus ouvidos. Era o som mais doce, em oposição aos ruídos cortantes que enchiam a atmosfera.

“Santiago, você está bem?”.

A voz surgia do meio da neblina cinzenta, como a luz de um farol que salva o marinheiro em noite escura. Impossível não reconhecer. Eram eles, os pais e a irmã, mãos estendidas em sua direção. Estavam intactos, com as vestes muito brancas e limpas, serenos, na mais pura representação da paz.

“Vamos conosco, meu filho. Sigamos o nosso caminho...”.