Foi quando eu tinha oito anos, em 1942, que dei a idéia para meu avô. Ele já era aposentado e dedicava o tempo a engenhar coisas no porão de sua velha casa. Vivíamos tempos difíceis por causa da guerra e quase todos os jovens da nossa cidade estavam nos campos de batalha, deixando as mães e as namoradas tristes e as sorveterias vazias.
— Vovô, por que você não inventa uma máquina da alegria? Uma em que a gente entrasse e se sentisse bem — disse eu naquele fim de tarde, quando já estávamos indo embora depois de um domingo em família. Eu sabia que ele era capaz, pois tinha trabalhado como projecionista de cinema e consertava brinquedos do parque de diversões.
Ele ficou pensativo por uns instantes e depois deu um daqueles seus sorrisos satisfeitos, dizendo:
— Os homens têm inventado muitas máquinas da tristeza, que fazem os outros chorar. É compreensível que se faça uma máquina da alegria. Eu vou pensar em algo, afinal, o que eu perderia com isso? — e me deu um forte abraço de despedida.
Dias depois ele me chamou para conversar sobre o assunto. Queria saber o que exatamente a máquina deveria fazer. Para mim, alegria eram as tortas de maçã que vovó fazia, era trocar figurinhas com meus amigos em frente ao cinema, antes do faroeste começar na matinê... esse tipo de coisa.
Como todo avô consegue ler os pensamentos dos netos, pelo menos até uma certa idade, ele sugeriu mais algumas alegrias que eu não lembrei no momento, como um bom banho de chuva numa tarde morna de verão, o cheiro de pão quentinho saindo do forno e a visão das primeiras formigas com asas que saem da terra anunciando o início da primavera. Juntos, fizemos uma lista bem grande com esses prazeres que só as crianças e os velhos percebem.
Passaram semanas e meses, e todos os dias meu avô entrava no porão para trabalhar no projeto, e só saía de lá para comer, dormir ou procurar nos arredores da cidade as peças a serem usadas na construção. A vovó e meus pais já estavam preocupados, achando que ele estava calejando as mãos e perdendo suas horas de descanso à toa na construção de um simples presente para mim. Já eu estava mais que ansioso e contava para todos que eu ia ganhar o melhor brinquedo do mundo. E enfim chegou o dia tão esperado.
Fiquei com os olhos fechados até que tivesse a permissão de abri-los, então me deparei com uma estranha geringonça amarela no porão do meu avô.
— O que está esperando, meu neto? Experimente!
Mais que depressa abri a porta da máquina e sentei no assento, enquanto recebia as pequenas instruções de como acioná-la. Foi uma viagem maravilhosa, indescritível. O invento era melhor do que eu esperava. Todas as cores, cheiros e gostos da felicidade estavam ali: um par novo de tênis; uma serenata na varanda; história de fantasmas em frente à fogueira; pescaria no rio; fruta no pé; casa na árvore; bolinha de gude; bolo de chocolate; show de mágica; canto de cigarra; ficar acordado até tarde; braço apertado de avó... Era um mundo de sensações que, hoje eu sei, me deixavam satisfeito, contente, jubiloso, deleitado e com um sorriso enorme no rosto.
Naqueles dias, todos os meus amigos quiseram experimentar a máquina, chegando a formar uma fila de meninos e meninas na casa de meus avós. Do lado de fora do brinquedo ouvíamos do felizardo da vez os seus “Oh!” e depois “Ah!” e ainda “Olhe pra isso!”, até que pequenas explosões e cheiro de queimado surgissem e fôssemos obrigados a desligar por um tempinho, para não sobreaquecer o motor.
Mas havia na cidade um homem muito mau, de quem todas as crianças tinham medo. Ele vivia com um saco nas costas, negociando sucata e objetos usados, mas tínhamos certeza de que era ele o terrível homem do saco, de quem nossas mães tanto falavam quando não queríamos tomar banho ou dormir cedo. Naquele saco imundo não teria só sucata, mas às vezes também devia haver algum menino desobediente.
Pois esse monstro ficou sabendo da máquina da alegria e resolveu roubá-la.
Entrou de mansinho no porão, na calada da noite e levou a invenção do meu avô em sua carroça. Tomei um susto quando cheguei no dia seguinte logo pela manhã, como sempre fazia, e não achei nada no lugar onde ela costumava ficar. Por dias a fio eu chorei e também choraram todas as crianças da cidade pela falta que a máquina nos fazia.
Uma semana depois ela foi encontrada em uma cabana no meio da floresta, o abrigo do Jacinto Sucateiro, como era conhecido o homem do saco. Pelo que pude entender, o mal-feitor queria desmontar a máquina para vender as peças, mas depois de ter começado o serviço, resolveu experimentá-la para saber o que ela fazia.
Imagino que ele também deve ter ficado fascinado com a experiência. De tão embasbacado com o efeito sobre sua mente e corpo, nem deve ter percebido a fumaça saindo do motor e o ruído nas engrenagens. Ele devia estar se sentindo livre como um pássaro voando, ou preso no gostoso abraço de sua mãezinha quando o fogo tomou conta da engenhoca e se espalhou pela cabana, e não se deu conta do cheiro de churrasco de si mesmo que exalava na atmosfera.
Quando o fogo foi apagado pelos bombeiros, já não restava muito o que salvar. Entre o aço distorcido e a borracha derretida dos restos da máquina, foi encontrado um corpo carbonizado e fumegante, e quem o viu podia jurar que aquela múmia de carvão expressava um sorriso tranqüilo no que antes fora um rosto.
Depois de tudo isso, meu avô disse que não poderia construir outra máquina da alegria, pois algumas peças seriam impossíveis de se achar. O tempo foi passando e fui sentindo cada vez menos falta das sensações fantásticas que pude sentir dentro daquela grande caixa amarela, até me esquecer que um dia ela já existira. Mas hoje seria ótimo se eu pudesse entrar nela outra vez e, pelo menos por alguns curtos instantes, esquecesse que aquele meu mundo, naquela cidadezinha, não existe mais, assim como não está mais aqui meu velho avô, que me alegrava tanto com os brinquedos que criava e com os abraços que me dava.
— Vovô, por que você não inventa uma máquina da alegria? Uma em que a gente entrasse e se sentisse bem — disse eu naquele fim de tarde, quando já estávamos indo embora depois de um domingo em família. Eu sabia que ele era capaz, pois tinha trabalhado como projecionista de cinema e consertava brinquedos do parque de diversões.
Ele ficou pensativo por uns instantes e depois deu um daqueles seus sorrisos satisfeitos, dizendo:
— Os homens têm inventado muitas máquinas da tristeza, que fazem os outros chorar. É compreensível que se faça uma máquina da alegria. Eu vou pensar em algo, afinal, o que eu perderia com isso? — e me deu um forte abraço de despedida.
Dias depois ele me chamou para conversar sobre o assunto. Queria saber o que exatamente a máquina deveria fazer. Para mim, alegria eram as tortas de maçã que vovó fazia, era trocar figurinhas com meus amigos em frente ao cinema, antes do faroeste começar na matinê... esse tipo de coisa.
Como todo avô consegue ler os pensamentos dos netos, pelo menos até uma certa idade, ele sugeriu mais algumas alegrias que eu não lembrei no momento, como um bom banho de chuva numa tarde morna de verão, o cheiro de pão quentinho saindo do forno e a visão das primeiras formigas com asas que saem da terra anunciando o início da primavera. Juntos, fizemos uma lista bem grande com esses prazeres que só as crianças e os velhos percebem.
Passaram semanas e meses, e todos os dias meu avô entrava no porão para trabalhar no projeto, e só saía de lá para comer, dormir ou procurar nos arredores da cidade as peças a serem usadas na construção. A vovó e meus pais já estavam preocupados, achando que ele estava calejando as mãos e perdendo suas horas de descanso à toa na construção de um simples presente para mim. Já eu estava mais que ansioso e contava para todos que eu ia ganhar o melhor brinquedo do mundo. E enfim chegou o dia tão esperado.
Fiquei com os olhos fechados até que tivesse a permissão de abri-los, então me deparei com uma estranha geringonça amarela no porão do meu avô.
— O que está esperando, meu neto? Experimente!
Mais que depressa abri a porta da máquina e sentei no assento, enquanto recebia as pequenas instruções de como acioná-la. Foi uma viagem maravilhosa, indescritível. O invento era melhor do que eu esperava. Todas as cores, cheiros e gostos da felicidade estavam ali: um par novo de tênis; uma serenata na varanda; história de fantasmas em frente à fogueira; pescaria no rio; fruta no pé; casa na árvore; bolinha de gude; bolo de chocolate; show de mágica; canto de cigarra; ficar acordado até tarde; braço apertado de avó... Era um mundo de sensações que, hoje eu sei, me deixavam satisfeito, contente, jubiloso, deleitado e com um sorriso enorme no rosto.
Naqueles dias, todos os meus amigos quiseram experimentar a máquina, chegando a formar uma fila de meninos e meninas na casa de meus avós. Do lado de fora do brinquedo ouvíamos do felizardo da vez os seus “Oh!” e depois “Ah!” e ainda “Olhe pra isso!”, até que pequenas explosões e cheiro de queimado surgissem e fôssemos obrigados a desligar por um tempinho, para não sobreaquecer o motor.
Mas havia na cidade um homem muito mau, de quem todas as crianças tinham medo. Ele vivia com um saco nas costas, negociando sucata e objetos usados, mas tínhamos certeza de que era ele o terrível homem do saco, de quem nossas mães tanto falavam quando não queríamos tomar banho ou dormir cedo. Naquele saco imundo não teria só sucata, mas às vezes também devia haver algum menino desobediente.
Pois esse monstro ficou sabendo da máquina da alegria e resolveu roubá-la.
Entrou de mansinho no porão, na calada da noite e levou a invenção do meu avô em sua carroça. Tomei um susto quando cheguei no dia seguinte logo pela manhã, como sempre fazia, e não achei nada no lugar onde ela costumava ficar. Por dias a fio eu chorei e também choraram todas as crianças da cidade pela falta que a máquina nos fazia.
Uma semana depois ela foi encontrada em uma cabana no meio da floresta, o abrigo do Jacinto Sucateiro, como era conhecido o homem do saco. Pelo que pude entender, o mal-feitor queria desmontar a máquina para vender as peças, mas depois de ter começado o serviço, resolveu experimentá-la para saber o que ela fazia.
Imagino que ele também deve ter ficado fascinado com a experiência. De tão embasbacado com o efeito sobre sua mente e corpo, nem deve ter percebido a fumaça saindo do motor e o ruído nas engrenagens. Ele devia estar se sentindo livre como um pássaro voando, ou preso no gostoso abraço de sua mãezinha quando o fogo tomou conta da engenhoca e se espalhou pela cabana, e não se deu conta do cheiro de churrasco de si mesmo que exalava na atmosfera.
Quando o fogo foi apagado pelos bombeiros, já não restava muito o que salvar. Entre o aço distorcido e a borracha derretida dos restos da máquina, foi encontrado um corpo carbonizado e fumegante, e quem o viu podia jurar que aquela múmia de carvão expressava um sorriso tranqüilo no que antes fora um rosto.
Depois de tudo isso, meu avô disse que não poderia construir outra máquina da alegria, pois algumas peças seriam impossíveis de se achar. O tempo foi passando e fui sentindo cada vez menos falta das sensações fantásticas que pude sentir dentro daquela grande caixa amarela, até me esquecer que um dia ela já existira. Mas hoje seria ótimo se eu pudesse entrar nela outra vez e, pelo menos por alguns curtos instantes, esquecesse que aquele meu mundo, naquela cidadezinha, não existe mais, assim como não está mais aqui meu velho avô, que me alegrava tanto com os brinquedos que criava e com os abraços que me dava.
simplesmnte maravilhoso!!!!!!!!!
ResponderExcluirMuito legal!! Até senti o cheiro da minha infância. Do pão na chapa do fogão à lenha da minha avó.
ResponderExcluirUma delícia!!
Incrível, è a única palavra!
ResponderExcluirEu gostei também !!!
ResponderExcluirsuper legal? mas onde ele é publicado?
Eu gostei muito dessa história
ResponderExcluirSeus textos são muito bons!!!!Parabéns!
ResponderExcluirGarai baguiu é profundo
ResponderExcluirFicou brabo
ResponderExcluirTexto muito interessante,uma linguagem super adequada para o público do ensino fundamental 1.
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