segunda-feira, março 09, 2020

O Amigo Invisível (L.F.Riesemberg)



Nem crianças, nem adultos. Éramos um grupo de amigos, companheiros, colegas de faculdade ou como queira chamar. E se algum de nós dissesse que tinha um objetivo, era mentira. Não sabíamos nem por que tínhamos escolhido aquele curso. Tudo o que queríamos, a cada manhã, era que as aulas terminassem logo para irmos em lojas de discos, comer hambúrgueres e fazer piadas.

E um de nós era o Robin.

Na primeira vez que o vi, o achei muito peculiar. Naquela época, eu nunca escolheria sua companhia, graças ao preconceito que havia crescido em mim desde a infância. Eu vinha de uma família tradicional, e de uma cidade pequena, onde certas particularidades são ridicularizadas e mantidas em segredo. Mas Robin já fazia parte do grupo em que acabei entrando, e não pude evitá-lo.

Contudo, em menos de um mês já não importava mais como ele era, ou o que fazia longe dos meus olhos. Éramos amigos, e isso bastava. Robin tinha múltiplos talentos: dançava, desenhava, falava Inglês e imitava pessoas como ninguém. E era de uma beleza admirável, moreno, alto, olhos verdes. Mas naquele tempo, é claro, um homem não fazia elogios a outro, e nunca lhe confessei o quanto ele era incrível.

Durante as aulas, ele fazia com traços de mestre caricaturas dos professores e dos colegas. Não só desenhava, como escrevia legendas que me faziam ter que morder a língua para não rir alto. E podíamos conversar por horas a respeito de filmes e músicas dos anos oitenta. Às vezes nossa comunicação era por símbolos em folhas de caderno, que só nós compreendíamos. Quase por telepatia.

Por outro lado, Robin tinha defeitos. Não escrevia muito bem. Não lia livros que não fossem romances açucarados. Era terrivelmente alienado em relação a política. E não aceitava aquelas brincadeiras comuns entre homens que precisam constantemente alardear sua masculinidade. Aquilo o ofendia, na verdade. Assim, eu não tomava liberdades com ele, para não ferir seus sentimentos. Apenas seguíamos nos divertindo, indo ao cinema, ouvindo música, rindo dos outros, sem que analisássemos nossas próprias falhas como seres humanos.

Eu não me envergonhava de andar com ele, e estar ao seu lado era tão divertido que, fosse ele mulher, eu constataria que o que tínhamos era amor. Bem, o que tínhamos era mesmo amor. Eu só não conseguiria admitir ou falar abertamente sobre isso, porque qualquer um entenderia de outro modo. Era amor de amigos, amor de irmãos, de almas que sintonizam e se buscam, independentemente dos corpos que habitam.

Porém, como o tempo é impiedoso com tudo, até mesmo com os amantes mais apaixonados e com as amizades mais sinceras, ocorreu de eu me enveredar por outros caminhos. Não aconteceu do dia para a noite, é claro. Fomos nos afastando, olhando para novas direções, achando outros interesses.  E, alguns anos depois, eu tinha outros amigos.

Robin passou por nós e não o cumprimentei, apesar de ainda tê-lo nítido em meus pensamentos. Os rapazes à minha volta riram e sussurraram uma frase ofensiva em relação a ele ou ao grupo que, acreditavam, ele representava.

O meu eu de hoje teria censurado o autor daquele comentário e ido atrás do velho amigo. Mas eu era então outra pessoa, e tudo o que fiz foi rir. Do mesmo modo como antes eu ria com Robin a respeito de tudo o que achávamos ridículo, ali estava eu, rindo dele, achando-o ridículo.

Ironicamente, agora eu sei que a coisa mais ridícula lá era eu. E, como hoje meninos podem chorar, é isso que eu faço.

No último ano da faculdade, sem que falasse comigo, Robin pediu transferência. Imagino o que sentiu quando um dos meus novos amigos escreveu algo horrível sobre ele em um banheiro. E assim, não mais o vi.

Depois da formatura, por muito tempo também não encontrei meus outros colegas. Isto faz parte da vida: cada um segue seu caminho. Começamos a trabalhar, vamos conhecendo outras pessoas, nos mudamos de cidade, perdemos cada vez mais o contato. Você não percebe, mas tudo aquilo que você viveu deixa de existir.

Até que, por mágica, surge uma novidade capaz de descobrir o paradeiro de todos os antigos amigos, com alguns simples toques. Colegas que você não via há cinco, dez anos, de repente aparecem diante de seus olhos, e através de imagens você descobre que aquela menina tímida virou ativista política, que o drogado é chef de cozinha na Indonésia, que o gordinho é um requisitado preparador físico e aquela deusa que todos desejavam é uma esforçada dona de casa com três filhos.

Mas, entre todos, não havia ninguém de quem eu tinha tanta curiosidade para conhecer o destino. O que a vida teria feito com aquele rapaz engraçado, brilhante, que estava em um curso inútil para seus talentos? Estaria feliz? Teria realizado seus sonhos?

Pesquisei seu nome, mas não encontrei nenhum resultado. Estaria morto? Preso? Talvez fosse apenas avesso a tecnologias, e demoraria um pouco mais para entrar neste mundo. Ou talvez tenha assumido um novo nome. Tenha mudado de corpo, se transformado em outro alguém.

Foram essas as dúvidas que tive na primeira vez que te procurei, há dez anos, e continuo com elas ainda hoje, sem obter qualquer pista de onde você está.

Se você queria se vingar, parabéns: toda vez que procuro e não encontro nenhum vestígio da sua existência, mais eu acho que estou enlouquecendo. Concluo que você era bom demais para ser real, e que não passou de uma fantasia que criei para mascarar a dor de ter tido uma vida vazia. Apenas um amigo imaginário...

Um comentário:

  1. Maravilha de narrativa! Amei!!!

    Quantos amigos conhecemos e no íntimo são nossos amigos imaginários?

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