Depois
de nova discussão com o marido, Erika trancou-se no banheiro. Era o único lugar
da casa com sossego para respirar fundo e desafogar seu choro. Mas o momento de
paz duraria pouco, interrompido por insistentes pancadas na porta.
“Abra
logo, que quero tomar banho”, gritou o homem com quem havia se casado. Ela enxugou
as lágrimas e saiu, indo ficar com o filho que engatinhava na sala de estar.
Durante
o dia todo ela cuidava da casa, da criança e das costuras. Quando o esposo
chegava do serviço, o mais comum eram as discussões. Já estava esgotada,
precisando urgentemente de um tempo só dela.
Mal
concluiu o pensamento, o filho molhou as calças pela terceira vez seguida,
complementando o ato com um esganiçado choro a plenos pulmões. Ela ficou pensando
que amava a família, mas não sabia lidar com tudo aquilo. Precisava realmente
de uma pausa.
“Tempo!”, pediu, em voz alta. E, após breve desorientação dos sentidos, percebeu-se
estirada ao chão, sem entender como se deu a queda. Teria sofrido um desmaio? Silêncio
mortal prevalecia ao redor. E então, ao olhar direito, foi tomada de espanto.
O
relógio na parede estava com os ponteiros parados. Assim como o filho chorando
e o pássaro na gaiola: tudo estava congelado, como se houvessem apertado o
botão de pausa no controle remoto do universo. Inclusive ela mesma encontrava-se
parada. Erika estava fora do corpo, como um fantasma, e via a si própria, totalmente
estática, implorando por um tempo só seu. De algum modo sua súplica foi
atendida. O tempo havia parado só para ela.
Vendo
o filho como uma estátua, foi tocar-lhe e nesse momento Erika descobriu que,
como um espírito, estava intangível. Sua mão atravessou o rosto do menino.
Olhando
pela janela, viu que o mundo todo estava realmente parado: os carros, os
pedestres, todos ficaram imóveis no momento em que ela pediu tempo.
Aquilo era bom. Sentia-se
anestesiada pelo agradável som do silêncio, que há muito não ouvia, e aproveitou
para caminhar tranquilamente pela casa, atravessando móveis, portas e paredes. Nunca experimentara tamanha paz e liberdade.
Porém,
de súbito, foi assaltada pelo medo de que aquilo durasse indefinidamente, e de
que ficasse presa para sempre àquela situação. “Volte tudo ao normal!”, gritou,
e rapidamente foi jogada de volta para dentro do seu corpo. O filho chorando e
o barulho do chuveiro e dos carros logo invadiram o ambiente.
“Tempo!”,
testou outra vez, e imediatamente ela foi atirada para fora do corpo,
convertido em estátua, e tudo estava congelado mais uma vez.
Caminhando
pela casa, Erika passou através da porta do banheiro e viu a água do chuveiro
parada, sem que ninguém estivesse sob ela. O marido, ao invés de estar se
lavando, havia sentado no vaso sanitário e tinha o celular colado à orelha. Seu
rosto havia pausado em uma expressão apaixonada, como há muito não lhe dirigia.
Erika aproximou-se do aparelho a ponto de conseguir ver o nome da rival, e então
a raiva invadiu seu espírito. Não podia suportar mais, e desferiu violentos
golpes no marido infiel. Golpes inúteis, já que a mão apenas lhe trespassava o rosto.
Esmurrou até se cansar, e então, com uma feroz expressão, falou: “Volte
tudo ao normal!".
Foi
outra vez arremessada à sala, diante do filho chorando e dos demais sons ao
redor, aos quais ela deu pouca atenção. Munida novamente de seu corpo físico,
rumou imediatamente para o banheiro e bateu na porta, gritando: “Abra logo.
Precisamos conversar!”.
Devido
à insistência da mulher, ele destrancou a porta. “Ficou louca?”. E Erika, em
atitude ensandecida, desferiu-lhe socos e pontapés, desta vez atingindo o alvo.
“Você me paga, desgraçado! Vivo para esta família, e me agradece com uma
amante?”.
Surpreso
pela descoberta e pelo ataque físico, ele passou a atacar para se defender, e
os dois rolaram no chão da sala e da cozinha entre golpes e gritos. No auge da violência,
ameaçada com uma tesoura aberta, Erika foi jogada contra a estante. Com o choque,
a enorme televisão escorregou da prateleira, indo em direção ao chão, exatamente onde
se encontrava o menino, assustado com toda a cena.
O
televisor, pesado como um cofre, em instantes aniquilaria a frágil criança, e
Erika, vendo-se diante da impensável tragédia, teve a agilidade e o desespero
de gritar com todas as suas forças: “Tempo!”.
E tudo
parou. A televisão estacionou no ar, a milímetros do crânio do filho.
Na
forma de fantasma, Erika observou, com arrependimento, a sala semidestruída. O marido ficou paralisado
em atitude insana, pronto para desferir um golpe mortal na esposa traída,
enquanto o televisor pairava a um segundo de matar o filho.
Se o
tempo continuasse a correr, tudo o que tinha na vida seria destruído no
instante seguinte.
Ela
tinha à sua frente a pintura do caos doméstico, orquestrada por um silêncio
ensurdecedor. A única voz que ouvia era a da própria consciência, tendo que
escolher entre concretizar a tragédia ou permanecer, eternamente, presa àquele
silêncio mortal.
ótima conto! me fez refletir sobre o texto, gostei tanto que li 4 vezes rsrs
ResponderExcluirCara, vc se supera a cada conto! Haja criatividade assim...
ResponderExcluirParabéns, uma vez mais por esta maravilha!!!
Excelente!
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