sexta-feira, maio 20, 2016

Um tempo para si (L.F.Riesemberg)


Depois de nova discussão com o marido, Erika trancou-se no banheiro. Era o único lugar da casa com sossego para respirar fundo e desafogar seu choro. Mas o momento de paz duraria pouco, interrompido por insistentes pancadas na porta.

“Abra logo, que quero tomar banho”, gritou o homem com quem havia se casado. Ela enxugou as lágrimas e saiu, indo ficar com o filho que engatinhava na sala de estar.

Durante o dia todo ela cuidava da casa, da criança e das costuras. Quando o esposo chegava do serviço, o mais comum eram as discussões. Já estava esgotada, precisando urgentemente de um tempo só dela.

Mal concluiu o pensamento, o filho molhou as calças pela terceira vez seguida, complementando o ato com um esganiçado choro a plenos pulmões. Ela ficou pensando que amava a família, mas não sabia lidar com tudo aquilo. Precisava realmente de uma pausa.

“Tempo!”, pediu, em voz alta. E, após breve desorientação dos sentidos, percebeu-se estirada ao chão, sem entender como se deu a queda. Teria sofrido um desmaio? Silêncio mortal prevalecia ao redor. E então, ao olhar direito, foi tomada de espanto.

O relógio na parede estava com os ponteiros parados. Assim como o filho chorando e o pássaro na gaiola: tudo estava congelado, como se houvessem apertado o botão de pausa no controle remoto do universo. Inclusive ela mesma encontrava-se parada. Erika estava fora do corpo, como um fantasma, e via a si própria, totalmente estática, implorando por um tempo só seu. De algum modo sua súplica foi atendida. O tempo havia parado só para ela.

Vendo o filho como uma estátua, foi tocar-lhe e nesse momento Erika descobriu que, como um espírito, estava intangível. Sua mão atravessou o rosto do menino.

Olhando pela janela, viu que o mundo todo estava realmente parado: os carros, os pedestres, todos ficaram imóveis no momento em que ela pediu tempo.

Aquilo era bom. Sentia-se anestesiada pelo agradável som do silêncio, que há muito não ouvia, e aproveitou para caminhar tranquilamente pela casa, atravessando móveis, portas e paredes. Nunca experimentara tamanha paz e liberdade.

Porém, de súbito, foi assaltada pelo medo de que aquilo durasse indefinidamente, e de que ficasse presa para sempre àquela situação. “Volte tudo ao normal!”, gritou, e rapidamente foi jogada de volta para dentro do seu corpo. O filho chorando e o barulho do chuveiro e dos carros logo invadiram o ambiente.

“Tempo!”, testou outra vez, e imediatamente ela foi atirada para fora do corpo, convertido em estátua, e tudo estava congelado mais uma vez.

Caminhando pela casa, Erika passou através da porta do banheiro e viu a água do chuveiro parada, sem que ninguém estivesse sob ela. O marido, ao invés de estar se lavando, havia sentado no vaso sanitário e tinha o celular colado à orelha. Seu rosto havia pausado em uma expressão apaixonada, como há muito não lhe dirigia. Erika aproximou-se do aparelho a ponto de conseguir ver o nome da rival, e então a raiva invadiu seu espírito. Não podia suportar mais, e desferiu violentos golpes no marido infiel. Golpes inúteis, já que a mão apenas lhe trespassava o rosto. Esmurrou até se cansar, e então, com uma feroz expressão, falou: “Volte tudo ao normal!".

Foi outra vez arremessada à sala, diante do filho chorando e dos demais sons ao redor, aos quais ela deu pouca atenção. Munida novamente de seu corpo físico, rumou imediatamente para o banheiro e bateu na porta, gritando: “Abra logo. Precisamos conversar!”.

Devido à insistência da mulher, ele destrancou a porta. “Ficou louca?”. E Erika, em atitude ensandecida, desferiu-lhe socos e pontapés, desta vez atingindo o alvo. “Você me paga, desgraçado! Vivo para esta família, e me agradece com uma amante?”.

Surpreso pela descoberta e pelo ataque físico, ele passou a atacar para se defender, e os dois rolaram no chão da sala e da cozinha entre golpes e gritos. No auge da violência, ameaçada com uma tesoura aberta, Erika foi jogada contra a estante. Com o choque, a enorme televisão escorregou da prateleira, indo em direção ao chão, exatamente onde se encontrava o menino, assustado com toda a cena.

O televisor, pesado como um cofre, em instantes aniquilaria a frágil criança, e Erika, vendo-se diante da impensável tragédia, teve a agilidade e o desespero de gritar com todas as suas forças: “Tempo!”.

E tudo parou. A televisão estacionou no ar, a milímetros do crânio do filho.

Na forma de fantasma, Erika observou, com arrependimento, a sala semidestruída. O marido ficou paralisado em atitude insana, pronto para desferir um golpe mortal na esposa traída, enquanto o televisor pairava a um segundo de matar o filho.

Se o tempo continuasse a correr, tudo o que tinha na vida seria destruído no instante seguinte.

Ela tinha à sua frente a pintura do caos doméstico, orquestrada por um silêncio ensurdecedor. A única voz que ouvia era a da própria consciência, tendo que escolher entre concretizar a tragédia ou permanecer, eternamente, presa àquele silêncio mortal. 

3 comentários:

  1. ótima conto! me fez refletir sobre o texto, gostei tanto que li 4 vezes rsrs

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  2. Cara, vc se supera a cada conto! Haja criatividade assim...
    Parabéns, uma vez mais por esta maravilha!!!

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