sexta-feira, abril 08, 2022

A redação (L.F.Riesemberg)

 


Aquela pilha de textos dos meus alunos já deveria ter sido corrigida há semanas, mas algo sempre me adiava aquela tarefa. Havia os cuidados com meu pai no hospital, as brigas pelo recente divórcio, mas no fundo talvez fosse a apatia daquela turma do ensino médio que me tirava qualquer empolgação de mergulhar nos seus textos.

Porém, como a coordenadora já havia me cobrado duas vezes pelo fechamento daquelas notas, não tive opção. Peguei uma xícara de nescafé e comecei a leitura, que prometia ser tediosa e decepcionante.

Eu nunca me dei bem com esta turma. Costumo entrar em sala de aula dando bom dia, e normalmente ninguém responde. Continuam conversando quando começo a explicação, sem ao menos se dar ao trabalho de abrir o livro. Às vezes me sinto invisível diante daquelas faces inexpressivas. No início eu chegava a gritar com eles para que prestassem atenção às minhas falas. Mas com o tempo perdi totalmente o interesse e passei a apenas cumprir minha obrigação de estar presente e despejar o conteúdo, mesmo que ninguém estivesse ouvindo.

Há tempos tem sido assim, apenas fingindo que estou ensinando. E agora, ao ler esses textos, eu teria que entrar naquelas mentes das quais eu só queria distância. “Vamos acabar logo com isso”, pensei, pegando o maço de papel.

Como previsto, as primeiras narrativas já cometiam verdadeiros crimes contra a língua. Textos carentes de revisões e com a caligrafia sofrível desafiavam minha capacidade de lê-los até o final. Os menos ruins não passavam de contos tolos, medíocres, sem qualquer traço de criatividade.

Fui me torturando com aquelas péssimas histórias, até que cheguei em uma cujo título era O Incendiário, de um dos alunos menos participativos da turma. Na verdade aquele menino me dava arrepios. Era anormalmente calado, nunca interagia com os colegas nem demonstrava qualquer emoção. Sentava no canto da sala, geralmente com a cabeça coberta pelo capuz do agasalho, ocultando um fone de ouvido que eu fingia não notar.

Seu texto continha os típicos atentados ortográficos cometidos nas outras redações, mas aquele trabalho se destacava totalmente do resto. Narrava a história de um jovem que aparentemente tinha uma vida normal, vivendo com os pais, mas que em segredo praticava incêndios criminosos em sua vizinhança. O texto de oito páginas – o mais longo de toda a turma – descrevia com riqueza de detalhes o metódico planejamento de um desses crimes.

De início me deixei levar pela narrativa ágil. Mas conforme a história avançava, comecei a questionar se aquele adolescente teria capacidade para imaginar tantas minúcias sobre materiais inflamáveis e métodos de arrombamento. O que mais me perturbou naquele texto foi o desfecho, no qual o criminoso descrevia o prazer de assistir a um casal de idosos sendo queimados. A descrição do sofrimento das vítimas, contrastando com o sentimento de realização do personagem, me incomodou profundamente.

O conto era ótimo, afinal. Mereceu nota máxima, apesar dos erros gramaticais. Mas o meu incômodo não acabou com o fim do texto. Lembrei de uma notícia de semanas atrás, sobre um casal de idosos morto num incêndio, em um bairro próximo. Não dei muita atenção na época, supondo ter sido um lamentável acidente doméstico.

Mas uma rápida pesquisa nas notícias antigas revelou o que eu mais temia. O fogo ocorrera três dias antes da data em que o aluno me entregou a redação. E agora? Não posso ficar calado, diante da terrível possibilidade. “Amanhã falarei com o diretor do colégio sobre este aluno”, pensei. Não faria mal algum investigar.

Dormi muito mal naquela noite, imaginando a possibilidade de estar convivendo com um criminoso em sala de aula, e de ter recebido uma possível confissão num dever de casa. Ele poderia ter cometido outros crimes depois? Se ao menos eu tivesse lido as redações antes...

Era esse tipo de pensamento que passava pela minha cabeça quando cheguei ao colégio na manhã seguinte. Eu refletia no destino que o rapaz teria se fosse mesmo culpado, concluindo que esta possibilidade – a da redação ser um relato autêntico – era muito distante. Seria apenas ficção produzida por um estudante, não? Mas todas essas ideias foram interrompidas quando avistei a multidão em volta e a imensa fumaça negra que saía do prédio. Todo o colégio estava sendo consumido pelo fogo.

2 comentários:

  1. Uau! Que delícia de leitura! Só hoje dei com esse blog maravilhoso, vou levar os contos para meus alunos!

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  2. Adorei este conto.

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