domingo, maio 30, 2021

A Ânsia (L.F. Riesemberg)

 


Muito cedo, antes do Sol despontar atrás das montanhas, quando a noite dava seus últimos suspiros, fui despertado por algo rondando a barraca. Permaneci em silêncio, temendo o ataque de predadores ou delinquentes, mas aquele ruído era totalmente estranho para mim. Arrisquei circundar o acampamento, empunhando uma arma. Ela não poderia combater o que espreitava, mas ainda assim minha ingênua ousadia me fez dar um grito longo e assombroso, intentando expulsar o invasor.

O berro ecoou pela mata, destruindo o silêncio e desestabilizando o intrincado sistema de criaturas micro e macroscópicas que viviam naquele habitat, de líquens e musgos a aves e roedores. Não percebi o tumulto que causei com tremendo ato, e fiquei a observar apenas uma floresta que parecia quieta e solitária, mas que se agitava intensamente e me observava com milhares de olhos.

Meu brado despertou algo que eu não poderia compreender naquele momento, e estranho fenômeno ocorreu. Uma força poderosa e antiga, presente em cada ser vivo daquele perímetro, reagiu em intensidade desigual contra mim. Não há palavras em línguas humanas para explicar, mas toda a energia dos arredores materializou-se em uma entidade tão bela quanto imponente, dando a entender que estivesse irritada com minha presença.

Naquele meu estado, ainda escravizado pela ignorância e pelas superstições, concluí que estava diante de uma assombração. A última lembrança de tal momento é a do espectro avançando sobre mim e aplicando uma mordida em meu antebraço – por menor sentido que isso possa fazer -  o que me causou um certeiro torpor e me tombou ao solo, com total perda dos sentidos.

Acordei com o sol no rosto, sem pistas sobre o que havia se dado realmente. O braço doía, mas não havia um ferimento visível. Não tardei a deixar a floresta e evitei relatar a experiência a qualquer conhecido, temendo que a maledicência me agredisse mais violentamente que aquela visagem. Planejei ocultar o sucedido nas entranhas da consciência, cobrindo com excessos de todo tipo, mas antes que pudesse dar o primeiro passo nesta direção, um estranho magnetismo me impediu.

Eu já havia marcado com dois companheiros um festival de luxúria e entorpecimento, quando um ímpeto irresistível me obrigou a cancelar o convite para praticar algo impensável. Ao invés de dar vazão aos desejos irracionais, típicos da carne, passei a noite dentro de casa, lendo um livro. Não era uma grande obra, visto que não havia qualquer outro exemplar no ambiente, mas foi um fato inédito em uma vida inteira sem pretensões intelectuais. Devorei as centenas de páginas em algumas horas, seguindo a atividade com uma espécie de embriaguez gramatical que me levou a declamar poemas janela afora.

Esse foi o primeiro episódio de uma série de ocorrências que me trouxeram, em dezoito meses, a este singelo relato que redijo desajeitadamente, atendendo a uma necessidade irresistível. Desde então não obtive um minuto de paz de espírito. Fui acometido por esta moléstia que não me permite ver o tempo passar sem que eu o aproveite de um modo que me enriqueça espiritualmente. Passei a sentir horror às banalidades, desenvolvi uma fobia de ignorância, em uma desesperada fuga da incultura, principalmente por constatar que gastei toda a minha vida no obscurantismo da mediocridade.

Enquanto escrevo, noto um homem na mesa ao lado. Sei que é um potencial suicida, pois seus olhos indicam uma depressão profunda com pensamentos em desalinho. Minha condição me obrigou a interromper este texto e a ir ter com ele, pois empatia é um dos sintomas deste distúrbio que me acometeu, e só estou voltando a empunhar o lápis depois que o pobre saiu reconfortado e decidido a buscar ajuda médica.

Estou chegando ao fim das folhas de papel e já prevejo a abstinência que sofrerei em seguida. Precisarei com urgência de Mozart em meus ouvidos, de Tolstói, de Sócrates, de correr para um museu, escrever um soneto. Estarei angustiado, necessitado de um debate, com fome de conhecimento, porque o que me mordeu naquela fatídica noite foi o espírito da natureza, a deusa da sapiência ou como queira chamar, mas me transmitiu este vírus que me faz querer sempre aprender mais, que me obriga a fazer cursos, a estudar metodologias, a pesquisar teorias, a formular hipóteses...

Sei que estranhas, caro leitor. “Como isso poderia ser ruim?”, tu dirás. Mas o problema não é a sede de conhecimento, e sim a sua ausência. Olho ao redor e só vejo indivíduos ainda iludidos, se entretendo com frivolidades, vivendo em uma caverna de ignorância, e isso me faz querer gritar, pedir para que por favor acordem dessa letargia, que leiam um livro, que busquem a verdade!

Às vezes minha dor é tamanha que sinto uma terrível vontade de também morder alguém, de passar esse vírus adiante, provocar uma epidemia de ânsia por conhecimento, acabar com esse mal que acomete a tantos, que é a estupidez humana. Há agora mesmo um jovem no recinto, cujo sorriso denuncia uma burrice voluntária, e estou salivando de vontade de atacá-lo, de fazê-lo acordar, mostrar que vive na escuridão. Mas sei que, se eu me aproximar, o segurança que não tira os olhos de mim virá rapidamente em meu desfavor, pois a cor da minha pele o incomoda mais do que tudo.   

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