quarta-feira, maio 18, 2016

Escorpião (L.F.Riesemberg)

O senhor Pritchard deitou na cama, de barriga para cima, e cobriu-se até o pescoço com um fino acolchoado. Fechou os olhos, esperando o sono, quando foi surpreendido por dolorosa fisgada na pele da nádega. Recordou-se, imóvel e em silencioso desespero, do panfleto que lera sobre a incidência de escorpiões naquela região.

A recomendação era manter-se calmo e procurar ajuda médica o mais rápido possível. Antes de tudo buscou prestar atenção aos sinais do corpo, e notou o início de leve taquicardia e dificuldade para respirar. Era preciso agir logo.

O celular estava no criado mudo, e assim que virou-se para apanhá-lo, percebeu que apenas seus olhos se mexeram. Todo o corpo estava amortecido, sem movimentos.

Sentia-se mais ou menos como quando experimentou a infame paralisia do sono, e revivia aquele pesadelo, agora aumentado pelo fato de haver uma dose de veneno no sangue.

Pensou nas alternativas que lhe restavam, e concluiu que a morte por falência de algum órgão vital era inevitável, a não ser que conseguisse mover a mão até o celular e chamar alguém.

Concentrou-se, tentando superar a dolorosa mortificação dos membros, e depois de muito tempo conseguiu esticar o dedo mínimo. A paciência, apesar do desespero, fez com que em alguns instantes já conseguisse levantar toda a mão, o que se seguiu a uma rudimentar elevação do braço.

Da fronte brotava suor, e com bastante esforço o homem conseguiu derrubar a mão sobre o celular. Quase vencera o formigamento local, mas imaginando que o escorpião provavelmente ainda se encontrava dentro do pijama, evitou qualquer movimento desnecessário, para não tomar outra picada.

Sem poder olhar para a tela do aparelho, seguiu tateando-o intuitivamente, tentando ligar o viva voz e discar automaticamente para algum número gravado nos contatos.

“Alô”, disse uma voz masculina do outro lado da linha. Como que amarrado à cama, o senhor Pritchard conseguiu entonar apenas um murmúrio. “Alô, senhor Pritchard? Algum problema?”. Agora reconhecia a voz. Havia ligado para um cliente, com quem por último havia conversado naquele telefone, na tarde anterior.

Entre gaguejos e soluços, pronunciou lentamente o endereço, seguido de um alarmante “socorro, escorpião, médico”. O cliente poderia não estar mais ouvindo, mas depois de um longo segundo de silêncio, respondeu: “Tudo bem, senhor Pritchard, eu anotei o endereço, e vou logo aí com ajuda”.

Trinta minutos depois, a porta do quarto era arrombada e chegavam dois sujeitos. Um deles era o senhor Melvin, o cliente com quem Pritchard havia conseguido falar. Atrás dele apareceu um rapaz de estatura média e pele escura, carregando uma maleta de couro.

“Senhor Pritchard, este é o doutor Hernández, médico. Consegui trazê-lo aqui, como o senhor solicitou, sem saber explicar-lhe muito bem o que aconteceu”.

Neste ponto, a vítima do escorpião já conseguia falar melhor, apesar de continuar deitada e manter a imobilidade quase total do corpo. Em seus olhos estava registrado o medo da morte sobre aquela cama.

“Ele me pegou lá embaixo”, falou, mostrando com os olhos. “Sinto tudo girar”.

O jovem médico pediu licença e descobriu o homem, virando-o de lado com a ajuda do outro. Ao abaixarem a calça do pijama, verificaram algo incomum e trocaram olhares, antes da emissão de qualquer conclusão apressada.

“Senhor Pritchard, o senhor viu o escorpião?”

“Não, estava escuro. Mas a esta hora ele já deve estar longe”, falou, tendo seus membros massageados pelo médico para recuperar os movimentos.

O médico, mantendo-se sério, voltou a olhar para o senhor Melvin, e este não segurou o riso.

Pritchard, o que vimos é uma etiqueta ainda pregada. A cueca é nova?

O médico, mantendo o respeito, concluiu: “Felizmente não parece haver nenhum sinal de picada em seu corpo, senhor”.

“O que? Mas e a paralisia?”

“Acontece com algumas pessoas em casos de estresse elevado. Mas parece que o efeito já passou. Consegue se levantar?”

Pritchard sentou-se na cama, confuso, e Melvin aproveitou para quebrar o gelo. “Que cueca perigosa, hein?”

Mostrando-se contrariado, Pritchard levantou-se com violência, constatando o fim da imobilidade, e antes de aturar outra gozação, fechou o rosto, duro como uma rocha.

“Pois eu ainda creio ter sido picado por alguma coisa. Talvez não um escorpião, mas tenho certeza que não foi só a etiqueta”. E, encaminhando os dois para fora, falou ao cliente em um tom baixo, porém audível: “Onde foi que encontrou isso? Esses médicos estrangeiros são uns parasitas que não entendem droga nenhuma. Me trouxesse um bom, se queria ajudar!”.

Fechou a porta e ficou sozinho, cheio de seu próprio veneno.

6 comentários:

  1. Didaticamente um conto só deve ter um tom. Você conduziu o tom fantástico com maestria até 3/4 da história para no quarto final pular para o tom cômico. Parabéns.

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  2. Ainda que aqui tenha sido utilizado um conto fantástico, em muitas vezes o ser humano fica muito paralisado pelos próprios sentimentos ruins, adversos, que só fazem mal ao próprio corpo e, o que é pior, a própria alma, deixando-se levar por ações danosas a sí próprio e ao seu semelhante!

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