quarta-feira, julho 30, 2014

A Mudança (L.F.Riesemberg)



A família de Samuel teve que se mudar depois de cinquenta anos morando na mesma casa. “Vai aparecer muita coisa perdida quando começarmos a mexer nas coisas”, disse o avô. “Não quero nem pensar na trabalheira que essa mudança vai dar”, completou a mãe.
Foi dolorosa a cena da empregada colocando os primeiros enfeites numa caixa de papelão. Significava que era verdade: em breve, teriam que dar adeus àquele lugar tão cheio de memórias.
Em duas semanas, as caixas empilhavam-se por todos os cômodos. Estavam cheias somente com os objetos de uso diário. Na terceira semana é que eles atingiram as áreas mais profundas da casa: baús trancados a cadeado, fundos de armários e, por último, o temível e empoeirado sótão. Ninguém entrava lá há anos.
O pai gritou lá de cima: “Se vocês achavam que tínhamos muita coisa antiga guardada, precisam dar uma olhada aqui”.
Samuel armou-se com uma lanterna e penetrou a escuridão daquele cômodo da residência que o assombrava quando criança. O facho de luz revelou um amontoado tão absurdo de caixas e mais caixas entulhadas naquele ambiente apertado e claustrofóbico, que ele teve vertigens. Depois de vinte minutos lá em cima, ele gritou para que o ajudassem a sair de lá.
-O que foi que aconteceu lá em cima? – perguntaram, assustados, quando viram o rapaz branco e tremendo. Ele tinha os cabelos cobertos de teias de aranha e a roupa imunda de poeira.
Ele não quis comentar com ninguém o que tinha visto. Apenas pediu para que não o fizessem subir naquele lugar novamente e perguntou: “Nós realmente temos que deixar a casa?”.
Achando aquilo muito estranho, o pai e o avô continuaram o trabalho no sótão sem a ajuda de Samuel. Ambos estavam curiosos, imaginando o que de tão terrível havia ocorrido por lá, para o filho ficar daquele jeito. Tudo o que encontraram foram brinquedos velhos, livros antigos, discos, garrafas de bebidas que já não eram mais fabricadas e outras coisas inúteis cobertas por uma grossa crosta de pó. Tudo foi queimado em uma grande fogueira no quintal.
A família foi embora e deixou a casa vazia. No dia da saída, Samuel ainda colocou uma florzinha do jardim em cada janela, como forma de despedida e agradecimento pelos anos que ali viveu. Depois desse dia, o garoto falou cada vez menos.
Na outra casa, pequena e sem personalidade, a família lutava para fazer caber tudo o que haviam trazido. Samuel via o novo ambiente, tão pior do que o lar onde nasceu, e não conseguiu mais sorrir. Grandes olheiras foram se formando sob seus olhos, e dentro de alguns dias ele caiu de cama para nunca mais levantar.
-O que foi que aconteceu, meu filho? Desde daquele dia no sótão você nunca mais foi o mesmo! – comentaram na noite fatídica.
Com muito esforço, em uma voz quase inaudível, ele respondeu, antes de expirar:
-Eu vi. Lá em cima. No sótão.
-O que foi que você viu?
-Minha alma. Ela morava lá. Gostava de lá. E não quis se mudar.

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