sábado, maio 20, 2023

Peçonhento (L.F.Riesemberg)

 

O presidente da República tinha ido ao Chile, em uma viagem diplomática. Os compromissos oficiais já haviam encerrado, mas antes de retornar ao Brasil o chefe de Estado resolveu passar uma noite em Valparaíso - não por ter sido a morada de Pablo Neruda, mas por ser a cidade natal do seu verdadeiro herói, Augusto Pinochet.  

Após uma tranquila tarde no hotel, abusando das cervezas e das empanadas de pino servidas à beira da piscina, o presidente retirou-se sozinho para a luxuosa suíte e caiu na espaçosa cama vestindo apenas uma cueca verde-oliva. Já havia fechado os olhos, pensando nas futuras eleições e esperando o sono chegar, quando foi surpreendido por uma dolorosa picada na nádega esquerda. Imediatamente ele recordou, em silencioso desespero, de uma notícia que recebera dias antes em um grupo, sobre a “epidemia” de animais peçonhentos, ou seja, venenosos, que ocorria naquele país.

O aviso de “utilidade pública”, enviado por um confiável eleitor, destacava a perigosa aranha-reclusa chilena (Loxosceles laeta), com a recomendação de que, enquanto estivesse no Chile, examinasse atentamente o interior dos sapatos antes de calçá-los. De acordo com o texto amplamente compartilhado, o mencionado aracnídeo era muito pequeno, tinha hábitos noturnos e sua mordedura poderia matar um boi.

Sua experiência como capitão do exército o indicou que, numa situação como aquela, era necessário ter sangue frio e procurar ajuda o mais rápido possível. Prestou atenção aos sinais vitais, já sentindo um aumento da frequência cardíaca e certa dificuldade para respirar. Apesar do seu histórico de atleta, teria que agir rápido, ou no dia seguinte todos os brasileiros estariam de luto.

O telefone celular estava sobre a mesa de cabeceira (ainda chamada de “criado-mudo” pelo presidente), à direita da cama, mas assim que tentou apanhá-lo para chamar alguém, teve uma nova surpresa. Percebeu, aterrorizado, que não conseguia mexer nenhum músculo. Apenas seus globos oculares se moviam, mas o resto do corpo estava completamente paralisado. Lembrou-se, assim, de outro trecho da notícia lida, que falava sobre as aranhas injetarem uma proteína imobilizante em suas presas.

Imediatamente sentiu-se como quando vive a experiência de paralisia do sono, quase toda semana. Nessas ocasiões, ao dormir, fica preso em um recorrente pesadelo no qual milhões de brasileiros mortos o acusam, sem que possa se mover ou gritar. Porém, o que estava se passando no momento, naquele hotel, não era nenhum sonho, mas algo real - e o terror estava intensificado por haver uma dose de veneno em seu sangue.

Pensou nas opções que lhe restavam para sair daquela situação, e concluiu que a morte por falência de algum órgão vital seria inevitável, a não ser que conseguisse mover a mão até o telefone e chamar alguém.

Concentrou-se, tentando superar a dolorosa mortificação dos membros, e depois de muito tempo conseguiu esticar o dedo mínimo. Apesar do sufoco, sua insistência fez com que após alguns instantes conseguisse levantar toda a mão, o que se seguiu a uma rudimentar elevação do braço.

Da testa brotavam gotas de suor, e com muito esforço o presidente conseguiu heroicamente esticar o braço e derrubar a mão amortecida sobre o aparelho telefônico. Quase vencera o formigamento local, mas temendo que a aranha ainda se encontrasse sobre o lençol, evitou qualquer movimento desnecessário.

Com a cabeça colada ao travesseiro, sem poder olhar a tela do dispositivo, seguiu tateando-o intuitivamente, procurando acionar o viva-voz e a discagem automática para contatar algum assessor. Depois de um tempo indefinido, o plano acabou funcionando.

“Alô”, disse uma voz masculina do outro lado da linha. Como que amarrado à cama, o político conseguiu entonar apenas um mugido incompreensível. Do outro lado da linha, alguém respondeu:

“Pai? Algum problema?”.

Reconhecia claramente aquela voz. Havia ligado para o primogênito, que o acompanhava naquela viagem oficial mesmo sem fazer parte do governo. Chegou a se emocionar pensando na abnegação do filho amado.

Entre gaguejos e relinchos, o presidente conseguiu pronunciar lenta e desesperadamente as seguintes sílabas: “so-co-rro”, “quar-to” e “mé-di-co”. O filho, que estava tomando uma piña colada no bar do hotel, respondeu: “Tudo bem, pai, fique calmo. Eu logo chego com ajuda”.

Quinze minutos se passaram até que a porta da suíte se abrisse. Entraram três homens: o filho do presidente, o gerente do hotel e, atrás deles, um rapaz de estatura baixa e pele escura, carregando uma surrada maleta de couro.

“Señor Presidente, este es el Dr. Gonzales, un médico que amablemente se ha puesto a su disposición para asistirlo”, disse o gerente.

“Pai, a gente precisa entender exatamente o que aconteceu”, disse o filho, preocupado. E sussurrou ao gerente: “Crêdio que mi padre sofreste un derrame”, em péssimo portunhol.

Neste ponto, a autoridade brasileira já conseguia falar melhor, apesar de ainda manter uma rigidez quase cadavérica. Em seus olhos estava registrado o medo de perecer sobre aquela cama, fora do seu país, sem fazer ao menos um último pronunciamento para a nação.

“Foi a aranha-reclusa. Picou lá embaixo”, conseguiu balbuciar com o canto da boca, apontando com os olhos arregalados.

O jovem médico pediu licença e, com ajuda dos outros dois homens, virou de lado o corpo do presidente. Ao abaixarem a cueca para examinar as nádegas, verificaram algo incomum e trocaram olhares antes da emissão de qualquer conclusão precipitada.

“Señor presidente, ¿ha visto la araña?”, o médico perguntou, educadamente.

“Ele quer saber se você viu a aranha, pai”, traduziu o filho.

“Não vi. Tava escuro. Já deve estar longe”, falou, com certa dificuldade, enquanto tinha os membros massageados pelo médico para ir recuperando os movimentos.

O doutor verificou a pressão arterial e, sempre sério, voltou a olhar em direção ao filho e ao gerente. Este não conseguiu segurar um riso sutil.

“Pai, essa cueca é nova?”.

“Sei lá. Por quê?”.

O filho relutou, mas disse:

“O que tinha na sua bunda era a etiqueta com um alfinete. Foi isso que te espetou”.

O médico, mantendo o respeito, concluiu: "Afortunadamente, no parece haber ningún signo de picadura en su cuerpo, señor".

“Mas e a paralisia?”, perguntou o presidente, visivelmente contrariado.

“Le pasa a algunas personas en casos de mucho estrés. Pero parece que el efecto ha desaparecido”, explicou o médico.

“Ele disse stress? Comigo, não. Isso é coisa de fresco”.

O médico ignorou, passando a perguntar:“¿Puedes levantarte?”.

O presidente conseguiu sentar na beirada da cama e o filho aproveitou para tentar quebrar o gelo. “Que cueca perigosa, hein, pai? Graças a Deus foi só um susto”.

Mostrando-se ainda mais mal humorado com a piada diante daqueles estranhos, o presidente levantou-se com violência, confirmando estar bem. Antes que fizessem outra gozação, fechou o rosto, duro como uma rocha.

“Pois eu sei que levei uma picada. Talvez não de uma aranha, mas tenho certeza absoluta que não foi só um alfinete!”.

E, despachando os três homens para fora do quarto, falou em tom elevado com o filho: “Onde foi que você arrumou esse médico? O cara tem a maior cara de homossexual! E esses chilenos não entendem porcaria nenhuma de medicina”.

Soy cubano, señor”, disse o médico.

“Ah, piorou! Na próxima vez mandem um profissional de verdade, tá ok?”.

Então bateu a porta e ficou sozinho, nas sombras, intoxicado pelo único veneno de verdade que percorria suas veias.

2 comentários:

  1. Muito bom! Críticas bem construída e muito bem humorada

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  2. Extremamente peçonhento! (Rs)
    Conto muito bom e divertido.

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