O presidente da República tinha ido ao Chile, em uma viagem
diplomática. Os compromissos oficiais já haviam encerrado, mas antes de retornar
ao Brasil o chefe de Estado resolveu passar uma noite em Valparaíso - não por
ter sido a morada de Pablo Neruda, mas por ser a cidade natal do seu verdadeiro herói, Augusto
Pinochet.
Após uma tranquila tarde no hotel, abusando das cervezas e das empanadas
de pino servidas à beira da piscina, o presidente retirou-se sozinho para a
luxuosa suíte e caiu na espaçosa cama vestindo apenas uma cueca verde-oliva. Já
havia fechado os olhos, pensando nas futuras eleições e esperando o sono chegar,
quando foi surpreendido por uma dolorosa picada na nádega esquerda. Imediatamente
ele recordou, em silencioso desespero, de uma notícia que recebera dias antes
em um grupo, sobre a “epidemia” de animais peçonhentos, ou seja, venenosos, que
ocorria naquele país.
O aviso de “utilidade pública”, enviado por um confiável eleitor, destacava
a perigosa aranha-reclusa chilena (Loxosceles laeta), com a recomendação
de que, enquanto estivesse no Chile, examinasse atentamente o interior dos
sapatos antes de calçá-los. De acordo com o texto amplamente compartilhado, o
mencionado aracnídeo era muito pequeno, tinha hábitos noturnos e sua mordedura
poderia matar um boi.
Sua experiência como capitão do exército o indicou que, numa situação
como aquela, era necessário ter sangue frio e procurar ajuda o mais rápido
possível. Prestou atenção aos sinais vitais, já sentindo um aumento da frequência
cardíaca e certa dificuldade para respirar. Apesar do seu histórico de atleta,
teria que agir rápido, ou no dia seguinte todos os brasileiros estariam de luto.
O telefone celular estava sobre a mesa de cabeceira (ainda chamada de “criado-mudo”
pelo presidente), à direita da cama, mas assim que tentou apanhá-lo para chamar
alguém, teve uma nova surpresa. Percebeu, aterrorizado, que não conseguia mexer
nenhum músculo. Apenas seus globos oculares se moviam, mas o resto do corpo estava
completamente paralisado. Lembrou-se, assim, de outro trecho da notícia lida, que
falava sobre as aranhas injetarem uma proteína imobilizante em suas presas.
Imediatamente sentiu-se como quando vive a experiência de paralisia do
sono, quase toda semana. Nessas ocasiões, ao dormir, fica preso em um
recorrente pesadelo no qual milhões de brasileiros mortos o acusam, sem que possa
se mover ou gritar. Porém, o que estava se passando no momento, naquele hotel,
não era nenhum sonho, mas algo real - e o terror estava intensificado por haver
uma dose de veneno em seu sangue.
Pensou nas opções que lhe restavam para sair daquela situação, e
concluiu que a morte por falência de algum órgão vital seria inevitável, a não
ser que conseguisse mover a mão até o telefone e chamar alguém.
Concentrou-se, tentando superar a dolorosa mortificação dos membros, e depois
de muito tempo conseguiu esticar o dedo mínimo. Apesar do sufoco, sua insistência
fez com que após alguns instantes conseguisse levantar toda a mão, o que se
seguiu a uma rudimentar elevação do braço.
Da testa brotavam gotas de suor, e com muito esforço o presidente
conseguiu heroicamente esticar o braço e derrubar a mão amortecida sobre o aparelho
telefônico. Quase vencera o formigamento local, mas temendo que a aranha ainda
se encontrasse sobre o lençol, evitou qualquer movimento desnecessário.
Com a cabeça colada ao travesseiro, sem poder olhar a tela do dispositivo,
seguiu tateando-o intuitivamente, procurando acionar o viva-voz e a discagem
automática para contatar algum assessor. Depois de um tempo indefinido, o plano
acabou funcionando.
“Alô”, disse uma voz masculina do outro lado da linha. Como que amarrado
à cama, o político conseguiu entonar apenas um mugido incompreensível. Do outro
lado da linha, alguém respondeu:
“Pai? Algum problema?”.
Reconhecia claramente aquela voz. Havia ligado para o primogênito, que o
acompanhava naquela viagem oficial mesmo sem fazer parte do governo. Chegou a se
emocionar pensando na abnegação do filho amado.
Entre gaguejos e relinchos, o presidente conseguiu pronunciar lenta e
desesperadamente as seguintes sílabas: “so-co-rro”, “quar-to” e “mé-di-co”. O filho,
que estava tomando uma piña colada no bar do hotel, respondeu: “Tudo
bem, pai, fique calmo. Eu logo chego com ajuda”.
Quinze minutos se passaram até que a porta da suíte se abrisse. Entraram
três homens: o filho do presidente, o gerente do hotel e, atrás deles, um rapaz
de estatura baixa e pele escura, carregando uma surrada maleta de couro.
“Señor Presidente, este es el Dr. Gonzales, un médico que amablemente se
ha puesto a su disposición para asistirlo”, disse o gerente.
“Pai, a gente precisa entender exatamente o que aconteceu”, disse o
filho, preocupado. E sussurrou ao gerente: “Crêdio que mi padre sofreste un
derrame”, em péssimo portunhol.
Neste ponto, a autoridade brasileira já conseguia falar melhor, apesar
de ainda manter uma rigidez quase cadavérica. Em seus olhos estava registrado o
medo de perecer sobre aquela cama, fora do seu país, sem fazer ao menos um último
pronunciamento para a nação.
“Foi a aranha-reclusa. Picou lá embaixo”, conseguiu balbuciar com o
canto da boca, apontando com os olhos arregalados.
O jovem médico pediu licença e, com ajuda dos outros dois homens, virou de
lado o corpo do presidente. Ao abaixarem a cueca para examinar as nádegas,
verificaram algo incomum e trocaram olhares antes da emissão de qualquer
conclusão precipitada.
“Señor presidente, ¿ha visto la araña?”, o médico perguntou,
educadamente.
“Ele quer saber se você viu a aranha, pai”, traduziu o filho.
“Não vi. Tava escuro. Já deve estar longe”, falou, com certa
dificuldade, enquanto tinha os membros massageados pelo médico para ir recuperando
os movimentos.
O doutor verificou a pressão arterial e, sempre sério, voltou a olhar em
direção ao filho e ao gerente. Este não conseguiu segurar um riso sutil.
“Pai, essa cueca é nova?”.
“Sei lá. Por quê?”.
O filho relutou, mas disse:
“O que tinha na sua bunda era a etiqueta com um alfinete. Foi isso que
te espetou”.
O médico, mantendo o respeito, concluiu: "Afortunadamente, no
parece haber ningún signo de picadura en su cuerpo, señor".
“Mas e a paralisia?”, perguntou o presidente, visivelmente contrariado.
“Le pasa a algunas personas en casos de mucho estrés. Pero parece que el
efecto ha desaparecido”, explicou o médico.
“Ele disse stress? Comigo, não. Isso é coisa de fresco”.
O médico ignorou, passando a perguntar:“¿Puedes levantarte?”.
O presidente conseguiu sentar na beirada da cama e o filho aproveitou
para tentar quebrar o gelo. “Que cueca perigosa, hein, pai? Graças a Deus foi
só um susto”.
Mostrando-se ainda mais mal humorado com a piada diante daqueles
estranhos, o presidente levantou-se com violência, confirmando estar bem. Antes
que fizessem outra gozação, fechou o rosto, duro como uma rocha.
“Pois eu sei que levei uma picada. Talvez não de uma aranha, mas tenho
certeza absoluta que não foi só um alfinete!”.
E, despachando os três homens para fora do quarto, falou em tom elevado
com o filho: “Onde foi que você arrumou esse médico? O cara tem a maior cara de
homossexual! E esses chilenos não entendem porcaria nenhuma de medicina”.
“Soy cubano, señor”, disse o médico.
“Ah, piorou! Na próxima vez mandem um profissional de verdade, tá ok?”.
Então bateu a porta e ficou sozinho, nas sombras, intoxicado pelo único veneno
de verdade que percorria suas veias.
Muito bom! Críticas bem construída e muito bem humorada
ResponderExcluirExtremamente peçonhento! (Rs)
ResponderExcluirConto muito bom e divertido.