Após
ter colocado o filho para dormir, o homem chegou na sala e viu a esposa
dormindo no sofá, diante do televisor ligado. Pelo costume, ele deveria
sentar-se ao lado dela, mas naquela noite fez diferente. Foi até o banheiro e
trancou a porta.
Olhou-se
no espelho e viu um homem envelhecido, quase totalmente infeliz. A única
alegria vinha do filho, que parecia ser a última criatura do mundo a quem sua
existência fazia alguma diferença. Marcos não tinha nenhum outro orgulho na
vida, exceto o de ser pai.
Suspirou,
arrependido da maioria de suas decisões ao longo das décadas. Chegava a
um ponto em que não restavam muitas alternativas, e era duro ter que encarar aquela
realidade. “O que você fez com todo aquele potencial?”, perguntou ao
seu reflexo. O estrondo de uma batida na porta parecia trazer uma resposta, mas
era apenas a esposa reclamando sua ausência. “O que você tá fazendo aí dentro?”,
ela perguntou.
Marcos saiu e tentou justificar-se. “Vi que você já estava dormindo, por isso não me
sentei ao seu lado hoje”. Ela parecia desconfiada. “É claro! Estou cansada
porque trabalhei muito. E hoje você demorou mais para fazê-lo dormir. Por quê?”.
Ela
não tinha interesse pelos monstros em que o filho acreditava, e não queria que
isso fosse incentivado nele. Marcos teve que inventar outra desculpa para não
irritar a esposa. “Ele estava um pouco agitado hoje, só isso”. Ela era muito
prática, e não queria que o filho tivesse qualquer ímpeto artístico, como o pai.
“Bem,
eu vou dormir, porque amanhã saio cedo”, disse ela. Marcos sentia o ressentimento
nas palavras dela, por ter um marido que não contribuía financeiramente no lar.
“Eu também vou indo”, ele respondeu, mesmo estando sem sono. Sua esperança era
que ela dissesse: “Tudo bem, pode ficar aí e assistir alguma coisa na TV”, mas
ela apenas perguntou: “E aquele emprego que você foi ver semana passada, não
deu em nada?”.
Marcos estava há meses em casa, e sentia-se bem fazendo as atividades domésticas, cuidando
da educação do filho e, nas horas vagas, escrevendo sobre monstros. Contudo, as
cobranças da esposa sempre o lembravam de que aquela situação não poderia
continuar. Ele tinha que arrumar um emprego que não lhe desse nenhuma alegria
mas que pagasse um salário.
“Eu
vou arranjar alguma coisa logo, prometo”, disse, enquanto ela se afastava sem
prestar atenção. Marcos sentou-se no sofá e lembrou a conversa que teve com o
filho, na qual ele confessava estar sofrendo nas mãos de colegas. Na sua época não existia a palavra bullying, o que era muito pior. Ficou
lembrando das humilhações, dos xingamentos e das feridas que o bombardeavam na infância.
“Vai
contar pra sua mãezinha, seu palerma?”, gritava aquele menino bronco, depois de
estapeá-lo no rosto e rasgar seu gibi. "Palerma! Palerma!". Marcos nunca esqueceu as provocações, as
ameaças e os risos. Eram crianças, mas naquele
tempo, para ele, eram demônios.
“Ele
não é de nada mesmo”, zombavam os outros meninos, enquanto Marcos engolia o
choro. Foi assim há trinta anos, e continuava sendo. A vida sempre o sufocava, fosse
através de uma gangue de garotos malvados, de um chefe injusto ou de uma esposa
autoritária. Uma lágrima escorreu, mas Marcos a enxugou. O melhor era pensar em alguma lembrança feliz, antes que a mulher o visse daquele jeito. Senão, ela o
chamaria mais uma vez de fraco e patético, já que homens de verdade não choram.
que texto magnífico! parabens
ResponderExcluirEssa história é real ?
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