quarta-feira, junho 24, 2015

A Mão Morta (L.F.Riesemberg)




Todos os dias para ir à escola, Heitor pegava um atalho pelo ferro velho. Ele atravessava o terreno observando as carcaças, imaginando como eram aqueles carros antes de lá chegarem.

-Estão mortos – disse certa vez, quando Jonas o acompanhava.

-Vamos brincar neles! – falou o amigo.

Nenhuma criança deveria ficar ali, mas Heitor acabou sendo convencido pelo amigo, e eles ficaram correndo entre os restos de automóveis. Ele sentia que o que estavam fazendo era errado, mas não ouviu sua intuição. Depois, tudo aconteceu muito rápido: uma sombra que mudou de lugar, e então um estrondo. Uma enorme pilha de carros havia desmoronado sobre o amigo. O desespero bateu quando viu a mão do garoto esmagada sob toneladas de aço.

Naquele dia terrível, Jonas perdeu sua mão. Nunca mais poderia segurar nada, nem cumprimentar ninguém com a mão direita. Para continuar estudando, teria que aprender a ser canhoto. A vida dele nunca seria a mesma.

Heitor sentia-se culpado, e não quis mais atravessar o ferro velho. Semanas depois, quando reviu o amigo, teve vontade de chorar. Faltava um pedaço dele!

E apesar da sua insistência em não entrarem mais lá, o amigo quis ir pelo caminho do ferro velho.

-Jonas, você não se sente mal vindo aqui, depois do que te aconteceu?

O menino ficou sério. Queria contar algo.

-Minha mão se foi, mas eu ainda a sinto.

-A sente doer? – perguntou Heitor.

-Às vezes. Mas agora que voltamos a este lugar, sinto umas vontades estranhas.

-Que vontades, Jonas?

-De apertar com força. De dar socos na cara de alguém. E não posso...

-Vamos embora daqui. Este lugar é ruim.

Heitor apressou os passos. Ao seu redor, um cemitério de máquinas a céu aberto, com centenas de faróis o encarando.

-Você disse que esses carros estavam mortos – disse Jonas.

-E daí?

-E se os fantasmas deles estiverem aqui?

-O que?

-Talvez o fantasma dos motoristas que morreram dentro deles.

Heitor mirava o portão de saída. Sentia-se sufocado lá dentro.

-Devem ter sido eles que jogaram os carros sobre mim. Foram os espíritos daqui que me fizeram perder a mão!

-Não diga bobagem, Jonas.

Agora passavam exatamente pelo local do acidente. Lá estava o morro desmanchado, e as manchas de sangue seco.

-Pare aí, Heitor!

-Não! Vamos embora!

-Se não foram fantasmas, então o culpado é você! Quem foi que esbarrou na pilha de carros e a derrubou?

-Jonas, não foi de propósito!

O menino estava transformado. Olhava furiosamente para a mão de Heitor.

-Você me deve! Eu quero a sua mão para mim!

Heitor, apesar de assustado, entendeu a raiva do amigo. Ele já tinha pensado que, cedo ou tarde, aquele momento chegaria, e não pretendia fugir do seu dever.

-Tudo bem, Jonas. Eu reconheço que sempre terei esta dívida. Pode pedir o que quiser, e eu farei para você, com a minha mão. Para isso servem os amigos...   

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