sábado, janeiro 14, 2012

Meu Herói (L.F. Riesemberg)

Uns dez anos depois de eu ter nascido, passei por esta fase de adorar ir às matinês assistir velhos filmes de bang-bang e sair por aí com meus amigos, dando tiros com um revólver imaginário. Nas tardes de sábado, depois do cinema, aproveitávamos para reunir a turma da escola e discutir sobre as coisas importantes da vida.
    Em certo verão a moda foi tentar completar um álbum de figurinhas de super-heróis, e aproveitávamos esses encontros para tentar trocar as gravuras repetidas ou ganhar algumas novas no jogo de bafo.
    Lembro que, em certo dia, estávamos em uma praça, cada um com seu álbum debaixo do braço e um maço de homenzinhos fantasiados, repetidos, guardados no bolso. Foi quando um dos companheiros da roda começou a conversa:
    —Quem vocês acham que é o melhor herói do mundo?
    Essas preocupações eram comuns para garotos da nossa idade. Não havia nenhum de nós que nunca tivesse usado horas de imaginação pensando em assuntos como aquele, e todos tínhamos a resposta na ponta da língua.
    —O Super-Homem, claro! — disse um deles. — Ele é o mais forte de todos, e pode voar! Nunca ninguém o venceu.
    Não demorava muito para estar estabelecido um debate mirim sobre o tema, com alguns criticando severamente a opinião alheia e apresentando o seu forte ponto de vista.
    —O Super-Homem é muito trouxa. Bom mesmo é o Batman: ele só sai de noite, todo medonho, vestido de preto. E ele é um homem de verdade, sendo que todo mundo sabe que o Super-Homem nem existe. Já viu alguém voar? Já viu alguém ter lasers que saem dos olhos?
    —É porque ele é um alienígena, seu burro! Esqueceu que veio do planeta Krypton?
    E assim seguíamos, cada um achando-se o dono da verdade. Verdade esta que muitas vezes era destruída em apenas um segundo, por uma frase alheia.
    Naquela hora eu fiquei à parte da conversa. Sabia que meu herói preferido seria zombado de alguma forma, já que se tratava do loiro Aquaman. Não sei por qual motivo ele me atraía, já que nem tinha grandes poderes, e era tratado como um coadjuvante de outros personagens mais famosos. Mas algo nele me chamava a atenção, e eu sempre buscava as revistas que tinham sua participação, por mais curta que fosse. Adorava aquela combinação das cores laranja e verde com as quais era sempre pintado, e seus poderes não eram nada ruins: possuía força superior, podia viver debaixo d’água e ainda se comunicava com os animais marinhos.
    Não palpitei, fiquei apenas ouvindo o que os outros falavam, até que um dos meninos do grupo, que havia sido coroinha na igreja e era nosso amigo há pouco tempo — e que normalmente não falava muitas coisas interessantes — surgiu com aquele assunto estranho. A mim pareceu uma piada e, assim que ele falou, todos riram ou ao menos prepararam-se para rir.
    O que ele disse foi:
    — O maior super-herói de todos é Jesus!
    Ninguém quis levar o garoto a sério. A palavra os fazia pensar na chata obrigação de ir à missa com os pais, todo domingo de manhã. Também os fazia lembrar todos os castigos que já haviam recebido por terem falado algum palavrão, ou por não emprestarem seus brinquedos ao irmão caçula. Os pais sempre vinham com esses assuntos de religião quando queriam humilhar os filhos depois que eles faziam algo errado. E nenhum de nós nunca havia falado positivamente sobre aquilo quando estávamos sozinhos, sem a presença de um adulto.
    —É verdade! Já pararam para pensar? — interrogou o menino.
    Eu até tentei, mas a imagem de Jesus estava atrelada ao ambiente rígido e chato da igreja. Não tinha relação alguma com as movimentadas aventuras que eu lia nas histórias em quadrinhos, cheias de bandidos, tiroteios, socos e enrascadas. E parecia-me idiota a figura de um Jesus barbudo usando uma capa nas costas e voando pelo céu.
    Não demorou nada para alguém expressar a mesma opinião que eu tinha.
    — Você está louco? Jesus não é um herói.
    — É sim! — insistia aquele garoto. — Ele tem super-poderes!
    Até então eu achava que ele estava de zombaria, mas quis saber do que estava falando.
    —Ele cura as doenças mais graves. E até ressuscita os mortos! Lembram daquela vez com Lázaro no sepulcro? Foi assustador. Ele disse “Levanta!”, e o morto acordou e saiu da caverna!
    Eu nunca havia pensado daquela maneira. Super-poderes, para mim, eram uma força maior que o normal, ou a capacidade de se transformar em outras coisas, como aquele casal de gêmeos fazia. Podia ser também visão de raio-x, invisibilidade, elasticidade, uma porção de coisas, mas nada daquilo que aprendíamos nas chatíssimas aulas da catequese. Ao que o menino rebatia:
    —Jesus tem também o poder de transformar uma coisa em outra. Lembram de como fez a água virar vinho? Com certeza pode fazer isso com outras coisas também. Por exemplo, Ele poderia transformar a arma na mão do inimigo em uma cobra. Ah, e também consegue multiplicar as coisas, como fez no milagre dos pães. Imagine tudo o que ele poderia fazer apenas com esse poder!
    Eu mesmo aleguei que Jesus só tinha feito aquilo uma única vez, e ainda por cima com pães! Eu duvidava muito que se pudesse fazer o mesmo com armas, ou montanhas, ou elefantes, ou com qualquer outra coisa grande.
    —Digamos que Jesus só consiga multiplicar essas coisinhas pequenas e leves. Que utilidade isso teria? — interroguei.
    O garoto olhou ao redor e pegou uma borboleta que havia pousado no banco da praça onde estava sentado, e continuou:
    —Se Ele fizesse essa borboleta se multiplicar por mil, ou dez mil, até cem mil, sei lá, e fizesse com que elas rodeassem o vilão, derrubando aquele pó das asas nos olhos dele, e começassem a entrar pelo nariz e pela boca do sujeito, logo ele não conseguiria respirar, e nem enxergaria nada, então seria fácil agarrá-lo.
    Assim como os outros, eu ri naquela hora, porque a ideia pareceu tola demais. Mas não deixava de fazer sentido: se Jesus multiplicava pães, poderia fazer aquilo com outros objetos, ao menos os pequenos, e é claro que isso teria alguma função para se combater o Mal.
    Porém, logo outro colega já estava propondo uma nova visão:
    — Então! Você falou em milagres. É isso aí: Jesus não é um herói. Ele é um santo! É por isso que consegue fazer essas coisas. Agora você acha que todos os santos podem virar super-heróis? Será que a gente ia ver uma história de Santo Antônio versus O Duende Macabro, ou uma Liga de Heróis formada pelos apóstolos?
    Mais risos da turma.
    O garoto defensor do Cristo-herói ficou pensando por um momento. Talvez não tivesse tido aquela ideia ainda, mas logo após refletir um pouco, disse:
    —É, pode até ser. Nem todos os santos têm poderes. Só alguns. Mas de qualquer forma, Jesus ainda seria o líder de todos, porque é o mais forte, o mais bondoso, o mais poderoso...
    — E a identidade secreta? Todos os heróis têm! — aleguei.
    — Eles usam um nome falso por proteção. Seria perigoso se todos os bandidos e vilões soubessem onde eles moram, onde trabalham e quem é a família deles. Mas Jesus é o mais corajoso. Ele não tem medo de nada, nem de ninguém.
    Cada um de nós tinha um argumento para convencer o garoto de que ele estava errado, e que não deveria misturar as coisas. Igreja e aventuras não combinavam.
    Outro menino quis saber:
      — E o uniforme? Que graça tem um super-herói que só usa aqueles panos para se cobrir?
    Mas aquele garoto parecia ter uma resposta para tudo:
    — Aqueles panos se chamam túnica, e era a roupa que se usava no tempo em que Jesus viveu. Se Ele existisse nos dias de hoje, acho que vestiria aquilo que todo mundo usa. Como eu disse, ele não ia precisar ficar escondendo o rosto, nem nada.

    Fiquei olhando o garoto rebatendo todas aquelas dúvidas, e algo nele me fazia pensar diferente. Apesar de haver essa negação por parte de quase todos em se aceitar Jesus como um herói, as histórias do Evangelho ficavam muito mais interessantes depois que eu o imaginei como uma coletânea de histórias de heróis. Era bem possível que Jesus tenha sido uma espécie de super-homem, que combateu o mal e protegeu os fracos e oprimidos. E pensando bem, Jesus existiu mesmo. Não era ficção.
    Havia tantas coisas fora do comum na vida de Cristo, e eu nunca tinha me interessado tanto por Ele. Mas naquela hora parece que deu um click em minha cabeça, e comecei a pensar melhor nas pessoas que se curaram só de tocá-Lo, e na vez em que foi visto caminhando sobre as águas, e ainda nas ocasiões em que previu o futuro — como na hora do beijo de Judas.
    Sim, aquele menino parecia estar com certa razão, e deveria ser ouvido. Jesus seria um super-herói bem interessante. Nós é que ainda não tínhamos reparado.
    Eu estava quase convencido, quando um outro garoto da nossa turma veio com a seguinte pergunta:
    — Se Ele é um super-herói, cadê Ele?
    Na mesma hora lembrei de Jesus na cruz, ensanguentado e humilhado.
    O coroinha já estava se preparando para responder, mas o outro continuou:
    — Que herói é esse, que apanha, é torturado e morto, e não faz nada?
    Todos começamos a pensar naquilo. Super-heróis tinham obrigação de vencer, senão não seriam super-heróis.
    — Jesus morreu! Mataram Ele! E nem teve dignidade de se defender! Se tinha realmente poderes, por que não usou quando mais precisou? Para mim, todas essas histórias são mentira. O professor falou lá na escola, uma vez que escutei atrás da porta, que isso tudo foi inventado pelos padres. Jesus era só um homem bom, que falava coisas bonitas, mas nunca curou ninguém, nem andou na água, nem nada...
    O menino atirou aquelas frases como um jato de água gelada na minha recém inaugurada nova verdade. Eu já tinha mesmo ouvido essas histórias, de que não há provas sobre Jesus não ter passado de apenas um homem comum, sem nada de extraordinário.
    Já estava começando a gostar de encará-lo como um herói, um protetor do Planeta, mas a afirmação daquele garoto fazia sentido: por que é que alguém se deixaria apanhar e morrer injustamente se tivesse como escapar? Por que Jesus não fez uma mágica e não derrotou todos aqueles que o maltrataram? Por que não fez as grades desaparecerem e não fugiu da prisão enquanto podia?  
    — Como é que você vai ser protegido por um herói que não consegue salvar nem a si mesmo? — disse, talvez não exatamente com essas palavras, o garoto revoltado.
    O outro, que defendia o Cristo, estava ruminando as informações, e teve que levantar a voz para ser ouvido pela turma, que já começava a discutir.
    — Mas Ele não morreu de verdade! Ele foi visto por várias pessoas depois da crucificação!
    Foi aí que um novo menino, que também não devia ter gostado da imagem do Super Jesus, injetou um pouco mais de veneno na discussão:  
    — Então Ele não é um herói mesmo: é um fantasma! Ou pior: é um morto-vivo, um zumbi!
    Aquilo bastou para que todos explodissem em gargalhadas. Nunca alguém havia falado algo daquele tipo, e se fôssemos pensar em todas as possibilidades para o que realmente era Jesus, passaríamos a tarde toda discutindo.
    O garoto que começou a falar de Cristo sentiu-se exausto de tanto tentar convencer os amigos, e deu um longo suspiro, decepcionado com aquelas palavras tão amargas a respeito do seu ídolo. Naquele dia passamos a vê-lo como um católico chato e defensor da igreja, que não entendia nada sobre histórias em quadrinhos, nem sobre heróis, nem sobre aventuras legais, nem sobre nada. Não demorou muito para que parasse de sair conosco, e se tornasse apenas mais um rosto conhecido.
    Passaram-se os meses, e continuamos a levar nossa vida de sempre. Toda a vez que eu tinha que ir à missa e via as figuras de Cristo crucificado estampadas pelas paredes, recordava de como quase acreditei que Ele tinha sido um super-herói. Não que Ele não tivesse sido um cara legal, mas também era exagero compará-Lo ao Aquaman, ou ao Super-Homem. Estes sim, não se deixariam ser presos, nem humilhados, abandonando aqueles que os seguem. Talvez tenha sido a maior decepção da minha vida até então, saber que alguém tão adorado no mundo inteiro não teve capacidade de se libertar de uma cilada, nem de se vingar exemplarmente de quem o traiu. As pessoas esperavam algo de Jesus, e Ele as decepcionou. Como eu poderia crer em um herói desses?
    Tempos depois, não quis mais ir à igreja, preferindo ficar com meus gibis e álbuns de figurinhas. Eu já começava a formar minha própria personalidade, deixando de lado tudo que haviam me feito acreditar naqueles primeiros anos da minha vida. Meus pais ficaram tristes naquela época, mas sempre foram muito compreensivos e não me obrigaram a seguir a crença deles.
    — O importante é crer em Deus — dizia meu pai, lembrando que todas as religiões adoravam o mesmo Pai, e que eu poderia seguir aquela que mais me agradasse.
    Porém, naqueles anos em que começa a adolescência, não tive interesse em procurar religião alguma. Havia muitos outros assuntos interessantes a se aprender, e todos os amigos da turma concordavam com isso. Passamos a voltar para casa à noite, a fumar e a beber escondidos, e a nos envolver com garotas. Era isso o que faltava para eu deixar todos meus heróis de lado e a não querer mais ir, definitivamente, à igreja ou a qualquer outro templo.
    Contávamos com quatorze anos. Numa dessas noites de loucura, em que conseguimos uma garrafa de vodka e vagávamos pela cidade em um velho Opala que algum rapaz pegou da garagem do pai, aconteceu algo que, mais uma vez, modificou minha visão.
    O nosso motorista quis demonstrar sua habilidade ao volante, e passou a fazer manobras perigosas, em alta velocidade. Não contentes com as acrobacias nas ruas da cidade, rumamos para a rodovia, onde o automóvel poderia atingir seus limites.
    Havia eu e mais três no interior do carro. Devíamos todos estar alucinados, gritando e rindo como doidos, achando que aquilo era aproveitar a vida.
    No auge da agitação, como poderia se esperar, o veículo derrapou e saiu da pista, vindo a colidir com a grade de proteção de uma ponte de madeira, e caiu em um rio com pelo menos dez metros de profundidade.
    Era noite, eu estava bêbado e preso ao assento do Opala, sem conseguir me mover, sentindo a fria água entrar pela janela.
    Fiquei paralisado, sem entender o que estava acontecendo, com os olhos ardendo.  
    Um raro lampejo de razão que me veio à mente naquela hora,como um dedo me acusando: “Você não sabe nadar”.
    Por mais que me esforçasse, sentia que não conseguiria sair do interior do veículo. E mesmo que conseguisse, morreria afogado. Já totalmente submerso, mas ainda descendo cada vez mais para o fundo das águas, percebi que já estava sozinho. Os outros deviam ter conseguido se soltar, e sabiam nadar.
    Estava imerso no silêncio do rio, esperando o oxigênio e o meu suplício acabarem.
    Na hora fatal, lembrei de muitas coisas que haviam se passado na minha vida. Pensei nos meus pais, nos meus amigos, nas minhas brincadeiras, na escola. Pensei nas garotas que eu gostava, nas revistas em quadrinhos que eu lia, nas sessões de cinema de sábado à tarde, e na igreja que eu havia abandonado. Apesar de minha desistência, deveriam fazer uma missa pelo meu passamento. Um padre diria coisas bonitas a meu respeito, e meus tristes pais depositariam flores em meu túmulo e manteriam meu quarto do jeito como estava, para que eu não me apagasse da memória deles. A escola não abriria no dia seguinte, e a professora faria uma oração com os alunos assim que as aulas retornassem ao normal.
    Foi já com os olhos fechados, pensando no meu fim, que senti um puxão nas minhas vestes. Uma mão me agarrava e, com muita força, me atraía para fora do carro. Fui como que pescado, e levado para o alto das águas, até atingir a superfície. A primeira golfada de ar que inundou meus pulmões me deu a sensação de estar nascendo naquele momento. Ninguém à volta saberia que eu chorava, porque as lágrimas se confundiam com a água que cobria meu rosto.
    Deitado no chão, vi a alguns metros de distância os olhares assustados e culpados dos meus três companheiros, e logo em seguida notei outro rosto perto do meu. Era de um homem loiro que eu nunca havia visto, apesar de parecer estranhamente familiar, e cujos olhos expressavam um grande assombro.
    — Está vivo! Graças a Deus! — dizia ele.
    Depois enfiou a mão pela gola da sua camisa laranja encharcada, e de lá tirou uma corrente com uma cruz de prata, e levou-a aos lábios para dar um carinhoso beijo.
    — Foi Jesus Cristo quem me fez estar passando aqui. Foi Ele quem me deu coragem para me atirar na água e te salvar. Rapaz: é Ele o teu herói. 

7 comentários:

  1. demais esse conto,fiquei maravilhado

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  2. Gostei. Não podemos esquecer que jesus não necessita de comida!
    XD

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  3. Belo conto, nunca havia lido seus trabalhos, estou gostando muito, parabéns!

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  4. Parabéns pelo seu trabalho, li para meu filho de oito anos , ele também gostou muito!

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  5. Lindo!
    Parabéns pelo seu trabalho.

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