quinta-feira, setembro 11, 2014

Beijo, (Roald Dahl)





Talvez o escritor galês Roald Dahl (1916-1990) seja mais conhecido pelos seus livros infantis, como A Fantástica Fábrica de Chocolate. Mesmo que você não tenha lido esta obra, provavelmente já assistiu a uma das duas adaptações cinematográficas, protagonizadas por Gene Wilder (versão de 1971) ou Johnny Depp (de 2005), e talvez tenha notado um clima demasiado irônico e dark. Afinal, não é sempre que vemos um filme infantil com crianças sendo jogadas em dutos de lixo ou então infladas como uma bola de chiclete.

Acontece que os contos infantis de Roald Dahl são povoados com estes elementos que podem até assustar um adulto, mas que as crianças adoram (Chapeuzinho Vermelho, por exemplo, é uma história de terror – e na versão original o Lobo devora a menina!). Dahl, inclusive, é o criador dos Gremlins, aquelas criaturinhas infernais que vimos nos dois filmes produzidos por Steven Spielberg.

Pois, bem. Imagine se um autor que tem essas ideias um tanto bizarras resolvesse escrever contos de temática adulta. Não precisa mais imaginar: ele escreveu! Dahl tem cerca de cinquenta short stories publicadas em cinco livros, todas de uma imaginação admirável, diferentes de tudo o que você possa pensar. Essas coletâneas são Kiss Kiss; Over To You; Switch Bitch; Someone Like You e Eight Further Tales of the Unexpected. Infelizmente apenas o primeiro foi lançado no Brasil, com o título Beijo Com Beijo (editora Marco Zero, 1989) e depois foi reeditado e ganhou nova tradução como Beijo, (assim com esta vírgula mesmo, editora Barracuda, 2007). Nele há onze contos adultos, maravilhosos e assustadoramente inteligentes.

Para se ter uma noção, é de Dahl o conto que deu origem àquele episódio de Além da Imaginação de roer as unhas, em que um rapaz aposta o seu mindinho com um velho milionário: caso seu isqueiro acenda dez vezes seguidas, o cara ganha um Cadillac novinho – caso falhe, ele perde o dedo (Quentin Tarantino fez uma paródia no filme Grande Hotel, com resultado mediano). Trata-se do conto The Man From The South, do livro Someone Like You.

Beijo, (ou Beijo Com Beijo, tanto faz) traz, em sua maioria, contos cujos protagonistas são pessoas comuns que encontram uma ideia absurdamente fantástica para se darem bem. Por exemplo, em O Prazer do Pastor, um comerciante de móveis raros fantasia-se de padre e usa a ignorância de fazendeiros falidos para adquirir, a preço de banana, uma relíquia de valor inestimável. Já em O Casaco do Coronel, uma esposa adúltera bola um plano infalível para poder ficar com um caríssimo casaco de pele de vison que ganhou do amante, sem que o marido desconfie da traição. Nem preciso dizer que, no fim de cada história, essas pessoas sentirão muito mais do que o próprio veneno: serão sabotadas pela própria inteligência, caindo em uma armadilha muito pior do que aquelas que armaram. E esses finais são tão surpreendentes que eu me pegava gargalhando alto durante vários trechos do livro (o que, por si só, já é algo bizarro – quantas vezes você já riu para valer lendo uma história de suspense ou terror?).

É claro que nem todos os contos aqui reunidos seguem esse padrão. Em Geleia Real, por exemplo, ficamos sabendo o que acontece quando um bebê que não quer mamar passa a ser alimentado com esse curioso e nutritivo produto das abelhas. Willian & Mary beira mais o fantástico, quando uma viúva descobre que o cérebro do marido continua vivo em um pote na casa do amigo cientista. Mas talvez o destaque seja mesmo Porcos, onde Dahl faz uma surpreendente inversão dos tradicionais contos infantis e cria uma fábula satírica, cruel e grotesca sobre um menino criado na fazenda, longe da corrupção da cidade grande. Pode-se dizer, sem exageros, que este é um dos momentos de maior humor negro da literatura mundial (além de ser uma bela crítica ao consumo de carne – ao menos na minha interpretação).
Enfim, se você ainda não conhece a obra de Roald Dahl, faça isso correndo! Seus livros infantis são ótimos, mas os contos adultos são obras-primas do insólito, que dificilmente sairão de sua cabeça.

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