Talvez
o escritor galês Roald Dahl (1916-1990) seja mais conhecido pelos seus livros
infantis, como A Fantástica Fábrica de Chocolate. Mesmo que você não tenha lido
esta obra, provavelmente já assistiu a uma das duas adaptações
cinematográficas, protagonizadas por Gene Wilder (versão de 1971) ou Johnny
Depp (de 2005), e talvez tenha notado um clima demasiado irônico e dark. Afinal,
não é sempre que vemos um filme infantil com crianças sendo jogadas em dutos de
lixo ou então infladas como uma bola de chiclete.
Acontece
que os contos infantis de Roald Dahl são povoados com estes elementos que podem
até assustar um adulto, mas que as crianças adoram (Chapeuzinho Vermelho, por
exemplo, é uma história de terror – e na versão original o Lobo devora a
menina!). Dahl, inclusive, é o criador dos Gremlins, aquelas criaturinhas
infernais que vimos nos dois filmes produzidos por Steven Spielberg.
Pois,
bem. Imagine se um autor que tem essas ideias um tanto bizarras resolvesse
escrever contos de temática adulta. Não precisa mais imaginar: ele escreveu!
Dahl tem cerca de cinquenta short stories publicadas em cinco livros, todas de
uma imaginação admirável, diferentes de tudo o que você possa pensar. Essas
coletâneas são Kiss Kiss; Over To You; Switch Bitch; Someone Like You e Eight
Further Tales of the Unexpected. Infelizmente
apenas o primeiro foi lançado no Brasil, com o título Beijo Com Beijo (editora
Marco Zero, 1989) e depois foi reeditado e ganhou nova tradução como Beijo,
(assim com esta vírgula mesmo, editora Barracuda, 2007). Nele há onze contos
adultos, maravilhosos e assustadoramente inteligentes.
Para
se ter uma noção, é de Dahl o conto que deu origem àquele episódio de Além da
Imaginação de roer as unhas, em que um rapaz aposta o seu mindinho com um velho
milionário: caso seu isqueiro acenda dez vezes seguidas, o cara ganha um
Cadillac novinho – caso falhe, ele perde o dedo (Quentin Tarantino fez uma
paródia no filme Grande Hotel, com resultado mediano). Trata-se do
conto The Man From The South, do livro Someone Like You.
Beijo,
(ou Beijo Com Beijo, tanto faz) traz, em sua maioria, contos cujos
protagonistas são pessoas comuns que encontram uma ideia absurdamente
fantástica para se darem bem. Por exemplo, em O Prazer do Pastor, um
comerciante de móveis raros fantasia-se de padre e usa a ignorância de
fazendeiros falidos para adquirir, a preço de banana, uma relíquia de valor inestimável.
Já em O Casaco do Coronel, uma esposa adúltera bola um plano infalível para
poder ficar com um caríssimo casaco de pele de vison que ganhou do amante, sem
que o marido desconfie da traição. Nem preciso dizer que, no fim de cada
história, essas pessoas sentirão muito mais do que o próprio veneno: serão
sabotadas pela própria inteligência, caindo em uma armadilha muito pior do que
aquelas que armaram. E esses finais são tão surpreendentes que eu me pegava
gargalhando alto durante vários trechos do livro (o que, por si só, já é algo
bizarro – quantas vezes você já riu para valer lendo uma história de suspense
ou terror?).
É
claro que nem todos os contos aqui reunidos seguem esse padrão. Em Geleia Real,
por exemplo, ficamos sabendo o que acontece quando um bebê que não quer mamar
passa a ser alimentado com esse curioso e nutritivo produto das abelhas.
Willian & Mary beira mais o fantástico, quando uma viúva descobre que o
cérebro do marido continua vivo em um pote na casa do amigo cientista. Mas talvez
o destaque seja mesmo Porcos, onde Dahl faz uma surpreendente inversão dos
tradicionais contos infantis e cria uma fábula satírica, cruel e grotesca sobre
um menino criado na fazenda, longe da corrupção da cidade grande. Pode-se
dizer, sem exageros, que este é um dos momentos de maior humor negro da
literatura mundial (além de ser uma bela crítica ao consumo de carne – ao menos
na minha interpretação).
Enfim,
se você ainda não conhece a obra de Roald Dahl, faça isso correndo! Seus livros
infantis são ótimos, mas os contos adultos são obras-primas do insólito, que
dificilmente sairão de sua cabeça.
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