O escritor uruguaio
Horácio Quiroga (1879-1937) teve uma vida marcada por várias tragédias. Quando
criança, viu seu pai suicidar-se com um tiro. Alguns anos depois é o padrasto
que suicida-se. Na juventude apaixona-se por uma jovem, mas o romance não
prospera devido a oposição da família dela. Aos 24 anos, depois que dois de
seus irmãos morrem, Quiroga mata acidentalmente um amigo com uma pistola e,
desesperado, tenta o suicídio. Aos 29, quando era professor, namora uma aluna de
15 anos, encontrando novamente resistência dos pais dela, mas desta vez
casa-se. Depois de algum tempo, muda-se com ela e a filha pequena para a selva,
onde trabalha com plantações. Porém, a jovem não adapta-se e, após alguns anos,
suicida-se. Ele permanece na mata por mais algum tempo com os dois filhos
pequenos, mas decide voltar. Vê seu amigo Baltazar Brum chegar à presidência —
época esta em que o escritor gozou de certo prestígio — mas alguns anos depois
o vê sendo destituído do poder e, (sim, isto mesmo) suicidar-se. Quiroga volta
a morar na selva com uma nova esposa, e esta também não se adapta e resolve
deixá-lo. Pobre, descobre que tem câncer no estômago, irreversível e que lhe
causa graves dores. Suicida-se com uma dose de cianureto. Mesmo após sua morte
os acontecimentos trágicos não cessaram na família, com o suicídio de suas
filhas.
Depois desta pesada
introdução, vamos tratar do assunto que nos interessa, que é a coletânea A
Galinha Degolada e outros contos — lançada em conjunto com Heroísmos
(Biografias exemplares), publicados como livro de bolso pela L&PM Pocket.
Trata-se, na verdade, de uma seleção de apenas seis contos e de alguns artigos
escritos pelo autor em uma revista portenha nos anos 20.
Como o título da
obra indica, entre os contos está presente a obra-prima de Quiroga. A Galinha
Degolada é uma das melhores narrativas breves que já tive o prazer de ler.
Através dela podemos conhecer as características que mais perseguem o autor
uruguaio, lembrando em muito suas tragédias pessoais. Na história, o casal
Mazzini-Ferraz vê seus sonhos de constituir família serem destroçados depois
que cada um dos seus quatro filhos é acometido por moléstias que os tornam
débeis mentais. Lendo hoje, temos um conto politicamente incorreto até a medula,
pois trata crianças portadoras de deficiências como verdadeiros monstros. São
elas as maiores causadoras de medo no leitor, pois a simples descrição do
comportamento dos quatro meninos já é apavorante. A forma como eles ficam a
tarde toda sentados em um banco no quintal com os olhos fixos no muro, ou como
eles riem bestialmente ao ouvirem trovões, chega a me causar pesadelos, assim
como quando eles são lavados, mugindo até os rostos ficarem injetados de
sangue.
Mas é claro que um
autor como Quiroga não usaria apenas este recurso no conto. Também descemos às
profundezas do inferno conjugal, acompanhando a tragédia do casal que, vendo
que nada podem fazer para evitar a desgraça que lhes abate, começam sutilmente
a acusar um ao outro pelos monstros que geraram. Até que finalmente nasce uma
filha perfeita, que os fazem temer sobre até quando ela continuará bem, antes
que fique como os irmãos. Um conto complexo, trágico e violento em todas as
formas (fisicamente, psicologicamente e narrativamente), com um final
impressionante sangrento.
Só A Galinha
Degolada já coloca Quiroga no panteão de grandes contistas latinos, mas a
coletânea ainda apresenta outras pérolas obrigatórias. Uma delas é O
Travesseiro de Penas, sobre uma frágil jovem que se casa com um sujeito duro, e
que é acometida de uma estranha moléstia.
Em O Solitário,
Quiroga revela-se uma espécie de Guy de Maupassant latino-americano, criando um
conto com uma personagem que, na ânsia de ser rica, casa-se com um joalheiro. O
problema é que ele é apenas um trabalhador sem tino para fazer fortuna, e isso
a frustra cada vez mais, principalmente ao ter que conviver com as magníficas
jóias que ele cria para os clientes. A comparação com Maupassant não é à toa,
como o atento leitor compreenderá.
Em O Espectro, há
uma ideia bastante original, com a criação de uma bela imagem. Creio que foi
daqui que surgiu a inspiração para o argentino Julio Cortázar escrever seu
conto Las Babas Del Diablo, que por sua vez inspirou o filme Blow Up – Depois
Daquele Beijo, de Michelangelo Antonioni. No conto, um jovem ator morre antes
da estreia de seu primeiro filme, e então a viúva e um amigo (que se amam e
agora estão juntos) vão ao cinema conferir a obra. Sentindo-se culpados, notam
que, em determinada cena do filme, o ator olha diretamente para eles, com
raiva, como se estivesse vivo. A cada vez que vão ao cinema e assistem ao filme
percebem que o ator chega mais perto da tela e os olha mais profundamente.
O Mel Silvestre
trata de um assunto bastante particular para Quiroga: a saída da cidade grande
para aventurar-se na selva. E a natureza, na obra do autor, não é nada
amigável. Aqui o protagonista tem seu caminho cruzado por um batalhão de
formigas carnívoras.
E finalmente A
Câmara Escura comprova, para mim, que Cortázar era leitor de Quiroga. Um
fotógrafo tira o retrato de um velho morto e se vê obrigado a encarar a câmera
escura para fazer a revelação, onde a horrenda face do defunto emergirá no
papel fotográfico. Um belo trabalho de aprofundamento psicológico é obtido aqui,
e se a história de um fotógrafo às voltas com uma de suas fotografias não
evocar Las Babas Del Diablo, então não sei mais o que podemos constatar.
Estes são os contos
do livro, que servem como um apetitoso prato de entrada para se conhecer o
magnífico autor. Além dos contos, também são interessantes os artigos
Heroísmos, que ocupam metade da coletânea. Neles, Quiroga apresenta momentos
marcantes da vida de ilustres personalidades, como Edgar Allan Poe e Louis
Pasteur, o que estabelece um belo par com os contos. São histórias de superação
e otimismo em meio a situações cruéis e difíceis, o que nos faz pensar mais uma
vez na trágica existência de Quiroga. Parece que, no fim de tudo, apesar dos
horrores e dramas que presenciou, ele queria dizer a todos que a vida vale
mesmo por aqueles pequenos momentos de heroísmo que temos em nosso dia-a-dia,
que podem ser demonstrados pela simples lealdade a um amigo, ou pela
insistência em se acreditar nos próprios sonhos — isto quando tais atitudes são
as mais difíceis e improváveis de serem tomadas por uma pessoa comum.
Neste aspecto,
concluímos que os contos macabros de Quiroga traziam, sim, várias de suas
frustrações, como a não-concretização de alguns amores, a falência de certos
planos e a morte de muitas pessoas queridas. Mas ao escrevê-los,
inconscientemente ele devia estar tentando dar um aviso aos incautos, para que
continuem a observar o lado bom das coisas e a não desanimar perante as
tempestades da vida.
Para adentrar mais
profundamente no território selvagem de Horácio Quiroga, procure por Contos de
Amor, de Loucura e de Morte, publicado no Brasil pela Record. Livro, aliás, que
traz no título as principais obsessões do escritor, ainda que as palavras
estejam em sentido inverso ao de predominância na sua obra.
Nenhum comentário:
Postar um comentário