Esta resenha é para
quem achava que Noite na Taverna era a única obra clássica da literatura
brasileira considerada como sendo de terror. Na verdade há vários dos nossos
grandes autores que adicionaram aos seus textos uma pitada do sobrenatural ou
afins, incluindo Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade. Mas o livro que
pretendo apresentar desta vez aqui na Biblioteca Mal Assombrada é o subestimado
Dentro da Noite, de João do Rio (1881 - 1921).
Bem, mas antes de
tudo, quem é esse cara? João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto
(ufa!), cujo pseudônimo mais conhecido era João do Rio, foi um jornalista da
cena carioca no início do século XX (a chamada Belle Époque brasileira).
Mulato, obeso e homossexual (o que me força a encará-lo como uma espécie de
Truman Capote tupiniquim), ele sentiu na pele o preconceito pelas suas
diferenças, sendo desprezado publicamente por várias personalidades e até mesmo
vítima de uma covarde agressão física quando foi agredido, enquanto almoçava,
por um grupo de nacionalistas. Mas, ainda assim, ele convivia com a classe alta
da época, e chegou até a ocupar uma cadeira da Academia Brasileira de Letras!
Talvez tenha sido
por causa desse paradoxo, de luxo e notoriedade versus desprezo e
marginalidade, que seus textos tenham oscilado tanto entre uma faceta e outra:
se normalmente ele preferia usar uma linguagem elegante e rebuscada, cheia de
expressões em francês, como era a moda na época, às vezes ele partia para o
grotesco, descrevendo as cenas chocantes que ocorriam nos cantos mais sujos da
cidade.
Pois é esse o clima
de Dentro da Noite, lançado em 1911, que reúne onze “contos negros”, já
publicados anteriormente em jornais, e outros sete inéditos. Podemos dizer que
as semelhanças desta com a obra de Álvares de Azevedo que citei no início do
texto não se resumem à palavra “noite” no título. Trata-se de uma coletânea de
relatos urbanos sensuais, sórdidos e fúnebres, mas ao contrário do clima
essencialmente europeu da obra de Álvares de Azevedo, João do Rio adicionou
alguns elementos bem brasileiros às suas páginas.
O Bebê de Tarlatana
Rosa, por exemplo, passa-se em uma data muito representativa para nós: o
carnaval. É quando o protagonista, disposto a frequentar vários bailes da
cidade em busca de todos os tipos de excessos, envolve-se com uma misteriosa
foliã fantasiada que nunca retira o nariz de borracha que lhe esconde o rosto.
Somente depois de ter passado algumas noites de luxúria com a moça é que ele
saberá o motivo, para sua cruel infelicidade. Posso dizer que o final dessa
história é um dos mais chocantes que já conheci
O Carro da Semana
Santa já traz uma espécie de lenda urbana, sobre uma misteriosa carruagem que
anualmente faz uma verdadeira peregrinação durante a semana santa, permanecendo
estacionada próximo a todas as igrejas da cidade, com algo muito estranho
acontecendo em seu interior.
E o melhor conto de
todos certamente é o que dá título à obra, sobre um homem que perde tudo graças
a uma estranha obsessão que lhe atormenta: a necessidade de espetar agulhas e
alfinetes nos braços de sua noiva e, mais tarde, em desconhecidos no metrô.
Acho que poderíamos fazer uma interessante analogia deste personagem com um
vampiro.
Mas infelizmente
nem tudo é perfeito. Há casos como o de Aventura no Hotel, que traz uma datada
e insatisfatória trama policial, totalmente previsível, envolvendo o
desaparecimento dos pertences de alguns hóspedes. Aliás, João do Rio caiu em
uma armadilha criada pela sua própria popularidade: com modismos demais
empregados em seu texto, a crítica simplesmente o rejeitou e seu nome ficou esquecido
durante muito tempo. Apenas recentemente é que ele foi redescoberto e voltou a
ser discutido no ambiente acadêmico.
Ainda assim, apesar
dos deslizes, há vários contos que merecem ser conhecidos pelos fãs de horror.
Além dos que citei, são obrigatórios: História de Gente Alegre, que apresenta a
trágica paixão - movida à morfina - entre duas prostitutas; A Mais Estranha
Moléstia, sobre um jovem atormentado por um olfato anormalmente aguçado, e A
Peste - outra incursão pelo grotesco, com descrição de deformidades físicas.
Dentro da Noite já
foi descrito como “a maior coleção de taras e esquisitices até então publicada
na literatura brasileira”. Seus contos tratam de diversas deformações
sensoriais, inclusive sadomasoquistas, e seu clima opressivo e apavorante é
cercado de sensualidade e elementos góticos
Para quem se
interessou pelo conteúdo, uma boa notícia: esta publicação já é de domínio
público, e pode ser facilmente encontrada na internet, disponível para download
gratuito. Mas não adianta procurar outros livros do autor neste mesmo estilo:
Dentro da Noite é diferente de todo o resto de sua obra, que inclui muitas
crônicas jornalísticas e até histórias infantis (o que comprova minha obsessão
por escritores que variam seu trabalho entre o mundo dos adultos e o das
crianças).
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