sexta-feira, maio 24, 2013

Para ser lido com reservas (Charles Dickens)



Observei sempre uma geral falta de coragem, até mesmo entre pessoas de inteligência e cultura superiores, em revelar suas próprias experiências psicológicas quando estas são de uma natureza estranha. Quase todos receiam que relatos desse tipo poderiam não encontrar experiências semelhantes ou receptividade na vida interior de um ouvinte e ser vistos
com reservas ou como dignos de chacota. Um viajante veraz que houvesse visto uma criatura extraordinária semelhante a uma serpente do mar não temeria mencioná-lo; mas o mesmo viajante, caso tivesse tido algum pressentimento, impulso, pensamento fantasioso (a assim chamada) visão, sonho ou outra impressão mediúnica extraordinária, hesitaria muito
antes de confessá-lo. A essas reticências atribuo muito da obscuridade na qual tais assuntos estão envolvidos. Não comunicamos habitualmente nossas experiências desses fatos subjetivos da mesma forma que nossas experiências da criação objetiva. A conseqüência é que o conhecimento público dessas experiências parece ser incomum, e realmente é, em virtude de ser lamentavelmente incompleto.
Com o que estou prestes a relatar não tenho nenhuma intenção de avançar, opor ou sustentar qualquer teoria que seja. Conheço a história do livreiro de Berlim, estudei o caso da esposa de um falecido astrônomo real tal como me foi relatado por Sir David Brewster e acompanhei, até os mínimos detalhes, um caso muito mais notável de ilusão espectral ocorrido em meu círculo de amizades. Talvez seja necessário declarar quanto a este último que a pessoa em questão (uma senhora) não era absolutamente em qualquer grau, mesmo distante, relacionada a mim.
Uma suposição equivocada sobre esse fato poderia sugerir uma explicação
de parte de minha história — mas somente de parte — totalmente
sem fundamento. Ela não deve ser atribuída a minha herança de qualquer
peculiaridade desenvolvida; eu também jamais tive qualquer experiência
semelhante desde então.
Há anos — não importa se há muitos ou poucos — foi cometido na
Inglaterra um certo homicídio que atraiu grande atenção. Comentam-se
mais do que se deveria notícias sobre assassinos, as quais, avolumadas
proporcionalmente à sua atrocidade, assaltam nossos ouvidos, e meu desejo
seria, se pudesse, enterrar a lembrança desse vilão em particular, tal
como seu corpo o foi, na prisão de Newgate. Abstenho-me intencionalmente
de dar qualquer pista direta da identidade do criminoso.
Quando o assassinato foi descoberto, nenhuma suspeita recaiu — ou
antes diria, pois não posso apresentar os fatos exatos, nenhuma suspeita
foi publicada — sobre o homem que posteriormente foi levado a julgamento.
Como nenhuma referência a ele se fez àquela ocasião nos jornais,
é obviamente impossível que qualquer descrição sua àquela época tenha
sido dada nos jornais. É fundamental que se tenha esse fato na lembrança.
Ao abrir meu jornal matutino durante o desjejum, o relato daquela
primeira descoberta chamou minha atenção e o li com vivo interesse. Eu
o li duas vezes, talvez três. Ela fora feita em um quarto de dormir e,
quando baixei o jornal, tive consciência de um clarão de luz — agitação,
fluxo, não sei como designado, não consigo encontrar nenhuma palavra
para descrevê-lo satisfatoriamente — no qual eu parecera ver aquele
quarto atravessando minha sala, como um quadro absurdamente pintado
sobre as águas correntes de um rio. Não obstante quase instantâneo em
sua aparição, ele era perfeitamente visível; tão visível que eu, com uma
sensação de alívio, observei distintamente a ausência do corpo morto na
cama.
Não foi em um lugar romântico que tive essa sensação curiosa, e
sim em aposentos na Picadilly, bem próximos a Saint James Street. Nunca
me ocorrera algo parecido. Estava em minha poltrona naquele momento,
e a sensação foi acompanhada de um estremecimento singular que
moveu a cadeira. (Mas devo dizer que os pés em rodízio facilitavam o
movimento.) Dirigi-me a uma das janelas (havia duas no aposento, e este
ficava no segundo andar) para revigorar meus olhos na agitação de Picadilly.
Era uma manhã clara de outono, e a rua estava cheia de vida e alegria.
O vento soprava forte. Quando olhei para fora, ele trazia do parque
grande quantidade de folhas caídas, que uma rajada apanhou e girou em
uma coluna espiralada. À medida que a espiral caía e as folhas se dispersavam,
vi dois homens no lado oposto do caminho, caminhando do oeste
para o leste. Um seguia o outro. O que estava à frente olhava constantemente
sobre os ombros, para o que vinha atrás. O segundo o seguia, a
uma distância de cerca de trinta passos, com sua mão direita levantada,
num gesto ameaçador. A estranheza e constância de seu gesto ameaçador
em um lugar tão público atraíram minha atenção, em primeiro lugar; e
em segundo, a circunstância ainda mais extraordinária de ninguém atentar
para ele. Ambos os homens abriam caminho por entre os outros transeuntes,
com uma facilidade muito pouco compatível com a ação de andar
sobre uma calçada, e ninguém, que eu pudesse ver, lhes abria caminho,
tocava-os ou olhava para eles. Ao passarem diante de minhas janelas,
ambos me fitaram. Vi distintamente seus rostos e soube que poderia
reconhecê-los em qualquer lugar. Não que eu registrasse conscientemente
qualquer traço notável em seus rostos, exceto que o homem que ia à frente
tinha uma aparência inusitadamente sombria e que a face do homem
que o seguia era da cor de cera suja.
Sou solteiro, e meu criado e sua esposa constituem toda a minha
criadagem. Trabalho em um certo Branch Bank e gostaria que minhas
obrigações como chefe de uma seção fossem tão leves quanto se julga.
Elas me prenderam na cidade naquele outono, quando necessitava de
uma mudança. Não estava doente, mas não me sentia bem. Meu leitor
deve levar em conta, tanto quanto for razoável, meu estado de exaustão,
sob a pressão de um desânimo diante de uma vida monótona e num estado
“ligeiramente dispéptico”. Meu médico, de grande reputação, assegurou-
me que meu estado de saúde real àquela época não justifica uma descrição
mais severa, e cito suas próprias palavras, na resposta por escrito
às minhas indagações.
À medida que as circunstâncias do assassinato, gradualmente esclarecendo-
se, captavam com força cada vez maior a atenção do público, eu
as afastava da minha, delas sabendo tão pouco quanto possível em meio à
agitação geral. Mas eu sabia que o réu fora confinado em Newgate e
aguardava seu julgamento por homicídio doloso. Eu também sabia que
esse julgamento fora adiado numa sessão do Tribunal Penal Central,27 sob
alegação de pré-julgamento e tempo insuficiente para a preparação da defesa.
É possível também que eu tenha obtido informações — mas acredito
que não — sobre o dia, ou data aproximada, do julgamento.
Minha sala de estar, dormitório e quarto de vestir [closet] ficam todos
no mesmo andar. Nenhuma comunicação com este último existe, senão
através do dormitório. É verdade que nele existe uma porta, que se
comunicava com a escadaria; mas uma parte dos encanamentos de meu
banheiro foi — desde há alguns anos — fixada nela. Na mesma época, e
como parte da mesma reforma, a porta foi pregada e pintada.
Estava em pé em meu quarto uma noite, bem tarde, dando algumas
instruções a meu criado antes de ele recolher-se. Encontrava-me de frente
para a única porta de comunicação com o quarto de vestir, a qual estava
fechada. Meu criado achava-se de costas para essa porta. Enquanto falava,
eu a vi abrir-se e aparecer um homem, olhando para dentro do quarto,
um homem a acenar para mim com gestos graves e misteriosos. Esse ho-
27 Tribunal Penal de Old Bailey, Londres (London Central Criminal Court), a mais importante e
famosa corte criminal da Inglaterra, em funcionamento desde 1539 (N.E.).
mem era o mesmo que seguira o outro em Picadilly e cuja face tinha uma
cor de cera suja.
Após acenar, a figura recuou e fechou a porta. Num espaço de tempo
não maior do que o necessário para atravessar o quarto de dormir, abri
a porta do quarto de vestir e olhei para dentro. Eu já tinha na mão uma
vela acesa. Intimamente não esperava ver a figura no quarto de vestir e,
de fato, não a vi.
Consciente do espanto de meu criado virei-me para ele e disse:
“Derrick, você acreditaria que vi, com meus próprios olhos, um...” Neste
instante, pus minha mão em seu peito e ele, com um súbito e violento tremor,
disse: “Sim, senhor, sim! Um morto acenando!”
Ora, não creio que esse John Derrick, meu fiel e dedicado criado durante
mais de vinte anos, tivera qualquer impressão de ver tal figura antes
de eu o tocar. A mudança nele foi tão espantosa quando eu o toquei que
acredito piamente que essa impressão, de alguma forma oculta, comunicou-
se de mim para ele naquele instante.
Roguei a John Derrick que me trouxesse um pouco de conhaque e
lhe servi um gole, antes de tomar um pouco também eu. Do que antecedera
ao fenômeno naquela noite não lhe disse uma só palavra. Refletindo
sobre isso, convenci-me de que absolutamente jamais vira aquele rosto
antes, exceto naquela ocasião em Picadilly. A comparação de sua expressão
quando acenara na porta, com sua expressão quando me fitara à janela,
levou-me à conclusão de que na primeira ocasião ele procurara imprimir-
se em minha memória e de que na segunda certificara-se de ser imediatamente
lembrado.
Fiquei um pouco inquieto naquela noite, embora sentisse uma certeza,
difícil de explicar, de que a figura não retornaria. À luz do dia, caí em
um sono pesado, do qual fui acordado pela presença de John Derrick ao
pé de minha cama, com um papel na mão.
Esse papel, ao que parece, fora objeto de uma discussão à porta, entre
seu portador e meu criado. Era uma convocação para fazer parte de
um corpo de jurados na próxima sessão do Tribunal Criminal Central em
Old Bailey. Eu jamais fora convocado antes para um júri, como John
Derrick bem sabia. Ele acreditava — e não estou certo agora se com ou
sem razão — que aquele corpo de jurados era normalmente escolhido entre
homens de classe inferior à minha, e ele de início recusara-se a receber
a convocação. O homem que a entregava permanecera impassível.
Disse que o cumprimento não lhe dizia respeito; ali estava a convocação;
e que a mim cabia resolver a questão, por minha conta e risco, não a ele.
Durante um dia ou dois fiquei indeciso quanto a obedecer ao chamado
ou ignorá-lo. Não me passou pela cabeça coisa alguma relacionada a
aspectos misteriosos, influência ou atração, fossem quais fossem. Disso
estou absolutamente certo, assim como de qualquer outra afirmação que
aqui faço. Por fim, decidi, como uma maneira de quebrar a monotonia de
minha vida, que iria.
A manhã marcada era uma manhã fria e úmida do mês de novembro.
Picadilly estava coberta de uma névoa parda, que se tornou simplesmente
negra e extremamente opressiva a leste de Temple Bar.28 Encontrei
as passagens e escadarias da corte tomadas pela luz resplandecente dos
lampiões de gás, e o próprio tribunal igualmente iluminado. Acho que, até
o momento em que fui conduzido por oficiais ao recinto e o vi ocupado
por uma multidão, não sabia que o assassino deveria ser julgado naquele
dia. Acho que, até ser levado com muita dificuldade ao recinto do tribunal,
não sabia a qual dos dois recintos da corte minha convocação me levaria.
Mas isso não deve ser tomado como uma afirmação cabal, pois não
estou totalmente convencido quanto a nenhum desses fatos.
Sentei-me no lugar destinado aos jurados e passei meus olhos pelo
recinto tanto quanto me permitiu a densidade da névoa e de hálito úmido
que nele pairavam pesadamente. Observei o negro vapor que pendia
como uma cortina escura fora de grandes janelas e chamaram-me a aten-
ção o som compacto de rodas sobre a palha ou cascas de árvore que cobriam
a rua e também o murmúrio das pessoas ali reunidas, que um zunido
agudo, ou um refrão ou saudação mais altos do que os outros sons vez
por outra atravessavam. Logo em seguida, os juízes — eram dois — entraram
e tomaram seus lugares. O burburinho no tribunal foi veementemente
silenciado. Ordenou-se que o criminoso fosse trazido ao cancelo.
Ele ali se apresentou. E no mesmo instante reconheci nele o primeiro dos
dois homens que haviam caminhado por Picadilly.
Se meu nome fosse então chamado, duvido que tivesse conseguido
responder com voz audível. Mas ele foi pronunciado cerca de seis ou oito
vezes na lista de jurados e então fui capaz de dizer “Presente”. Pois bem,
observem. Quando subi ao tablado, o prisioneiro, que até então tudo olhava
atentamente, mas sem qualquer sinal de preocupação, tomou-se de
violenta agitação e acenou para seu advogado. O desejo do prisioneiro a
me opor era de tal forma manifesto que provocou uma pausa, durante a
qual o advogado, com a mão no banco dos réus, sussurrou com seu cliente
e balançou a cabeça. Eu soube posteriormente, por aquele senhor, que
as primeiras palavras amedrontadas do prisioneiro a ele foram “Recuse, a
todo custo, aquele homem! ” Mas, como ele não quis dar o motivo para
tal e admitiu que sequer sabia meu nome antes de ele ser pronunciado e
eu me apresentar, isso não foi feito.
Tanto pelos motivos já expostos — pois não é meu desejo trazer novamente
à baila a memória nefasta daquele assassino — e também porque
um relato detalhado desse longo julgamento não é absolutamente indispensável
à minha história, limitar-me-ei exclusivamente aos incidentes,
nos dez dias e noites durante os quais nós, os jurados, fomos mantidos
juntos, pois dizem respeito somente a minha estranha experiência
pessoal. É para isso, e não para o assassino, que desejo chamar a atenção
de meu leitor. É para isso, e não para uma página dos registros de Newgate,
que lhe rogo o obséquio de sua atenção.
Fui escolhido para ser o primeiro jurado. Na segunda manhã do julgamento,
depois que as provas haviam sido apresentadas durante duas
horas (ouvi o relógio da igreja soar duas vezes), ocorreu-me percorrer os
olhos pelos meus companheiros jurados e encontrei uma dificuldade
inexplicável em contá-los. Contei-os diversas vezes, e no entanto sempre
com a mesma dificuldade. Em suma, percebi que seu número excedia o
normal.
Toquei o jurado próximo a mim e lhe sussurrei: “Por favor, conte
quantos somos”. Ele olhou surpreso diante do pedido, mas voltou sua cabeça
e contou. “Ora”, disse ele subitamente, “somos trez...; mas não, não
é possível. Não, somos doze”.
Segundo minha contagem naquele dia, nosso número estava sempre
certo no pormenor, mas no todo sempre superior. Não havia nada aparentemente
— nenhum número — que o explicasse; mas eu tinha agora um
pressentimento do número que certamente surgiria.
O júri foi hospedado na London Tavern. Dormíamos todos em um
quarto grande, em camas separadas e ficávamos continuamente sob as ordens
e a vigilância de um oficial encarregado, sob juramento, de nossa
segurança. Não vejo motivos para omitir o nome real daquele oficial. Ele
era inteligente, extremamente polido e prestativo e (fiquei feliz em saber)
muito respeitado. Tinha uma aparência agradável, olhos benevolentes, invejáveis
costeletas negras e uma voz bela e sonora. Seu nome era sr.
Harker.
Quando voltamos para nossas doze camas à noite, a cama do Sr.
Harker foi colocada em frente à porta. Na noite do segundo dia, como eu
não estivesse inclinado a me deitar e visse o sr. Harker sentado em sua
cama, fui sentar-me a seu lado e lhe ofereci uma pitada de rapé. Quando a
mão do sr. Harker tocou a minha ao pegá-lo de minha caixa, ele foi tomado
de um estremecimento singular e disse: “Quem é esse!”
Seguindo o olhar do sr. Harker e olhando para o quarto, vi novamente
a figura que eu esperava: o segundo dos dois homens que haviam
atravessado Picadilly. Levantei-me e dei alguns passos; então parei e
olhei novamente para o sr. Harker. Ele estava bem despreocupado, riu e
disse de um modo amável, “por um instante pensei ter visto um décimoterceiro
jurado, sem uma cama. Mas vejo que é o luar”.
Nada revelando ao sr. Harker, mas convidando-o a dar uma volta
comigo até o fim do aposento, observei o que fazia a figura. Permaneci
por uns momentos ao lado de cada um de meus onze companheiros jurados,
junto ao travesseiro. Ela se movia sempre do lado direito da cama e
sempre passava para o pé da cama seguinte. Pareceu-me, pelo movimento
da cabeça, apenas olhar para baixo pensativamente, para cada uma das figuras
deitadas. Não tomou conhecimento de mim, nem de minha cama,
que era próxima à do sr. Harker. Pareceu sair por onde entrava a luz do
luar, através de uma janela alta, como por uma escada etérea.
Na manhã seguinte, ao desjejum, pareceu que todos os presentes haviam
sonhado naquela noite com o homem assassinado, exceto eu próprio
e o sr. Harker.
Eu estava agora convencido de que o segundo homem que atravessara
Picadilly era o assassinado (por assim dizer), como se esse fato fosse
gerado em minha consciência por seu testemunho direto. Mas até mesmo
isso ocorreu de uma forma para a qual eu não estava absolutamente preparado.
No quinto dia do julgamento, quando as provas da promotoria chegavam
a seu termo, foi apresentado um retrato em miniatura do homem
assassinado, que desaparecera de seu quarto de dormir à época da descoberta
do fato e depois encontrada no esconderijo que o assassino fora visto
a cavar. Identificado pela testemunha interrogada, foi levado ao banco
e entregue à inspeção dos jurados. Quando um oficial, em um manto negro,
dirigia-se com ele até mim, a figura do segundo homem que atravessara
Picadilly impetuosamente saiu da multidão, tomou a miniatura do
oficial e deu-a para mim com suas próprias mãos, dizendo ao mesmo
tempo em uma voz baixa e cava, antes que eu visse a miniatura, que esta-
va em um medalhão: “Eu era jovem e meu rosto ainda não estava exangue.”
Ele também se postou entre mim e o jurado próximo, a quem eu deveria
passar a miniatura e entre ele e o jurado ao qual aquele deveria entregá-
lo, assim procedendo até que a passasse a todos os jurados e em seguida
devolvendo-a a mim. Nenhum deles, contudo, apercebeu-se disso.
À mesa, e geralmente quando estávamos enclausurados sob a custódia
do sr. Harker, desde o início nossas conversas sempre se dirigiam aos
detalhes das ocorrências do dia. Naquele quinto dia, concluídas as provas
da promotoria e estabelecido por nós o quadro dessa questão, nossa discussão
tornou-se mais animada e séria. Entre nós encontrava-se um membro
do conselho paroquial — o maior idiota que eu jamais encontrara —,
que objetou da maneira mais ridícula as provas mais evidentes e que foi
secundado por dois parasitas paroquiais balofos — todos os três recrutados
de um distrito tão entregue à exaltação que deveriam ser eles próprios
julgados por centenas de assassinatos. Quando esses estúpidos nefastos
estavam no auge de sua exaltação, o que ocorreu por volta da meia-noite,
quando alguns de nós já se preparavam para ir para a cama, vi novamente
o homem assassinado. Ele postou-se solenemente atrás deles, acenando
para mim. Quando me dirigi a eles e intervim na conversa, ele imediatamente
retirou-se. Essa foi a primeira de uma série de aparições isoladas,
circunscritas àquele grande aposento a que nós nos encontrávamos circunscritos.
Toda vez que um grupo de meus colegas jurados aproximava
suas cabeças, eu via a cabeça do homem assassinado entre elas. Toda vez
que sua comparação de notas lhe era desfavorável, ele solene e resolutamente
acenava para mim.
Deve-se ter em mente que, até a apresentação do resumo no quinto
dia do julgamento, eu nunca vira a aparição no tribunal. Três mudanças
ocorreram quando se iniciou a apresentação da defesa. Duas delas mencionarei
juntas, em primeiro lugar. O fantasma estava sempre no tribunal,
e ele nunca lá se dirigia a mim, mas sempre à pessoa que estava falando
no momento. Por exemplo, a garganta do homem assassinado havia sido
cortada em linha reta. No discurso de abertura da defesa, sugeriu-se que o
morto poderia ter cortado sua própria garganta. Naquele mesmo instante,
a figura, com sua garganta nessa condição terrível a que se referiu (ela
havia escondido isso anteriormente), se postou ao lado do falante, movendo
ora sua mão esquerda, ora sua mão direita pela sua traquéia, dando
a entender com veemência ao próprio falante a impossibilidade de que tal
ferida tivesse sido infligida por qualquer uma das mãos. Outro exemplo:
uma mulher testemunhou em favor do caráter do prisioneiro, dizendo ser
ele o mais amável dos seres. O fantasma, naquele instante, postou-se à
sua frente, encarando-a e apontando para a expressão malévola do prisioneiro
com um braço estendido e o dedo em riste.
A terceira mudança a ser agora acrescentada causou-me forte impressão,
por ser a mais eloqüente e extraordinária de todas. Não avanço
nenhuma hipótese sobre ela; descrevo-a com exatidão, simplesmente.
Embora a aparição não fosse em si percebida por aqueles a quem ela se
dirigia, sua aproximação era invariavelmente acompanhada de um tremor
ou perturbação por parte dessas pessoas. Parecia-me que alguma lei a
mim inacessível o impedia de se revelar aos outros e, todavia, como se
ele pudesse, invisível, silenciosa e sombriamente toldar seus espíritos.
Quando o principal advogado de defesa aventou a hipótese de suicídio e
o fantasma postou-se junto àquele cavalheiro erudito, serrando aterradoramente
sua garganta, o advogado inequivocamente vacilou em seu discurso,
perdeu por alguns instantes o fio de seu discurso engenhoso, enxugou
sua testa com um lenço e ficou extremamente pálido. Quando a testemunha
em favor do caráter foi desafiada pela aparição, seus olhos visivelmente
seguiram a direção do dedo em riste e pousaram com grande
hesitação e perturbação no rosto do prisioneiro. Dois exemplos adicionais
bastarão. No oitavo dia do julgamento, depois da pausa que se fazia diariamente
no início da tarde para um descanso de alguns minutos e uma
refeição ligeira, voltei para o tribunal com os demais jurados, um pouco
antes do retorno dos juízes. De pé no tablado e olhando a minha volta,
julguei que o fantasma não estava lá, até que, levantando por acaso meus
olhos para a galeria, vi-o inclinando-se para a frente e encostando-se em
urna mulher muito distinta, como se para verificar se os juízes haviam retomado
ou não seus lugares. Imediatamente depois, aquela mulher gritou,
desmaiou e foi carregada para fora. O mesmo ocorreu com o venerável,
sagaz e paciente juiz que presidia ao julgamento. Quando a defesa terminou
e ele reuniu os documentos para a súmula, o homem assassinado entrou
pela porta dos juízes, avançou para a mesa de Sua Excelência e
olhou ansiosamente por sobre seu ombro para as páginas de suas anotações,
que ele estava virando. Sua fisionomia se transformou; sua mão deteve-
se; o singular tremor que eu tão bem conhecia atravessou-o; ele vacilou,
“Perdoem-me, cavalheiros, por alguns instantes. Creio que o ar viciado
me afetou”, e não se recobrou antes de tomar um copo d’água.
Durante toda a monotonia daqueles dez dias intermináveis — os
mesmos juízes e os demais em seus lugares, o mesmo assassino no banco
dos réus, as mesmas entoações de perguntas e respostas a ressoar pela
sala do tribunal, o mesmo ranger da pena do juiz, os mesmos oficiais entrando
e saindo, as mesmas luzes acesas à mesma hora, não obstante a luz
natural do dia, a mesma cortina de fumaça fora das grandes janelas quando
havia névoa, a mesma chuva tamborilando e gotejando quando chovia,
as mesmas pisadas do carcereiro e do prisioneiro dia após dia na mesma
serragem, as mesmas chaves a fechar e abrir as mesmas portas pesadas
— durante toda a cansativa monotonia que me fez sentir como se fora o
primeiro jurado durante um enorme período do tempo e Picadilly tivesse
vicejado contemporaneamente à Babilônia, o homem assassinado nunca
perdeu um traço de sua visibilidade em meus olhos, e tampouco em momento
algum se fez menos nítido do que qualquer outra pessoa. Na verdade,
não devo omitir que sequer uma vez vi a aparição que designo por
homem assassinado olhar para o assassino. Repetidas vezes perguntei-me
por que não o fazia. Mas ele não o fazia.
Ele tampouco olhou para mim, após a apresentação da miniatura, até
os últimos minutos de conclusão do julgamento. Nós nos retiramos para
deliberar às sete para as dez da noite. O apalermado membro de conselho
paroquial e seus dois parasitas paroquiais nos deram tanto trabalho que
por duas vezes retornamos ao tribunal para requerer a leitura de certos
extratos das anotações dos juízes. Para nove de nós não havia qualquer
dúvida quanto a essas passagens, tampouco, creio eu, para qualquer outra
pessoa no tribunal; o triunvirato de patetas, contudo, não desejando senão
a obstrução, justamente por isso objetava a elas. Por fim vencemos e finalmente
o júri retornou ao tribunal à meia-noite e dez.
O homem assassinado colocou-se no lugar oposto ao banco dos jurados,
no outro lado do Tribunal. Quando tomei meu lugar, seus olhos
pousaram em mim, com grande atenção; ele parecia satisfeito e vagarosamente
agitou um grande véu cinza, que carregava em seu braço, pela primeira
vez sobre a cabeça. No momento em que declarei nosso veredicto
de “Culpado”, o véu caiu e tudo desapareceu, deixando vazio seu lugar.
Quando o juiz, segundo o costume, perguntou-lhe se desejava declarar
algo antes que lhe fosse dada a sentença de morte, o assassino murmurou
indistintamente algo que foi descrito pelos principais jornais do
dia seguinte como “umas poucas divagações incoerentes e palavras semiinaudíveis,
pelas quais deu a entender que não tivera um julgamento justo
porque o primeiro jurado se colocara contra ele”. A extraordinária declaração
que ele realmente fizera é a seguinte: “Meu senhor, eu soube que
estava condenado quando o primeiro jurado de meu julgamento subiu ao
banco. Meu senhor, eu soube que ele nunca me libertaria, porque, antes
que eu fosse preso, ele pôs-se ao lado de minha cama à noite, não sei
como, acordou-me e pôs uma corda em volta de meu pescoço.”

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