quarta-feira, outubro 21, 2009

Vovó (Stephen King)




A mãe de George foi até a porta, vacilou, voltou de novo e acariciou os cabelos do filho.
— Não quero que fique preocupado — disse. — Você estará bem. Vovó também.
— Eu sei, vou ficar bem. Diga a Buddy para não esquentar.
— Como?
George sorriu.
— Para ir com calma.
— Oh! Muito interessante. — A mãe sorriu para ele, um sorriso distraído, voltado para seis direções ao mesmo tempo. — George, você tem certeza de que...
— Eu vou ficar ótimo.
Está bem certo disso? Tem certeza de que não sentirá medo, ao ficar sozinho com vovó?
Não era isso que ela ia perguntar?
Se era isso, a resposta é não. Afinal, já passara a época em que tinha seis anos, quando tinham ido para o Maine, a fim de cuidarem de vovó. Então, chorava aterrorizado a cada vez que ela lhe estendia os braços pesados, sentada em sua poltrona de vinil branco, que sempre tinha o cheiro dos ovos escaldados que vovó comia e do talco suave que a mãe de George lhe passava na pele frouxa e enrugada; ela estendia aqueles braços brancos e elefantinos, queria que ele se aproximasse, para ser apertado contra aquele enorme, pesado, velho e elefantino corpo branco. Buddy atendera, tinha sido envolvido no cego abraço de vovó e escapara vivo... mas Buddy era dois anos mais velho.
Agora, Buddy quebrara a perna e estava no Hospital C MG, em Lewiston.
— Você tem o número do médico, caso alguma coisa dê errado. Só que nada vai acontecer. Certo?
— Certo — disse ele, e engoliu algo seco na garganta.
George sorriu. Seu sorriso era tranqüilizador? Claro. Claro que era. Não sentia mais medo de vovó. Afinal, não tinha mais seis anos. Mamãe ia ao hospital ver Buddy e ele ia ficar em casa, sem esquentar a cabeça. Acompanhar vovó por algum tempo. Qual o problema?
Mamãe tornou a ir até a porta, vacilou de novo e voltou, exibindo o sorriso perturbado, voltado para seis direções ao mesmo tempo.
— Se ela acordar e quiser tomar chá...
— Eu já sei — respondeu George, percebendo o quanto ela estava assustada e preocupada, por trás do sorriso perturbado.
Ela estava preocupada com Buddy, Buddy e sua idiota Divisão Juvenil, o treinador tinha ligado para dizer que Buddy se ferira em um jogo pela conquista da taça, e George só ficara sabendo (acabara de chegar da escola e estava sentado à mesa, comendo biscoitos com um copo de Quik, da Nestlé) quando viu sua mãe ofegar, perguntando, Machucado? Buddy? É grave?
— Sei esse negócio todo, mamãe. Estou no controle. Transpiração negativa. Pode ir agora.
— Você é um bom garoto, George. Não tenha medo. Não sente mais medo da vovó, não é mesmo?
— Claro que não — disse George.
Ele sorriu. Era um sorriso despreocupado. O sorriso de um cara que estava ficando frio, com transpiração negativa na testa, o sorriso de um cara que estava no controle, o sorriso de um cara que, decididamente, não tinha mais seis anos. George engoliu em seco. Era um grande sorriso, mas por baixo dele, na escuridão por baixo do sorriso, havia uma garganta muito seca. Como se sua garganta estivesse forrada com lã.
— Diga a Buddy que sinto muito ele ter quebrado a perna.
— Eu direi — respondeu ela, e tornou a caminhar para a porta. O sol das quatro da tarde penetrou pela janela. — Graças a Deus, contamos com o seguro esportivo, Georgie. Não sei o que faríamos, se não houvesse o seguro.
— Diga a ele que espero que tenha dado o troco no otário.
Ela sorriu seu sorriso perturbado, uma mulher que mal fizera os cinqüenta, com dois filhos tardios, um de treze e outro de onze anos, sem nenhum homem. Desta vez, ele abriu a porta e uma fria brisa de outubro entrou pelo pórtico.
— E, lembre-se, o Dr. Arlinder...
— Está bem — disse ele. — É melhor ir logo ou a perna dele já estará boa, quando chegar lá.
— O mais provável é que ela durma o tempo todo — disse mamãe. — Eu o amo, Georgie. Você é um bom filho.
Ela fechou a porta, ao terminar de falar. George foi até a janela e a viu caminhar apressada para o velho Dodge 69 que queimava muito óleo e gasolina, tirando as chaves de dentro da bolsa. Agora que saíra da casa e ignorava que George a espiava, o sorriso perturbado desapareceu e ela apenas pareceu perturbada — perturbada e abatida pela preocupação com Buddy. George sentiu pena dela. Não desperdiçava quaisquer sentimentos similares com Buddy, que gostava de derrubá-lo e sentar em cima dele, com um joelho em cada um de seus ombros, batendo no meio de sua testa com uma colher, até quase enlouquecê-lo ( Buddy chamava a isso a Tortura da Colher dos Chinas Pagões, e ria como um louco, às vezes continuando com aquilo até que George chorasse), Buddy que, às vezes, dava-lhe o tratamento da Queimadura de Corda índia, amarrando-lhe uma corda no braço e o puxando com tanta força, que pequeninas gotas de sangue surgiam na pele ofendida de George, pontilhando seus poros como orvalho em talos de grama ao amanhecer. Buddy, que ouvira compreensivamente, quando certa noite George lhe sussurrara, no escuro do quarto de ambos, que gostava de Heather MacArdle, mas que, na manhã seguinte, cruzara o pátio da escola gritando GEORGE E HEATHER NAMORANDO, CO-CO-RI-CO-CO-RI-CÓ; E TAMBÉM BE-E-I-JOTA-A-ENE-DE-Ó! PRIMEIRO O AMOR E DEPOIS CASAMENTINHO! LÁ VEM A HEATHER COM UM BEBÊ NO SEU CARRINHO! como um carro do Corpo de Bombeiros. Pernas quebradas não mantém irmãos mais velhos, como Buddy, reprimidos por muito tempo, mas George preferia ficar quieto no seu canto, desde que Buddy ficasse também. Quero ver você me forçar à Tortura da Colher dos Chinas Pagãos com sua perna no gesso, Buddy. Isso mesmo, cara — TODOS os dias.
O Dodge saiu em marcha à ré da entrada de carros e parou, enquanto sua mãe espiava para os dois lados, embora nenhum carro estivesse à vista; eles nunca estavam. Sua mãe teria um trajeto de três quilômetros em estradas acidentadas e onduladas antes de chegar ao asfalto, quando então seriam mais trinta quilômetros até Lewiston.
Ela recuou por toda a entrada de carros e depois rodou em frente. Por um momento, a poeira ficou suspensa no brilhante ar da tarde de outubro, para depois começar a assentar-se.
Ele estava sozinho em casa.
Com vovó.
George engoliu em seco.
Ei! Transpiração negativa! Basta não esquentar, certo?
— Certo — disse George, em voz baixa.
Cruzou a pequena cozinha banhada de sol. Era um garoto simpático, de cabelos claros, com sardas salpicando o nariz e bochechas, uma expressão bem-humorada nos olhos cinza-escuros.
O acidente com Buddy ocorrera quando ele jogava pelo campeonato da Divisão Juvenil, naquele 5 de outubro. O time da Divisão Pee Wee (Dente de leite) em que George jogava — os Tigres — ficara fora do torneio logo no primeiro dia, dois sábados atrás "Que bando de bebês!" exultara Buddy, ao ver George sair do campo em lágrimas. "Que bando de MARICAS!"... e agora, Buddy tinha quebrado a perna. Se mamãe não estivesse tão preocupada e assustada, George ficaria quase feliz.
Havia um telefone de parede e perto dele, um quadro para anotações, com um lápis ensebado pendurado ao lado. Na parte superior do quadro, via-se uma alegre vovó camponesa, de bochechas rosadas, os cabelos brancos penteados em coque; o desenho mostrava a avó fazendo anotações no quadro. Um balão de histórias em quadrinhos saía da boca da alegre vovó camponesa, e ela dizia, "LEMBRE-SE DISTO, FILHO!"
Escrito no quadro, na letra espichada de sua mãe, estava o lembrete Dr. Arlinder, 681-4330. Mamãe não anotara o número nesse dia, só porque tinha de ir ver Buddy. Agora já fazia quase três semanas que o número estava ali, pois vovó vinha tendo seus "acessos" outra vez.
George tirou o telefone do gancho e ouviu.
— ... então, eu disse a ela, "Mabel, se ele a trata desse jeito..."
George recolocou o fone. Henrietta Dodd. Henrietta estava sempre ao telefone e, se fosse de tarde, podia-se ouvir uma novela de rádio soando ao fundo.
Certa noite, após ter bebido um copo de vinho com vovó (desde que ela começara a ter os "acessos" novamente, o Dr. Arlinder havia dito que vovó não devia tomar vinho ao jantar, de modo que mamãe também deixara de tomá-lo — George lamentava, porque o vinho deixava mamãe risonha e ela lhe contava histórias de quando era menina), mamãe tinha dito que a cada vez que Henrietta Dodd abria a boca, suas tripas saíam do alinhamento. Buddy e George tiveram ataques de riso, enquanto mamãe tapava a boca com a mão, dizendo NUNCA contem a ninguém que eu disse isso, e então ela começou a rir também, todos os três, sentados à mesa do jantar, riam sem parar e, por fim, a risadaria acordou vovó, que cada vez dormia mais, e ela começou a gritar Ruth! Ruth! RUU-UUUTH! naquela sua voz aguda e casquinada, e mamãe, parando de rir, fora ao quarto dela.
Hoje, no que dizia respeito a George, Henrietta Dodd podia falar o quanto quisesse. Ele só desejara certificar-se de que o telefone estava funcionando. Duas semanas antes houvera uma forte tempestade e, desde então, de vez em quando o aparelho emudecia.
George viu-se olhando novamente para o alegre desenho da avó e perguntou-se como seria ter uma avó como aquela. A sua era grande, gorda e cega; além disso, a hipertensão a tornara senil. As vezes, quando tinha seus "acessos" ela (segundo mamãe) "agia como caduca", chamando por pessoas que não existiam, mantendo conversas sem sentido, murmurando estranhas palavras que não tinham o menor significado. Certa ocasião, quando ela fazia este último, mamãe ficara pálida e lhe dissera para se calar, calar, calar! George se lembrava bem, não apenas por ser a única vez em que mamãe realmente gritara com vovó, mas também porque, no dia seguinte, alguém descobrira que o cemitério Birches, junto à estrada Maple Sugar, havia sido vandalizado — lousas derrubadas, arrombados os antigos portões do século dezenove e realmente escavadas uma ou duas das sepulturas — escavadas ou algo semelhante. Profanadas, tinha sido o termo empregado pelo Sr. Burdon, diretor da escola quando, no dia seguinte, reuniu todos os oito graus em assembléia e palestrou para toda a escola, discutindo o tema Travessuras Malévolas e falando sobre como certas coisas Nada Tinham de Engraçadas.
Ao voltar para casa nessa noite, George perguntara a Buddy o significado de profanar.
Buddy respondera que isso queria dizer escavar sepulturas e urinar nos caixões, mas George não acreditou nisso... ou acreditou, porque já era tarde. E estava escuro.
Vovó ficava barulhenta quando tinha seus "acessos", mas em geral apenas permanecia na cama que vinha ocupando durante os três últimos anos, uma velha gorda, usando calças de plástico e fraldas por baixo da camisola de flanela, o rosto percorrido por sulcos e rugas, os olhos vazios e cegos — as pupilas de um azul desbotado flutuando em córneas amareladas.
A princípio, vovó não era inteiramente cega. Contudo, estava ficando cega e precisava de uma pessoa a cada lado, para ajudá-la a andar de sua poltrona de vinil branco, cheirando a ovo e talco para bebê, até a cama ou ao banheiro. Naquela época, cinco anos antes, vovó pesava bem mais de cem quilos.
Ela estendera os braços para Buddy, então com oito anos, e ele se aproximara. George havia recuado. E chorado.
Agora não tenho mais medo, disse para si mesmo, movendo-se pela cozinha, calçado com seus tênis. Nem um pouquinho. Ela é apenas uma velha, que de vez em quando tem "acessos".
Encheu a chaleira com água e a pôs sobre um queimador apagado. Depois pegou uma xícara de chá e colocou dentro dela um dos saquitéis de ervas especiais para chá, pertencentes a vovó. Era para o caso dela querer uma xícara. Tinha a louca esperança de que ela não quisesse, porque então teria que erguer o estrado da cama hospitalar, sentar-se perto dela e dar-lhe o chá, um gole de cada vez, vendo a boca desdentada dobrar-se acima da borda da xícara, ouvindo os sons de sucção, enquanto ela empurrava o chá para suas tripas agonizantes e úmidas. Havia vezes em que ela escorregava, caía de banda na cama, sendo preciso colocá-la novamente na posição correta — e sua carne era mole,. era bamba, como se estivesse cheia de água quente. E os olhos cegos olhavam para a gente...
George umedeceu os lábios com a língua e caminhou novamente até a mesa da cozinha.
Seu último biscoito e meio copo de Quik ainda estavam ali, porém não os queria mais.
Olhou sem entusiasmo para seus livros escolares, encapados com os Onças de Castle Rock.
Devia ir lá dentro e ver como ela estava.
Ele não queria ir.
Engoliu em seco e sua garganta dava a impressão de ainda estar forrada com lã.
Não tenho medo de vovó, pensou. Se ela me estender os braços, eu me aproximarei e deixarei que me abrace, porque não passa de uma velha. Ela está senil, por isso é que tem "acessos". Nada mais. Vou deixar que me abrace e não vou chorar. Vou ser como Buddy.
Cruzou o pequeno corredor até o quarto de vovó, o rosto tenso, como se fosse tomar um remédio amargo, os lábios tão apertados, que estavam brancos. Olhou para o interior e lá estava ela, com os cabelos branco-amarelados estendidos em torno da cabeça como uma coroa, adormecida, a boca desdentada aberta, o peito se elevando sob a coberta, mas tão lentamente que quase não se percebia, tão lentamente que era preciso ficar olhando para ela durante algum tempo, para haver certeza de que não estava morta.
Oh. Deus, e se ela morrer aqui comigo, com mamãe no hospital?
Ela não vai morrer. Não vai.
Bem, mas e se morrer?
Ela não vai morrer, pare de ser maricas.
Uma das mãos amarelas de vovó, parecendo desbotada, moveu-se vagarosamente sobre a coberta: suas unhas crescidas riscaram o tecido e emitiram um som de arranhado.
George recuou rapidamente, com o coração disparado.
Fique frio, seu cabeça tonta, morou? Fique frio.
Ele voltou à cozinha, a fim de ver se sua mãe tinha saído apenas uma hora antes, ou talvez hora e meia — nesta última hipótese, já poderia começar a esperar, mais ou menos, que ela estivesse voltando. Olhou para o relógio e espantou-se ao constatar que não se tinham passado nem vinte minutos. Mamãe nem ao menos já estaria na cidade, quanto mais saindo dela! Ficou quieto, ouvindo o silêncio. Vagamente, percebeu o zumbido da geladeira e do relógio elétrico. O rogaçar da brisa da tarde pelas quinas da pequena casa. E depois — na própria borda da audibilidade — os vagos sussurros farfalhantes de pele sobre tecido... da mão enrugada e sebosa de vovó, movendo-se sobre a coberta.
George rezou, em um só jato de fôlego mental:
OhmeuDeusnãodeixeelaacordaratémamãevoltarparacasapeloamordeJesusAmém.
Sentou-se e terminou seu biscoito, bebeu seu Quik. Pensou em ligar a televisão e ver alguma coisa, mas temia que o som acordasse a avó e que a voz aguda, exigente, não admitindo negativas, começasse a chamar RUUUUTH! RUTH! TRAGA O MEU CHÁ! CHÁ! RUU-UUUUTH!
Passou a língua ressequida pelos lábios ainda mais secos e disse a si mesmo para não ser tão maricas. Ela só era uma velha presa à cama, não havia o risco de sair de lá e machucá-lo. Além disso, estava com oitenta e — três anos, não ia morrer logo naquela tarde.
Levantando-se, foi até o telefone e o tirou do gancho novamente.
— ...nesse mesmo dia! E nem sabia que ele era casado! Francamente, eu odeio esses conquistadores baratos de esquina, que se julgam tão espertos! Pois no Grange, eu dizia...
George dedudizu que Henrietta falava com Cora Simard. Henrietta pendurava-se ao telefone pela maior parte da tarde, de uma hora às seis, primeiro com A Esperança de Ryun, a seguir com Uma Vida para Viver, depois Todos os Meus Filhos, e então Enquanto o Mundo Gira, seguindo-se Em Busca do Amanhã e só Deus sabia mais que outras peças eram representadas ao fundo. Quanto a Cora Simard, era uma de suas mais fiéis correspondentes telefônicas, e muito do que diziam era sobre
1) quem estava para dar um chá de panela e quais seriam os refrescos tomados,
2) conquistadores baratos de esquina e
3) o que elas haviam conversado com várias pessoas em
3-a) no Grange,
3-b) na feira mensal da igreja ou
3-c) no Cavaleiros de Pítias Hall Beano.
— ...que se eu tornar a vê-la daquele jeito novamente, acho que bancaria a boa cidadã e chamaria...
Ele recolocou o fone no gancho. Ele e Buddy se divertiam à custa de Cora, quando passavam diante de sua casa, justamente como todos os outros garotos. Ela era gorda, piegas e fofoqueira. Eles cantarolavam Cora-Cora, de Bora-Bora, comeu bosta de cachorro e nem pediu socorro! e mamãe mataria eles dois se soubesse disso, mas agora George estava contente, por Cora e Henrietta Dodd estarem ao telefone. Que as duas conversassem a tarde inteira, ele pouco ligaria. Aliás, nada tinha contra Cora. Uma vez, perseguido por Buddy, caíra diante da casa dela e esfolara o joelho. Cora lhe pusera um Band-Aid na esfoladura e dera um biscoito a cada um, falando o tempo todo. George ficara envergonhado por todas as vezes em que havia cantarolado a rima sobre a bosta de cachorro e o restante.
George foi até o aparador e pegou seu livro de leitura. Segurou-o por um momento, depois o largou. Já havia lido todas as histórias ali contidas, embora só houvesse tido um mês de aulas. Lia melhor do que Buddy, ao passo que seu irmão era melhor nos esportes. Não será melhor durante algum tempo, pensou, com momentânea satisfação, não com uma perna quebrada.
Pegou seu livro de História, sentou-se à mesa da cozinha e começou a ler sobre como Cornwallis fora obrigado a capitular em Yorktown. Entretanto, seus pensamentos não se fixavam no que lia. Levantou-se, tornou a chegar ao corredor. A mão amarela continuava imóvel. Vovó dormia, seu rosto era um círculo bambo e acinzentado contra o travesseiro, um sol agonizante, circundado pela despenteada coroa branco-amarelada de seus cabelos. Para George, ela não tinha a menor semelhança com pessoas velhas e supostamente à beira da morte. Não tinha a tranqüilidade de um pôr-de-sol. Ela parecia louca e... (e perigosa)
... sim, isso mesmo, e perigosa — como uma ursa velhíssima, que pudesse ainda ter um bocado de força sobrando nas garras.
George se lembrava muito bem de como tinham chegado a Castle Rock para cuidar de vovó, quando vovô morrera. Até então, mamãe estivera trabalhando na Lavanderia Stratford, em Stratford, Connecticut. Vovô tinha três ou quatro anos menos que vovó, era carpinteiro de profissão e trabalhara até o próprio dia de sua morte. Ele sofrera um ataque cardíaco.
Já naquele tempo, vovó estava ficando senil, tinha seus "acessos". Sempre constituíra uma provação para a família, era o que vovó havia sido. Ela fora uma mulher vulcânica, que lecionara durante quinze anos, entre ter bebês e disputas com a Igreja Congregacional, que freqüentava com vovô e os nove filhos. Mamãe costumava contar que vovô e vovó haviam abandonado a Igreja Congregacional de Scarborough, na mesma época em que vovó desistira de lecionar. Contudo, um ano atrás, quando a tia Flo viera de sua casa em Salt Lake City para visitá-los, George e Buddy tinham ficado ouvindo, pelo cano condutor de calefação, enquanto mamãe e sua irmã conversavam, até noite avançada. O que ouviram foi uma história bem diferente. Vovô e vovó tinham sido expulsos da igreja e vovó despedida do emprego, porque fizera algo errado. Era qualquer coisa sobre livros. Por que ou como alguém podia ser mandado embora do emprego ou expulso da igreja, apenas por causa de livros, era uma coisa que George não entendia. Perguntou a Buddy, quando os dois se esgueiraram para seus beliches, debaixo do beiral.
— Há todo tipo de livros, Señor El-Burro —, sussurrou Buddy.
— Certo, mas de que tipo?
— Como é que vou saber? Por que não dorme logo?
Silêncio. George meditou no assunto.
— Buddy?
— O que é? — Um sibilo irritado.
— Por que mamãe nos disse que vovó deixou a igreja e o emprego?
— Porque é um esqueleto no armário, entendeu agora?
Contudo, ele não dormiu, ficou acordado muito tempo. Seus olhos ficavam observando a porta do armário, vagamente delineada ao luar. Perguntou-se o que faria, caso a porta se escancarasse, revelando um esqueleto lá dentro, com dentes risonhos à maneira de lousas de sepulturas, olhos que eram como poços nas órbitas e costelas como gaiolas; o luar branquicento pareceria fantástico e quase azul, sobre ossos mais brancos. Ele gritaria? O que Buddy teria querido dizer com um esqueleto no armário? O que esqueletos tinham a ver com livros? Por fim, acabou dormindo sem ao menos perceber.
Sonhou que tinha seis anos novamente e que vovó lhe estendia os braços, com os olhos cegos procurando-o; a voz esganiçada de vovó dizia, Onde está o pequenino, Ruth? Por que ele está chorando? Eu só queria botá-lo no armário... junto com o esqueleto.
George ficou intrigado com tudo aquilo por muito e muito tempo. Finalmente, cerca de um mês depois da partida da tia Flo, contou à mãe que a tinha ouvido conversando com a irmã. Então, já sabia o que significava um esqueleto no armário, porque perguntara à Sra. Redenbacher, na escola. Ela lhe explicara que isso queria dizer a existência de um escândalo na família — e um escândalo era algo sobre o que as pessoas falavam bastante.
— Falam bastante, assim como Cora Simard? — perguntara George. O rosto da Sra. Redenbacher assumira um ar estranho, seus lábios haviam tremido e ela respondera:
— Isso não é muito delicado, George, mas... bem, é algo semelhante.
Quando ele interrogou mamãe, o rosto dela havia ficado muito imóvel e suas mãos interromperam o solitário que fazia com cartas de baralho.
— Acha bonito o que esteve fazendo, George? Você e seu irmão agora costumam ficar ouvindo coisas no cano de calefação?
George, na época com apenas nove anos, baixara a cabeça.
— Nós gostamos de tia Flo, mamãe. Queríamos ficar escutando o que ela dizia.
E era verdade.
— Foi idéia de Buddy?
Tinha sido idéia de Buddy, mas George não contaria isso a ela. Não queria ficar caminhando com a cabeça virada para trás, algo que poderia acontecer, se Buddy descobrisse que o delatara.
Não, foi minha.
Mamãe ficara muito tempo calada, depois recomeçou lentamente a dispor suas cartas.
— Talvez já seja hora de você ficar sabendo —, havia dito. — Mentir é pior do que ouvir conversas alheias, acho eu, e todos nós mentimos a nossos filhos sobre vovó. E creio que mentimos para nós também. É o que fazemos, a maior parte do tempo...
Então ela falara, com uma súbita e rancorosa amargura, que era como ácido esguichando de entre seus dentes frontais — George sentiu aquelas palavras tão quentes, que teriam queimado seu rosto, se não houvesse recuado.
— ...exceto por mim. Tenho que morar com ela, não posso mais me dar ao luxo de mentir.
Assim, mamãe me contou que, após se casarem, vovô e vovó haviam tido um bebê que nascera morto. Um ano mais tarde, tiveram outro bebê, também nascido morto. Então, o médico disse a vovó que ela nunca poderia ter um bebê, que tudo quanto podia fazer era continuar tendo bebês já mortos ou que morreriam assim que respirassem. Ele disse que seria sempre assim, até que um bebê ficasse morto dentro dela por muito tempo, antes que seu corpo o expulsasse — esse bebê apodreceria lá e também a mataria.
O médico havia dito isso a ela.
Não muito depois é que os livros começaram.
Livros sobre como ter bebês?
Mamãe, no entanto, não disse — ou não quis dizer — que tipo de livros eram aqueles, onde vovó os conseguira ou como sabia consegui-los. O fato é que vovó tornou a engravidar e, desta vez, o bebê não nasceu morto e nem morreu, após uma ou duas respirações; desta vez, ele estava ótimo e se tornou o tio Larson de George. E, depois disso, vovó continuou engravidando e tendo bebês. Certa vez, contou mamãe, vovô tentara convencê-la a livrar-se dos livros, para ver se teriam filhos sem eles (ou se até não teriam mais porque, a essa altura, talvez ele achasse que já tinha filhos suficientes, de modo que podiam parar de vir ao mundo), mas vovó não quis. George perguntara à sua mãe por quê.
— Acho que, então, ter os livros era tão importante para ela como ter bebês — respondeu sua mãe.
— Não entendo — disse George.
— Bem — falou sua mãe — acho que nem eu entendo bem... Lembre-se, eu era ainda muito pequena. Sei apenas que aqueles livros eram uma segurança para ela. Sua avó disse que não se falaria mais no assunto e assim foi. Porque era ela que usava as calças compridas em nossa família.
George fechou seu livro de História com um golpe súbito. Olhou para o relógio e viu que eram quase cinco da tarde. Seu estômago grunhia maciamente. De repente, com algo parecido ao puro horror, percebeu que se mamãe não estivesse em casa às seis horas mais ou menos, vovó acordaria e começaria a gritar por seu jantar. Mamãe esquecera de dar-lhe instruções sobre isso, talvez por estar tão preocupada com a perna de Buddy. George supôs que poderia fazer para vovó um de seus jantares congelados especiais. Eram especiais, porque ela fazia uma dieta de sal. Também tomava mil espécies diferentes de pílulas.
Para ele próprio, poderia esquentar o macarrão com queijo que sobrara da noite anterior.
Se colocasse um pouco de catchup em cima, ficaria legal.
Ele tirou da geladeira o macarrão com queijo, usou uma colher para coloca-lo em uma panela e pousou a panela no queimador perto da chaleira, esta ainda esperando, para o caso de vovó acordar e querer o que às vezes chamava de "uma xica de chá". George começou a servir-se de um copo de leite, parou, tornou a pegar o telefone.
— ... e nem pude acreditar no que meus olhos viam, quando... — a voz de Henrietta Dodds interrrompeu-se, para depois soar estridentemente: — Eu gostaria de saber quem é que fica ouvindo nesta linha!
George recolocou apressadamente o fone no gancho, sentindo o rosto arder.
Ela não sabe que é você, seu burro. Há seis assinantes da linha!
Dava no mesmo, era errado escutar conversas alheias, inclusive quando apenas para ouvir outra voz, por estar sozinho em casa, sozinho, exceto por vovó, aquela coisa gorda que dormia no outro quarto, em uma cama de hospital; errado, mesmo quando parecia quase necessário ouvir outra voz humana, porque sua mãe estava em Lewinston, logo anoiteceria, vovó estava no outro quarto e ela parecia (sim, oh, sim, ela parecia) uma ursa que, em suas velhas garras engalfinhadas talvez só tivesse forças para mais uma patada assassina.
George foi para a cozinha e bebeu o leite.
Mamãe havia nascido em 1930, seguida por tia Flo em 1932 e pelo tio Franklin em 1934. Tio Franklin morrera em 1948, de apendicite supurada. Mamãe às vezes chorava por causa disso e carregava o retrato dele. Ela gostara mais de Frank do que de todos os outros irmãos, dizia que não havia necessidade daquela morte estúpida por peritonite.
Repetia que Deus não fora correto, ao levar Frank.
George espiou pela janela acima da pia. A claridade lá fora estava agora mais dourada, baixa acima da colina. A sombra do barracão dos fundos estirava-se em todo o comprimento, através do relvado. Se Buddy não tivesse quebrado aquela perna idiota, mamãe agora estaria aqui, fazendo chili ou qualquer outra coisa (mais o jantar sem sal de vovó), com todos eles conversando e rindo. Mais tarde, talvez até jogassem cartas.
George acendeu a luz da cozinha, embora ainda não estivesse escuro bastante para isso.
Depois girou o botão para FOGO BAIXO, sob seu macarrão. Os pensamentos continuavam voltando para vovó, sentada em sua poltrona branca de vinil, como um gordo e imenso verme em um vestido, a coroa desgrenhada dos cabelos despencando pelos ombros do quimono rosa de rayon, estendendo os braços para atraí-to, ele encolhendo-se contra a mãe e chorando.
— Mande o menino para mim, Ruth, eu quero abraçá-lo.
— Ele está um pouco amedrontado, mamãe. Com tempo, acabará indo. — Sua mãe, no entanto, também parecia amedrontada.
Amedrontada? Mamãe?
George parou, refletindo. Seria verdade? Buddy dizia que a memória costumava brincar com a gente. Teria ela realmente parecido amedrontada?
Sim, ela parecera amedrontada.
Então, a voz da avó se alteara peremptoriamente:
— Não mime o garoto, Ruth! Mande-o vir aqui; quero abraçá-lo.
— Não. Ele está chorando.
Vovó baixara os braços pesados, dos quais a carne pendia em grandes e pesados nacos.
Um sorriso tímido e senil espalhara-se em seu rosto e ela havia perguntado:
— Ele é mesmo parecido com Franklin, Ruth? Lembro-me de ouvi-la dizer que o menino se parecia com Frank.
Lentamente, George mexeu o macarrão com queijo e catchup. Não recordara um incidente com tanta clareza antes. Talvez conseguisse lembrar bem agora, por causa do silêncio.
Do silêncio e por estar sozinho com vovó.
— Então, vovó tivera seus bebês e lecionara na escola, os médicos ficaram adequadamente pasmos, vovô fizera sua carpintaria e ficara cada vez mais próspero, encontrando trabalho mesmo nas piores épocas da Depressão. Por fim —, disse mamãe —, as pessoas começaram a falar.
— O que elas falavam? perguntou George.
— Nada de importante —, disse mamãe, mas de repente reuniu as cartas do baralho. — Elas diziam que seu avô e sua avó tinham sorte demais para pessoas comuns, eis tudo. E foi logo depois disso, que encontraram os livros. — Mamãe nada mais acrescentou, exceto que a diretoria da escola encontrara alguns e que um homem contratado encontrara outros mais. Houve um grande escândalo. Vovô e vovó mudaram-se para Buxton e isso encerrou a questão.
Os filhos haviam crescido e tinham tido seus próprios filhos, formando tios e tias uns dos outros. Mamãe se casara, mudando-se para Nova York com papai (o qual George nem conseguia recordar). Depois do nascimento de Buddy, eles se tinham mudado para Stratford e, em 1969, nascia George. Em 1971, papai havia sido atropelado e morto por um carro dirigido pelo Bêbado Que Tinha de Ir para a Cadeia.
Quando vovô tivera seu ataque do coração, tios e tias trocaram muitas cartas entre si.
Não queriam colocar a avó em uma clínica para idosos. E ela não queria ir para uma.
Assim, como vovó não queria fazer semelhante coisa, melhor seria concordar com ela.
Ela preferia ficar com algum filho e viver o resto de seus anos com ele. Contudo, estavam todos casados e nenhum deles tinha esposas querendo partilhar seu lar com uma velha senil e geralmente intratável. Estavam todos casados, exceto Ruth.
As cartas continuaram fluindo de um lado para outro e, por fim, a mãe de George aquiescera. Deixou o emprego e foi para o Maine, tomar conta da velha senhora. Os outros cotizaram-se para a compra de uma casinha nos arredores de Castle View, onde era baixo o preço dos imóveis. Enviavam-lhe um cheque a cada mês, a fim de que ela "cuidasse" da velha e dos próprios filhos.
O que aconteceu é que meus irmãos e irmãs transformaram-me em ama parceira locadora, George recordava tê-la ouvido dizer certa vez. Ele ignorava o que queria dizer aquilo, porém ela parecera amarga ao comentar, como alguma piada que não provocava risos mas, em vez disso, ficava entalada na garganta, como um osso. George sabia (porque Buddy lhe contara), que mamãe finalmente acedera, porque todos da grande e espalhada família lhe haviam assegurado que, com toda certeza, vovó não duraria muito. Havia tanta coisa errada com ela — pressão alta, uremia, obesidade, palpitações cardíacas — que não podia durar muito. Talvez ainda chegasse aos oito meses, disseram tia Flo, tia Stephanie e tio George (de quem George recebera seu nome). Seria um ano, no máximo. Contudo, já tinham decorrido cinco anos e para George, isso significava durar muito.
Ela havia durado demais, sem dúvida. Como uma ursa hibernando e esperando... o quê? (você é quem melhor sabe lidar com ela, Ruth, você sabe fazê-la calar a boca)
A caminho da geladeira, para verificar as instruções impressas em um dos jantares sem sal de vovó, George parou. Ficou hirto. De onde tinha vindo aquilo? Aquela voz falando dentro de sua cabeça?
De repente, seu ventre e o peito ficaram arrepiados. Ele enfiou a mão dentro da camisa e tocou um dos mamilos. Parecia um pequeno seixo, e então recuou apressadamente com o dedo.
Tio George. O tio de quem levava o nome, que trabalhava para a Sperry Rand, em Nova York. Tinha sido a voz dele. Ele dissera aquilo, quando viera com sua família para o Natal, dois — não, três anos atrás.
— Ela é mais perigosa agora, porque está senil.
— Cale a boca, George. Os meninos andam por perto.
George havia parado junto à geladeira, com a mão pousada no puxador frio e cromado, pensando, recordando, espiando para a crescente escuridão lá fora. Buddy não andava por perto aquele dia. Buddy já estava lá fora, porque quisera o trenó melhor, eis o motivo; os dois iam deslizar na colina de Joe Camber e o outro trenó tinha um patim empenado. Assim, Buddy estava lá fora, enquanto George remexia na caixa de sapatos e meias da entrada, procurando um par de meias grossas que combinassem — e que culpa tinha, se sua mãe e o tio George conversavam na cozinha? Ele não se sentia culpado.
Era culpa sua se Deus não o tivesse ensurdecido ou, falhando essa medida extrema, pelo menos situasse a conversa em outro lugar da casa? George também não acreditava nisso. Como indicara sua mãe, em várias oportunidades (geralmente após um ou dois copos de vinho), Deus às vezes costumava fazer brincadeiras de mau gosto.
— Você entende o que quero dizer —, falara tio George.
A esposa dele e as três filhas tinham ido até Gates Falls, para algumas compras natalinas de última hora. Tio George já estava bem alto, exatamente como o Bêbado que Tinha de Ir para a Cadeia. George podia perceber isso, pela maneira como o tio enrolava as palavras.
— Você se lembra do que aconteceu a Franklin, quando ele a contrariou.
— Cale a boca, George, ou jogo o resto de sua cerveja na pia!
— Bem, de fato, ele não tinha intenção de fazer aquilo. Apenas falou o que não devia. A peritonite...
— Cale a boca, George!
— Talvez —, recordou George, pensando vagamente —, Deus não seja o único a fazer brincadeiras de mau gosto.
Agora, interrompendo aquelas antigas lembranças, ele olhou no freezer e apanhou um dos jantares de vovó. Vitela. Com ervilhas ao lado. O forno tinha que ser aquecido previamente e então a refeição permanecia lá dentro por quarenta minutos, a 160°.
Fácil. Ele sabia como fazer. O chá já estava pronto, em cima do fogão, se vovó o quisesse. Ele poderia prepará-lo ou aquecer o jantar em pouco tempo, caso vovó acordasse e gritasse por eles. Chá ou jantar — qualquer coisa que ela quisesse. O número do Dr. Arlinder estava no quadro de anotações, para o caso de uma emergência. Tudo em ordem. Então, por que ficava preocupado?
Ele nunca fora deixado sozinho com vovó, era isso que o preocupava.
— Mande o menino para mim, Ruth. Faça-o vir até aqui.
— Não. Ele está chorando.
— Ela está mais perigosa agora... você sabe o que quero dizer.
— Todos mentimos para nossos filhos sobre vovó.
Nem ele e nem Buddy. Nenhum dos dois fora deixado sozinho com vovó. Até agora.
De repente, George sentiu a boca seca. Foi até a pia e bebeu um pouco de água. Sentia-se... esquisito. Aqueles pensamentos. Aquelas recordações. Por que seu cérebro as jogava para o alto agora?
George se sentia como se alguém houvesse derrubado à sua frente todas as peças de um quebra-cabeças, que ele não conseguia pôr exatamente nos lugares certos. Aliás, talvez fosse bom não conseguir ajustá-los, porque uma vez pronto, o quadro poderia ser, bem, algo desagradável. Poderia...
Do outro quarto, onde vovó passava seus dias e noites, chegou até ele um repentino ruído sufocado, chocalhante, gorgolejante.
A respiração penetrou sibilante em seu peito, quando ele inalou. Virou-se para o quarto de vovó e descobriu que seus sapatos estavam como que firmemente pregados ao piso de linóleo. O coração virara uma pedra em seu peito. Os olhos estavam arregalados e salientes. Vamos, andem, dizia o cérebro aos pés. Os pés perfilavam-se e respondiam, De maneira alguma, senhor!
Vovó nunca tinha feito um barulho como aquele antes.
Vovó nunca tinha feito um barulho como aquele antes.
O barulho repetiu-se, um som amortecido, baixo e decrescente, até tornar-se como um zumbido de inseto, antes de desaparecer de todo. George finalmente conseguiu mover-se.
Caminhou até o pequeno corredor que separava a cozinha do quarto de vovó.
Cruzou-o e olhou para dentro do quarto, com o coração em disparada. Agora, sua garganta estava asfixiada por uma luva de lã; seria impossível engolir através de todo aquele bolo.
Vovó ainda dormia e estava tudo certo, foi seu primeiro pensamento; afinal, fora apenas um som estranho; talvez ela o fizesse o tempo todo, quando ele e Buddy estavam na escola. Apenas uma forma de ressonar. Vovó estava ótima. Dormindo.
Esse foi seu primeiro pensamento. Depois percebeu que a mão amarela que estivera sobre a coberta, agora pendia flacidamente sobre a borda da cama, as compridas unhas quase tocando o chão. E ela estava com a boca aberta, um orifício enrugado e escavado em uma fruta apodrecida.
Timidamente, vacilantemente, George aproximou-se dela.
Ficou ao lado da cama muito tempo, olhando para a velha, não ousando tocá-la. A subida e descida imperceptíveis da coberta pareciam ter cessado.
Pareciam.
Aquela era a palavra-chave. Pareciam.
Mas isto é só porque você está apavorado, Georgie. Está sendo apenas Señor El-Burro, como diz Buddy — é um jogo. Seu cérebro faz truques com seus olhos, a respiração dela está legal, ela está...
— Vovó? — perguntou, mas tudo que emitiu foi um sussurro. Pigarreou e saltou para trás, assustado com o som. Contudo, sua voz soou um pouquinho mais alto. — Vovó? Vai querer seu chá agora? Vovó?
Nada.
Os olhos estavam fechados.
A boca estava aberta.
A mão pendurada.
Lá fora, o sol que se punha brilhava em vermelho-dourado por entre as árvores. George a viu então em uma plentitude positava; viu-a com aquele olho infantil brilhantemente desalojado, de imaturo e incriado reflexo, não aqui, não agora, não na cama, mas estando ela sentada na poltrona branca de vinil, estendendo os braços, o rosto ao mesmo tempo estúpido e triunfante. Viu-se recordando um dos "acessos", quando vovó começava a gritar, como em língua estrangeira — Gyaagin! Gyaagin! Hastur degryon Yos-soth-oth! — e mamãe os tinha mandado para fora, tinha gritado "Saia. JÁ!" para Buddy, quando ele parou junto à caixa da entrada, a fim de procurar suas luvas. Budy olhara para trás, por sobre o ombro, tão assustado que seus olhos se arregalaram, porque a mãe de ambos nunca havia gritado. Então, os dois saíram e ficaram na entrada de carros, sem falar, as mãos enfiadas nos bolsos em busca de calor, perguntando-se o que estaria acontecendo.
Mais tarde, mamãe os chamara para jantar, como se nada houvesse ocorrido. (você sabe lidar com ela Ruth você sabe como fazê-la calar-se)
Até o dia presente, George não tornara a pensar mais naquele particular "acesso". Só agora, olhando para vovó, que dormia tão estranhamente em sua cama de hospital, com a cabeceira elevada pela manivela, ocorria a ele, com crescente horror, que no dia anterior haviam sabido que a Sra. Harham, residente mais acima na estrada e que por vezes vinha visitar vovó, tinha morrido aquela noite, durante o sono.
"Acessos".
Acessos. Esconjuros...
Presumia-se que feiticeiras pudessem lançar esconjuros. Não era isso que as tornava feiticeiras? Maçãs envenenadas. Príncipes transformados em sapos. Casas de chocolate.
Abracadabra. Abre-te sésamo. Esconjuros.
Eram peças soltas de um desconhecido quebra-cabeças, que voavam pela mente de George, encaixando-se entre si, como por magia.
Magia, pensou ele, e grunhiu.
Qual era o quadro formado? Vovó, naturalmente, vovó e seus livros, vovó que tinha sido expulsa da cidade, vovó que não podia ter bebês, mas que depois os tivera, vovó que fora expulsa da igreja, assim como da cidade. O quadro representava vovó, amarela, gorda, enrugada e indolente, a boca desdentada encurvando-se em um sorriso que afundava, seus olhos cegos e desbotados, de certo modo astugos e manhosos; e, em sua cabeça, havia um chapéu preto e cônico, salpicado de estrelas prateadas e cintilantes crescentes babilônicos; a seus pés, enroscavam-se gatos pretos de olhos tão amarelos como urina, enquanto os cheiros eram de porco e cegueira, de porco e coisas queimadas antigas estrelas e velas, tão escuras como a terra, na qual ataúdes jaziam; ele ouviu palavras ditas de livros antigos, e cada palavra era como uma pedra, cada sentença como uma cripta, erigida em algum ossuário fedorento, cada parágrafo como uma caravana de pesadelo, formada pelos que a praga matara, sendo levados a um local de queima; seu olho era o olho de uma criança mas, naquele momento, abriu-se desmesuradamente, em espantada compreensão sobre o negrume.
Vovó tinha sido uma feiticeira, exatamente como a Bruxa Má em O Mágico de Oz. E agora, ela estava morta. Aquele som borbulhante, pensou George, com crescente horror.
Aquele som ressonado e gargarejante, havia sido um... um... um "chocalhar da morte".
— Vovó? — chamou, em um sussurro.
Pensou, loucamente! Ding-dong, a feiticeira está morta! Não houve resposta. Manteve a mão em concha diante da boca de vovó. Não havia a menor brisa se movendo e que viesse de dentro dela. Era a morte calma e velas murchas, sem esteiras alargando-se atrás da quilha. Um pouco de seu medo diminuiu e ele tentou refletir. Recordou o tio Fred, mostrando-lhe como molhar um dedo e testar o vento; então, lambeu a palma inteira e a manteve diante da boca de vovó.
Ainda nada.
Começou a caminhar para o telefone, a fim de chamar o Dr. Arlinder, mas então parou.
E se chamasse o médico, sem ela de fato estar morta? Ficaria em apuros, na certa.
Tome-lhe o pulso.
Parou na soleira, olhando dubitativamente para aquela mão pendurada. A manga da camisola de vovó ficara suspensa, expondo-lhe o pulso. Só que o recurso era falho.
Certa vez, após uma visita do médico em que a enfermeira apertara os dedos em seu punho, para tomar-lhe o pulso, George a imitara, porém não fora capaz de encontrar nenhuma pulsação. Até onde seus dedos destreinados podiam dizer, ele estava morto.
Por outro lado, não sentia a menor vontade de... bem... de tocar vovó. Mesmo se ela estivesse morta. Especialmente se estivesse morta.
George parou no pequeno corredor diante da porta, olhando no corpo imóvel e deitado de vovó para o telefone na parede, ao lado do número do Dr. Arlinder. Tornou a olhar para vovó. Teria que chamar o médico. Era preciso... arranjar um espelho!
Claro! Quando a gente respira contra um espelho, ele fica embaciado. Vira um médico examinar uma pessoa sem sentidos dessa maneira, certa vez em um filme. Havia um banheiro dando para o quarto de vovó. George correu para ele e pegou o espelho de mão que ela possuía. Uma das faces era normal, a outra aumentava as coisas, de modo que se podia arrancar pêlos e coisas assim.
George levou o espelho à cama de vovó e manteve um lado dele até quase tocar a boca aberta, escancarada. Conservou-o na mesma posição enquanto contava até sessenta, observando vovó o tempo todo. Nada mudou. Estava certo de que ela havia morrido, antes mesmo de afastar-lhe o espelho da boca e observar a superfície, que estava perfeitamente clara e sem embaciamento.
Vovó estava morta.
Com alívio e alguma surpresa, George percebeu que agora conseguia lamentá-la. Talvez ela houvesse sido uma feiticeira. Talvez não. Talvez ele apenas a tivesse imaginado uma. Fosse como fosse, ela agora estava morta. Com um entendimento de adulto, ele percebeu que questões de realidade concreta, embora não perdendo a importância, ficam menos vitais se examinadas à muda face branda de restos mortais. Percebeu isto com um entendimento de adulto e foi com um alívio de adulto que o aceitou. Assim são todas as impressões adultas de uma criança; somente anos mais tarde, a criança compreende que estava sendo feita, que estava sendo formada, moldada por experiências ocasionais; tudo quanto permanece no instante além da pegada, é aquele acre cheiro de pólvora, que é a ignição de uma idéia além dos determinados anos de uma criança.
Ele tornou a levar o espelho para o banheiro, depois voltou ao quarto dela, observando o corpo enquanto isso. O sol poente pintara a velha face morta em barbáricos tons vermelho-alaranjados. George olhou rapidamente para outro lado.
Cruzou a porta e passou pela cozinha, em direção ao telefone, decidido a fazer tudo certo. Em sua mente, já via uma certa vantagem sobre Buddy; sempre que o irmão começasse a implicar, diria apenas: eu estava sozinho em casa quando vovó morreu, e fiz tudo certo.
Ligar para o Dr. Arlinder, era a primeira providência. Ligar para ele e dizer, "Minha avó acabou de morrer. Pode me dizer o que devo fazer? Cobri-la ou coisa assim?"
Não.
"Acho que minha avó acabou de morrer."
Sim. Sim, assim era melhor. Afinal, ninguém pensaria que um garoto de pouca idade saberia alguma coisa, portanto, assim era melhor.
Ou então!
"Tenho absoluta certeza de que minha avó acabou de morrer..."
Claro! Esta era a melhor escolha.
Também falaria sobre o espelho, o chocalho da morte, tudo enfim. E o médico viria em seguida, para dizer, enquanto examinasse vovó, "Eu a declaro morta, vovó". Depois diria a George, "Você foi extremamente calmo em uma situação difícil, George. Quero dar-lhe os meus parabéns." E George responderia com algo apropriadamente modesto.
Ele olhou para o número do Dr. Arlinder e fez duas respirações profundas, antes de pegar o fone. Seu coração batia depressa, mas aquela tremenda palpitação desaparecera.
Vovó estava morta. Acontecera o pior, mas enfim não era tão ruim como esperar que ela começasse a gritar com mamãe, para que lhe levasse o chá.
O telefone estava mudo.
Ele ouviu o vazio, sua boca ainda formada em torno das palavras Sinto muito, Sra. Dodd, mas aqui é George Bruckner e preciso chamar o médico para minha avó. Nada de vozes. Nada de sinal para discar. Apenas o vazio morto. Como aquela vacuidade morta na cama, lá no quarto.
Vovó está...
... está...
(oh, ela está)
Vovó está ficando fria.
Novamente a pela arrepidada, dolorida, entorpecida. Seus olhos se fixaram na chaleira Pyrex sobre o fogão, na xícara em cima do balcão, com o saquitel de chá de ervas em seu interior. Nada de chá para vovó. Nunca mais.
(ficando tão,fria)
George estremeceu.
Seu dedo moveu para cima e para baixo o dispositivo interruptor do telefone Princess, mas a linha estava morta. Tão morta como...
(e tão gelada como)
Bateu o gancho para baixo, com força, ouvindo a campainha tilintar fracamente no interior. Tornou a pegar rapidamente o fone, para ver se aquilo significava que, por meios mágicos, voltara a funcionar. Contudo, nada acontecera e, desta vez, ele o colocou lentamente no gancho.
Seu coração começara a bater mais forte novamente.
Estou sozinho em casa, com ela morta.
Cruzou a cozinha devagar, parou junto à mesa por um minuto e então ligou a luz. Estava ficando escuro ali dentro. Logo o sol desapareceria de todo e a noite estaria ali.
Esperar. É tudo que posso fazer. Apenas esperar, até que mamãe volte. De fato, é a melhor solução. Se o telefone ficou mudo, é melhor do que ela apenas ter morrido, em vez de ter um ataque ou coisa assim, espumando pela boca, talvez caindo da cama...
Ah, isso sim, seria terrível. Ele poderia ter agido com toda a correção, sem toda essa confusão.
Como ficar sozinho no escuro e pensar em coisas mortas que ainda viviam, ver formas nas sombras sobre as paredes e pensar na morte, pensar nos mortos, aquelas coisas, a maneira como federiam e a maneira como se moveriam em direção à gente, no escuro: pensando isto: pensando aquilo: pensando em insetos transformados em carne; escondendo-se na carne; olhos que se moviam no escuro. Sim. Isso antes de tudo. Pensando em olhos que se moviam no escuro e no rangido de tábuas do assoalho, como se alguma coisa cruzasse o aposento, através das tiras zebradas de sombras que vinham da luz lá de fora. Sim.
No escuro, os pensamentos tinham uma perfeita circularidade, pouco importando aquilo em que se quisesse pensar — flores, Jesus, beisebol ou ganhar a medalha de ouro nos 440, nas Olimpíadas — de certo modo, isso reconduzia à forma nas sombras, com as garras e os olhos imóveis.
— Droga! — sibilou George.
Bateu no rosto subitamente. Com força. Estava se deixando dominar por aqueles pensamentos horríveis, era tempo de parar com isso. Afinal, não estava mais com seis anos. Sua avó tinha morrido, isso era tudo. Morrido. Dentro dela, agora não havia mais pensamento do que em uma bola de gude, em uma tábua do assoalho, uma maçaneta, um botão de rádio, um...
Então, uma forte voz, estranha e súbita, talvez apenas a espontânea e inexorável voz da simples sobrevivência, exclamou dentro dele: Cale-se, George, e vá cuidar de suas malditas obrigações!
Sim, está bem. Está bem, mas...
Ele retornou à porta do quarto dela, para certificar-se.
Lá jazia vovó, uma mão caída para fora da cama e tocando o chão, a boca escancarada.
Vovó agora era parte do mobiliário. Podia-se colocar a mão dela na cama outra vez, puxar-lhe os cabelos, despejar um copo com água em sua boca ou colocar fones de ouvido em sua cabeça, tocando Chuck Berry a todo volume, que daria tudo no mesmo para ela. Como Buddy dizia às vezes, vovó estava em outra. Tinha dado no pé.
Um ruído repentino, baixo e ritmado, como de algo batendo, começou não muito distante da esquerda de George, arrancando-lhe um pequeno grito assustado. Era a porta contra tempestades, que Buddy havia colocado apenas na semana anterior. Nada mais que a porta contra tempestades, destrancada e batendo de lá para cá, à brisa refrescante.
George abriu a porta interna, inclinou-se para fora e agarrou a porta contra tempestades, quando ela bateu de volta. O vento — não era uma brisa, mas vento — passou por seus cabelos, desarrumando-os. Ele trancou a porta com firmeza e perguntou-se como o vento surgira tão de repente. Na hora em que mamãe saíra, havia a mais absoluta calmaria. Enfim, quando ela saíra, ainda era dia claro, agora estava quase anoitecendo.
George tornou a dar uma espiada em vovó. Depois voltou e experimentar o telefone.
Continuava mudo. Ele se sentou, levantou-se e começou a andar na cozinha, de um lado para outro, parando de quando em quando, procurando pensar.
Uma hora depois, era noite fechada.
O telefone continuava mudo. George supôs que o vento, agora adquirindo proporções de quase ventania, teria derrubado algumas linhas, talvez por perto do Pântano do Castor, onde as árvores cresciam por toda parte, em uma desordem de troncos abatidos e poças de água parada. O telefone tilintava ocasionalmente, fantasmagórico e distante, porém a linha permanecia muda. Lá fora, o vento uivava ao longo das calhas da pequena casa, e George admitiu que teria uma boa história para contar, na próxima reunião local de escoteiros... sentado em casa, sozinho com a avó morta, o telefone mudo e o vento empurrando montes de nuvens apressadamente pelo céu, nuvens que eram negras no topo e, por baixo, tendo a palidez da morte, a cor das mãos-garras de vovó.
Como Buddy também costumava dizer, isso era um Clássico.
George desejaria ouvi-lo dizendo isso agora, com a realidade da coisa seguramente para trás. Sentou-se à mesa da cozinha, tendo à frente aberto o livro de história, sobressaltando-se ao menor ruído... e agora que o vento se levantara, havia milhares de sons, quando a casa estalava em todas as suas juntas secretas, não oleadas e esquecidas.
Ela logo estará em casa. Estará em casa e tudo ficará legal. Tudo (você nem a cobriu) tudo estará (nem cobriu o rosto dela)
George saltou, como se alguém houvesse falado em voz alta, e arregalou os olhos, espiando o telefone inútil através da cozinha. Presumia-se que o lençol era puxado para sobre o rosto da pessoa morta. Era assim nos filmes.
Para o diabo com isso! Eu não vou entrar lá!
Não! E não havia motivo algum para que fosse lá! Mamãe podia cobrir-lhe o rosto, quando chegasse em casa! Ou o Dr. Arlinder, quando viesse! Ou o funerário!
Alguém, qualquer pessoa, menos ele.
Não havia motivo para que fizesse isso.
Não era da sua conta e nem da conta de vovó.
A voz de Buddy em sua cabeça:
Se não está com medo, por que não tem coragem de cobrir o rosto dela?
Não é da minha conta.
Droga!
Também não é da conta de vovó.
Droga, PORCA MISÉRIA! COVARDÃO!
Sentado à mesa, diante do livro de História que não lia, considerando a situação, George começou a perceber que, se não puxasse a coberta para cima do rosto de vovó, não poderia alegar que fizera tudo certo e, assim, Buddy teria um motivo para implicar com ele.
Agora, ele se via contando a história mal-assombrada da morte de vovó, em torno da fogueira no acampamento escoteiro, antes do toque de silêncio, mal chegando à confortadora conclusão em que os faróis de mamãe banham de luz a entrada para carros — o reaparecimento do adulto, não apenas restabelecendo, mas confirmando o conceito de Ordem — e, de repente, do meio das sombras, eleva-se uma figura sombria, um cone de pinheiro explode na fogueira, e George pode ver que é Buddy, lá nas sombras, dizendo: Se você foi tão corajoso, seu maricas, como é que não teve peito para cobrir O ROSTO DELA?
George levantou-se, recordando a si mesmo que vovó estava em outra, que vovó dera no pé, que vovó estava ficando gelada. Podia recolocar-lhe a mão na cama, enfiar-lhe um saquitel de chá pelo nariz, botar-lhe fones de ouvido com Chuck Berry tocando a todo volume, etc., etc., e nada disso faria a mínima diferença para vovó, porque isso era o que significava estar morto, nada disso faria diferença para uma pessoa morta, uma pessoa morta era um defunto consumado e frio, o resto não passava de sonhos, sonhos inevitáveis, apocalípticos e febris sobre portas fechadas que se abriam sozinhas na boca morta da meia-noite, apenas sonhos sobre o lugar banhando delirantemente os ossos de esqueletos desenterrados, apenas...
— Quer parar com isso? — sussurrou ele. — Pare de ser tão... (grosso)
George empertigou-se. Iria lá dentro e puxaria a coberta sobre o rosto dela, assim eliminando o último motivo para as implicâncias de Buddy. Levaria a cabo os poucos e simples rituais da morte de vovó. Com toda a perfeição. Cobriria seu rosto e então — seu rosto iluminou-se, ante o simbolismo daquilo — guardaria seu saquitel de chá não usado e também sua xícara não usada. Isso mesmo.
Começou a andar, cada passo, um ato consciente. O quarto de vovó estava escuro, o corpo dela era uma vaga protuberância na cama, e ele tateou loucamente pelo interruptor de luz, não o encontrando pelo que lhe pareceu uma eternidade. Por fim, moveu-o e o quarto inundou-se com a claridade amarelada que vinha, em fraca potência, do lustre em vidro lapidado.
Vovó jazia lá, a mão pendurada, a boca aberta. George a observou, mal percebendo que pequeninas pérolas de suor agora lhe surgiam na testa. Perguntou-se se sua responsabilidade no assunto se estenderia possivelmente a recolher aquela mão esfriando e recolocá-la na cama, com o resto de vovó. Decidiu pela negativa. A mão dela poderia ter escorregado a qualquer momento. Aquilo já era pedir demais. Ele não poderia tocá-la. Faria tudo, menos isso.
Lentamente, como que se movendo através de algum fluido espesso, em vez de ar, George aproximou-se da cama. Ficou parado junto dela, olhando para baixo. Vovó estava amarela. Parte do amarelado era devido à luz, filtrada através do velho lustre, mas não tudo.
Respirando pela boca, o hálito saindo audivelmente, ele agarrou a coberta e a puxou para cima do rosto de vovó. Soltou a coberta e ela escorregou ligeiramente, revelando a linha da raiz dos cabelos e o amarelado, franzido pergaminho de sua testa.
Empertigando-se, tornou a pegar a coberta, mantendo as mãos bem afastadas de um e de outro lado da cabeça dela, a fim de não tocá-la, mesmo através do tecido. Deixou a coberta cair novamente e agora ela ficou onde devia. Estava satisfatório. Parte do medo evaporou-se. Ele a sepultara. Sim, era por isso que se cobria uma pessoa morta, porque era o certo: era como sepultá-la. Era uma confirmação da morte.
George olhou para a mão pendurada, insepulta, e descobriu agora que podia tocá-la, podia enfiá-la debaixo da coberta, sepultá-la com o resto de vovó.
Abaixou-se, agarrou a mão fria e a ergueu.
A mão contorceu-se na sua e aferrou-lhe o pulso.
George gritou. Cambaleou para trás, gritando na casa vazia, gritando contra o som do vento ululante nas calhas, gritando contra o som das juntas rangentes da casa. Recuou, puxando o corpo de vovó, que ficou enviezado debaixo da coberta, e a mão caiu com um baque surdo, contorcendo-se, girando, agarrando o ar... para então relaxar-se, ficar novamente flácida.
Eu estou bem, aquilo não foi nada, nada, apenas um reflexo.
George assentiu, em perfeita compreensão. Então, tornou a recordar como a mão se virara, agarrando a sua, e encolheu-se. Seus olhos desorbitaram-se. Seu cabelo ficou em pé, perfeitamente ereto, formando um cone. Seu coração galopava desabaladamente dentro do peito. O mundo inclinou-se loucamente, tornou a nivelar-se e depois continuou movendo-se, até inclinar-se para o outro lado. A cada vez que o pensamento racional começava a voltar, o pânico o invadia de novo. Ele deu meia volta, desejando apenas sair dali para qualquer outro aposento até mesmo correr três ou quatro quilômetros pela estrada, se fosse preciso — onde poderia ter tudo sob controle. Assim, ele girou e correu, chocando-se contra a parede, porque errara a porta aberta por quase meio metro.
Ricocheteou e caiu ao chão, sua cabeça cantando com uma dor aguda e lancinante, que se insinuou francamente através do pânico. Tocou o nariz, e a mão saiu suja de sangue.
Novas gotas pingaram em sua camisa verde. Conseguiu ficar em pé e olhou em torno, desvairadamente.
A mão pendia contra o chão, como antes, mas o corpo de vovó não estava mais enviezado. Também ele se encontrava na posição anterior.
Ele havia imaginado a coisa toda. Entrara no quarto e tudo o que acontecera, havia sido apenas um filme mental.
Não.
A dor, no entanto, lhe clareara a cabeça. Pessoas mortas não agarram o pulso da gente.
Mortos estão mortos. Quando morremos, os outros podem usar-nos como cabide para chapéus, enfiar-nos dentro de um pneu de trator e empurrar-nos ladeira abaixo ou, etcétera, etcétera, etcétera, etcétera. Se uma pessoa está morta, ela poderia agir sobre (contra, digamos, meninos pequenos que querem recolocar mãos mortas e penduradas em cima da cama), porém seus dias de atuação — por assim dizer — terminaram.
A menos que se trate de uma feiticeira. A menos que a pessoa decida morrer quando não há mais ninguém por perto, além de um menino pequeno apenas, porque esta é a melhor maneira dela poder... poder...
Poder o quê?
Nada. Era idiotice. Ele imaginara a coisa toda porque estava com medo, e nada mais houvera além disso. George limpou o nariz com o braço e apertou os olhos com a dor.
Havia uma mancha ensangüentada na pele, na parte interna de seu braço.
Ele não ia mais chegar perto dela, de jeito nenhum. Realidade ou alucinação, não queria se meter com vovó. O brilhante lampejo do pânico se fora, mas ele continuava miseravelmente assustado, quase chorando, trêmulo à vista do próprio sangue, desejando apenas que sua mãe voltasse para casa e se incumbisse de tudo.
George saiu do quarto, cruzou o pequeno corredor e entrou na cozinha. Aspirou fundo e tremulamente, deixou o ar sair. Queria um trapo velho e molhado para o nariz, de repente teve a impressão de que ia vomitar. Debruçou-se na pia e deixou a água fria escorrer da torneira. Inclinando-se, pegou um pano velho na bacia debaixo da pia — o pedaço de uma das velhas fraldas de vovó — e o botou debaixo da torneira de água fria, fungando o sangue enquanto isso. Encharcou o velho e macio quadrado da fralda de algodão até sentir as mãos entorpecidas, depois fechou a torneira e torceu o pano.
Estava aplicando-o ao nariz, quando a voz dela soou no quarto.
— Venha cá, menino — chamou vovó, em voz monótona como um zumbido. — Venha cá — vovó quer abraçar você.
George quis gritar, mas não emitiu som algum. Nenhum som, em absoluto. Contudo, havia sons no outro quarto. Sons que ouvia quando mamãe estava em casa, dando o banho de esponja em vovó, erguendo seu corpo volumoso, deixando-o cair, virando-o, deixando-o cair novamente.
Agora, no entanto, tais sons pareciam ter um significado ligeiramente diverso e totalmente específico — era como se vovó estivesse tentando... sair da cama.
— Menino! Venha cá, menino! Já! AGORA! Ande depressa!
Com horror, ele viu que seus pés estavam respondendo àquela ordem. Disse a eles que parassem, mas ambos continuaram em frente, pé esquerdo, pé direito, arrastando-se como em uma dança, por sobre o linóleo; seu cérebro era um prisioneiro aterrorizado dentro de seu corpo — um refém em uma torre.
Ela é uma feiticeira, ela é uma feiticeira e está tendo um de seus "acessos", oh, sim, é bem um "esconjuro", uma coisa ruim, é REALMENTE ruim, oh, Deus, oh, Jesus, ajudem-me, ajudem-me, ajudem-me...
George caminhou através da cozinha, seguiu pelo pequeno corredor e, sim, ela não havia apenas tentado sair da cama, ela já saíra, agora estava sentada na poltrona branca de vinil, onde há quatro anos não se sentava mais, desde que ficara muito pesada para andar e demasiado caduca para saber onde se encontrava.
Agora, no entanto, vovó não parecia caduca.
Seu rosto continuava bambo e pastoso, mas a caduquice desaparecera — se é que um dia chegara a aparecer, não passando de uma máscara que ela procurava usar para tranqüilizar meninos pequenos e cansadas mulheres sem marido. Agora, o rosto de vovó irradiava absoluta inteligência — brilhava como uma velha e fedorenta vela de cera. Os olhos decaíam no rosto, mortos e sem brilho. Seu peito não se movia. A camisola subira, exibindo coxas elefantinas. A coberta de seu leito de morte tinha sido atirada a um lado.
Vovó estendeu para ele os braços volumosos.
— Quero abraçar você, Georgie — disse aquela voz monótona e zumbida. Não fique aí, como um bebezinho assustado. Deixe vovó abraçá-lo.
George recuou, tentando resistir àquele quase insuperável fascínio. Lá fora, o vento esganiçou-se e rugiu. O rosto de George estava espichado e contorcido, ante a enormidade de seu pavor; era uma face esculpida em madeira, capturada e trancada em um livro antigo.
Começou a caminhar para ela. Não tinha forças para resistir. Arrastou-se passo a passo, na direção daqueles braços estendidos. Mostraria a Buddy que também não tinha medo de vovó. Iria até ela e seria abraçado, porque não era um bebê-chorão covarde. Iria agora até vovó. Agora.
Estava quase dentro do círculo dos braços dela, quando a janela à sua esquerda se abriu para dentro e, subitamente, um galho atirado pelo vento estava no quarto com eles, tendo ainda presas suas folhas outonais. O rio de vento inundou o aposento, batendo sobre os quadros de vovó, fustigando-lhe a camisola e os cabelos.
George agora conseguiu gritar. Cambaleou para trás, afastando-se do alcance dela.
Vovó emitiu um decepcionado som sibilante, seus lábios arreganhando-se sobre velhas e macias gengivas; suas mãos gordas e enrugadas encontraram-se inutilmente sobre o ar que se movia.
Os pés de George emaranharam-se e ele caiu. Vovó começou a levantar-se da poltrona branca de vinil, uma tremelicante pilha de carne; ela cambaleou em sua direção. George percebeu que não podia levantar-se, que a força desertara de suas pernas. Começou a engatinhar para trás, choramingando. Vovó aproximou-se, lenta, mas incessantemente, morta, mas viva ao mesmo tempo e, de repente, George compreendeu o que significaria o abraço; o quebra-cabeças ficou completo em sua mente e, de algum modo, encontrou os pés no momento exato em que a mão de vovó se fechou em sua camisa. O tecido se rasgou no lado e, por um momento, George sentiu a carne fria contra sua pele, antes de fugir novamente para a cozinha.
Poderia correr para fora de casa, dentro da noite. Faria tudo, menos ser agarrado pela feiticeira, por sua avó. Porque quando sua mãe voltasse, encontraria vovó morta e ele vivo, oh, sim... mas George teria adquirido uma súbita predileção por chás de ervas.
Olhou para trás, por sobre o ombro, e viu a forma grotesca, deformada de vovó, subindo na parede, quando ela chegou ao pequeno corredor.
E, nesse momento, o telefone tocou, aguda e estridentemente.
George pegou o fone sem mesmo pensar e gritou nele; gritou para que viesse alguém, por favor, que viesse. Gritou essas coisas silenciosamente, porque nem um som escapou de sua garganta bloqueada.
— Ruth? — era a voz da tia Flo, quase perdida no assobiante túnel de vento de uma péssima ligação interurbana. — É você, Ruth?
Era a tia Flo, em Minnesota, a mais de três mil e duzentos quilômetros de distância.
Vovó entrou na cozinha em passos vacilantes, vestida com sua camisola rosa. Os cabelos branco-amarelados esvoaçavam selvagemente em volta de seu rosto e um de seus pentes de chifre pendia de banda, contra o pescoço franzido.
Vovó estava sorrindo.
— Socorro! — berrou George ao telefone.
No entanto, o que saiu foi um débil, sibilante assobio, como se houvesse soprado em uma harmônica de boca, cheia de palhetas avariadas.
Vovó cambaleou através do linóleo, os braços estendidos para ele. Suas mãos encontravam-se, uma batia na outra, tornavam a afastar-se, encontravam-se novamente.
Vovó queria o seu abraço; levara cinco anos esperando aquele abraço.
— Ruth, está me ouvindo? Há uma terrível tempestade aqui, começou há pouco, e eu... eu fiquei assustada. Ruth, não consigo ouvi-la...
— Vovó — gemeu George ao telefone.
Agora, ela já estava quase em cima dele.
— George? — a voz da tia Flo ficou subitamente aguda, era quase um guincho. — É você, George?
Ele começou a recuar de vovó e, de repente, percebeu que havia recuado estupidamente da porta, prestes a encurralar-se no canto formado pelos armários da cozinha e a pia. O horror foi completo. Quando a sombra dela caiu sobre ele, a paralisia interrompeu-se e George gritou ao fone, gritou para ele, vezes e vezes sem conta:
— Vovó! Vovó! Vovó!
As mãos frias de vovó tocaram sua garganta. Seus olhos lodosos e antigos fixaram-se nos seus, drenando-lhe a vontade.
Fracamente, indistintamente, como se através de muitos anos e também através de muitíssimos quilômetros, ele ouvia a tia Flo dizer:
— Diga a ela pare deitar-se, George, diga a ela para deitar-se e ficar quieta. Diga-lhe para fazer isso, em seu nome e no nome do pai dela. O nome de presumido pai dela é Hastur. Esse nome tem poder no ouvido dela, George — diga-lhe Deite-se, em Nome de Hastur — diga a ela...
A mão velha e enrugada arrancou o fone do pulso inerte de George. Houve um tenso estouro, quando o fio se soltou do fone. George arriou no canto e vovó inclinou-se, uma enorme montanha de carne acima dele, eclipsando a luz.
— Deite-se! — gritou George. — Fique quieta! Em nome de Hastur! Deite-se! Fique quieta!
As mãos dela se fecharam em torno de seu pescoço...
— Tem que obedecer! A tia Flo disse que obedeceria! Em meu nome! Pelo nome de "seu Pai! Deite-se! Fique qui —
... e apertaram.
Quando as luzes finalmente banharam a entrada de carros, uma hora mais tarde, George estava sentado à mesa, diante do livro de História que não lera. Levantou-se, foi até a porta dos fundos e a abriu. À sua esquerda, o fone Princess pendia em seu gancho, com o fio inútil enrolado em torno dele.
Sua mãe entrou, trazendo uma folha colada à gola do casaco.
— Que ventania — disse ela. — Correu tudo bem — George? George, o que aconteceu?
O sangue fugiu do rosto de mamãe, em um único e chocado jato, deixando-a com uma horrível brancura de palhaço.
— Vovó — respondeu ele. — Vovó morreu. Vovó morreu, mamãe.
E começou a chorar. Ela o enlaçou nos braços e então cambaleou contra a parede, como se este ato de abraçar lhe houvesse roubado as últimas forças.
— Aconteceu... aconteceu alguma coisa? — perguntou ela. — Diga, George, aconteceu mais alguma coisa?
— O vento derrubou um galho de árvore e o jogou pela janela de vovó — disse George.
Ela o afastou, perscrutou seu rosto chocado e apagado por um momento, e então correu para o quarto de vovó. Ficou lá talvez uns quatro minutos. Quando voltou, segurava um retalho de pano vermelho. Era um pedaço de camisa de George.
— Eu tirei isto da mão dela — sussurrou mamãe.
— Não quero falar nisso — respondeu George. — Ligue para a tia Flo, se quiser. Estou cansado. Quero ir para a cama.
Ela pareceu querer detê-lo, mas não o fez. George subiu para o quarto que partilhava com Buddy e abriu o registro do cano de calefação, a fim de ouvir o que sua mãe faria em seguida. Ela não iria ligar para a tia Flo, não aquela noite, porque o fio do telefone fora arrancado; também não amanhã, porque pouco antes de mamãe chegar em casa, George pronunciara uma curta série de palavras, algumas delas em latim espúrio, algumas apenas grunhidos pré-druídicos, e, a mais de três mil e duzentos quilômetros de distância, a tia Flo caíra morta, com uma hemorragia cerebral maciça. Era espantoso como aquelas palavras voltavam. Como tudo voltava.
George se despiu e deitou-se nu em sua cama. Colocou as mãos atrás da cabeça e ficou olhando a escuridão. Lenta, muito lentamente, um cavado e um tanto horrível sorriso emergiu em seu rosto.
De agora em diante, as coisas ali iam ser muito diferentes.
Muitíssimo diferentes.
Buddy, por exemplo. George mal podia esperar, até que Buddy voltasse do hospital para casa e recomeçasse a Tortura da Colher dos Chinas Pagãos ou uma Queimadura de Corda índia, quando não, qualquer coisa semelhante. George supôs que deixaria Buddy levar a melhor naquilo — pelo menos durante o dia, quando os outros podiam ver — mas quando a noite chegasse e os dois ficassem sozinhos naquele quarto, no escuro, com a porta fechada...
George começou a rir silenciosamente.
Como Buddy sempre dizia, ia ser um Clássico.

4 comentários:

  1. He he he, esse conto, assim como diz o personagem, "é um clássico". Stephen King em sua melhor forma.

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  2. Esse é um dos poucos contos de King que me deram medo, pelo menos na época em que o li. Outro foi O Macaco, que também está no blog.

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  3. Foi adaptado p o cinema.
    O filme chama-se MERCY.

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  4. Só eu que vejo altas semelhanças deste conto com o filme Hereditário?

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