quinta-feira, setembro 11, 2014

A Galinha Degolada e outros contos (Horácio Quiroga)






O escritor uruguaio Horácio Quiroga (1879-1937) teve uma vida marcada por várias tragédias. Quando criança, viu seu pai suicidar-se com um tiro. Alguns anos depois é o padrasto que suicida-se. Na juventude apaixona-se por uma jovem, mas o romance não prospera devido a oposição da família dela. Aos 24 anos, depois que dois de seus irmãos morrem, Quiroga mata acidentalmente um amigo com uma pistola e, desesperado, tenta o suicídio. Aos 29, quando era professor, namora uma aluna de 15 anos, encontrando novamente resistência dos pais dela, mas desta vez casa-se. Depois de algum tempo, muda-se com ela e a filha pequena para a selva, onde trabalha com plantações. Porém, a jovem não adapta-se e, após alguns anos, suicida-se. Ele permanece na mata por mais algum tempo com os dois filhos pequenos, mas decide voltar. Vê seu amigo Baltazar Brum chegar à presidência — época esta em que o escritor gozou de certo prestígio — mas alguns anos depois o vê sendo destituído do poder e, (sim, isto mesmo) suicidar-se. Quiroga volta a morar na selva com uma nova esposa, e esta também não se adapta e resolve deixá-lo. Pobre, descobre que tem câncer no estômago, irreversível e que lhe causa graves dores. Suicida-se com uma dose de cianureto. Mesmo após sua morte os acontecimentos trágicos não cessaram na família, com o suicídio de suas filhas.

Depois desta pesada introdução, vamos tratar do assunto que nos interessa, que é a coletânea A Galinha Degolada e outros contos — lançada em conjunto com Heroísmos (Biografias exemplares), publicados como livro de bolso pela L&PM Pocket. Trata-se, na verdade, de uma seleção de apenas seis contos e de alguns artigos escritos pelo autor em uma revista portenha nos anos 20.

Como o título da obra indica, entre os contos está presente a obra-prima de Quiroga. A Galinha Degolada é uma das melhores narrativas breves que já tive o prazer de ler. Através dela podemos conhecer as características que mais perseguem o autor uruguaio, lembrando em muito suas tragédias pessoais. Na história, o casal Mazzini-Ferraz vê seus sonhos de constituir família serem destroçados depois que cada um dos seus quatro filhos é acometido por moléstias que os tornam débeis mentais. Lendo hoje, temos um conto politicamente incorreto até a medula, pois trata crianças portadoras de deficiências como verdadeiros monstros. São elas as maiores causadoras de medo no leitor, pois a simples descrição do comportamento dos quatro meninos já é apavorante. A forma como eles ficam a tarde toda sentados em um banco no quintal com os olhos fixos no muro, ou como eles riem bestialmente ao ouvirem trovões, chega a me causar pesadelos, assim como quando eles são lavados, mugindo até os rostos ficarem injetados de sangue.

Mas é claro que um autor como Quiroga não usaria apenas este recurso no conto. Também descemos às profundezas do inferno conjugal, acompanhando a tragédia do casal que, vendo que nada podem fazer para evitar a desgraça que lhes abate, começam sutilmente a acusar um ao outro pelos monstros que geraram. Até que finalmente nasce uma filha perfeita, que os fazem temer sobre até quando ela continuará bem, antes que fique como os irmãos. Um conto complexo, trágico e violento em todas as formas (fisicamente, psicologicamente e narrativamente), com um final impressionante sangrento.

Só A Galinha Degolada já coloca Quiroga no panteão de grandes contistas latinos, mas a coletânea ainda apresenta outras pérolas obrigatórias. Uma delas é O Travesseiro de Penas, sobre uma frágil jovem que se casa com um sujeito duro, e que é acometida de uma estranha moléstia.

Em O Solitário, Quiroga revela-se uma espécie de Guy de Maupassant latino-americano, criando um conto com uma personagem que, na ânsia de ser rica, casa-se com um joalheiro. O problema é que ele é apenas um trabalhador sem tino para fazer fortuna, e isso a frustra cada vez mais, principalmente ao ter que conviver com as magníficas jóias que ele cria para os clientes. A comparação com Maupassant não é à toa, como o atento leitor compreenderá.

Em O Espectro, há uma ideia bastante original, com a criação de uma bela imagem. Creio que foi daqui que surgiu a inspiração para o argentino Julio Cortázar escrever seu conto Las Babas Del Diablo, que por sua vez inspirou o filme Blow Up – Depois Daquele Beijo, de Michelangelo Antonioni. No conto, um jovem ator morre antes da estreia de seu primeiro filme, e então a viúva e um amigo (que se amam e agora estão juntos) vão ao cinema conferir a obra. Sentindo-se culpados, notam que, em determinada cena do filme, o ator olha diretamente para eles, com raiva, como se estivesse vivo. A cada vez que vão ao cinema e assistem ao filme percebem que o ator chega mais perto da tela e os olha mais profundamente.

O Mel Silvestre trata de um assunto bastante particular para Quiroga: a saída da cidade grande para aventurar-se na selva. E a natureza, na obra do autor, não é nada amigável. Aqui o protagonista tem seu caminho cruzado por um batalhão de formigas carnívoras.

E finalmente A Câmara Escura comprova, para mim, que Cortázar era leitor de Quiroga. Um fotógrafo tira o retrato de um velho morto e se vê obrigado a encarar a câmera escura para fazer a revelação, onde a horrenda face do defunto emergirá no papel fotográfico. Um belo trabalho de aprofundamento psicológico é obtido aqui, e se a história de um fotógrafo às voltas com uma de suas fotografias não evocar Las Babas Del Diablo, então não sei mais o que podemos constatar.

Estes são os contos do livro, que servem como um apetitoso prato de entrada para se conhecer o magnífico autor. Além dos contos, também são interessantes os artigos Heroísmos, que ocupam metade da coletânea. Neles, Quiroga apresenta momentos marcantes da vida de ilustres personalidades, como Edgar Allan Poe e Louis Pasteur, o que estabelece um belo par com os contos. São histórias de superação e otimismo em meio a situações cruéis e difíceis, o que nos faz pensar mais uma vez na trágica existência de Quiroga. Parece que, no fim de tudo, apesar dos horrores e dramas que presenciou, ele queria dizer a todos que a vida vale mesmo por aqueles pequenos momentos de heroísmo que temos em nosso dia-a-dia, que podem ser demonstrados pela simples lealdade a um amigo, ou pela insistência em se acreditar nos próprios sonhos — isto quando tais atitudes são as mais difíceis e improváveis de serem tomadas por uma pessoa comum.

Neste aspecto, concluímos que os contos macabros de Quiroga traziam, sim, várias de suas frustrações, como a não-concretização de alguns amores, a falência de certos planos e a morte de muitas pessoas queridas. Mas ao escrevê-los, inconscientemente ele devia estar tentando dar um aviso aos incautos, para que continuem a observar o lado bom das coisas e a não desanimar perante as tempestades da vida.

Para adentrar mais profundamente no território selvagem de Horácio Quiroga, procure por Contos de Amor, de Loucura e de Morte, publicado no Brasil pela Record. Livro, aliás, que traz no título as principais obsessões do escritor, ainda que as palavras estejam em sentido inverso ao de predominância na sua obra.

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