Levantei e minha esposa já lia o jornal.
“Olha quem faleceu! Você não estudou com esse rapaz?”. Sim, eu havia estudado.
Não éramos amigos, mas passamos alguns anos na mesma turma, expliquei. “Ele
estava doente?”, perguntei. “Aqui não diz a causa da morte”, estranhou. “Então
foi suicídio”, falei. Eles não divulgam isso.
“Você devia ir ao velório, mesmo que não
fosse íntimo dele”, ela me disse. Não consegui respondê-la da forma como eu
queria, porque na verdade eu e o morto fomos próximos, sim. Mas não por minha
vontade. Ele me aterrorizava.
Nunca esqueci os olhares cínicos que ele
me dirigia quando sentava na carteira ao lado. Foi de sua boca imunda que ouvi
pela primeira vez a palavra “otário”. Tenho marcas até hoje pelo corpo, das
surras que me deu. Quando ele me atacava, eu não sentia tanta dor. Somente em
casa, na hora do banho, é que eu via os ferimentos, e eles ardiam quando a água
os atingia.
“Aqui diz que ele era casado com uma
médica”. Não, querida, ele não era casado de verdade. Viviam juntos, apenas. E
era por interesse de ambos, visto que ele não trabalhava, e ela era muito mais
velha. Nunca pensei em outra opção para ele, aliás. Vagabundo na escola,
vagabundo para o resto da vida.
“Você vai, querido? É na capela aqui
perto, e já vai começar. Se quiser, posso ir junto”.
Eu não perderia por nada. Vê-lo uma última
vez e perguntar, em pensamento, qual a sensação de ir pro inferno. Ele saberia
que eu estaria ali? Lembraria de tudo o que me causou? Ainda não enxergo muito
bem, por causa daquele soco. Nem quero saber se o fato de eu não poder ter
filhos está ligado aos golpes que recebi. E nada, absolutamente nada do que eu
sonhava naquela época se realizou, por eles terem acabado com minha autoestima.
Eles simplesmente mataram a criança que eu era.
“Tá bem, amor, então vamos. Só vou tomar
um banho antes”, falei. Ela estranhou: “Mas você já não tomou ontem, quando
chegou?”. Ela ainda não sabe que os meus banhos, desde o tempo em que eu lavava
aquelas feridas, não servem só para higiene. “É verdade! Acho que essa notícia
me deixou um pouco abalado, me desculpe”.
São vinte anos desde que vi meu primeiro
sangue escorrer pelo ralo. Uma pessoa só precisa de cinco minutos para se banhar,
mas desde aquele dia, eu levo quinze. Por dez minutos depois de limpo, eu fazia
planos. Foram dez minutos, trezentas e sessenta e cinco vezes ao ano, por vinte
anos. Sabe quanto tempo isso dá? O suficiente para elaborar o crime perfeito.
No velório, encontro os colegas. “Puxa,
em uma semana, este é o segundo da nossa turma”, lamentou um deles. “Você não
soube? O Jackson morreu no domingo. Da mesma causa”. É claro que eu sabia, mas tapo
a boca com expressão de espanto. “Os dois eram próximos, não?”, observo. “Será
que a morte de um tem a ver com a do outro?”.
Lançada a semente, a dúvida se espalhou.
Cidade pequena é assim. Em breve todos vão estar falando. E vão concluir que o
verdadeiro culpado pelas mortes foi o preconceito que impedia seu amor.
Antes do enterro, apelei: “Eles eram
grandes companheiros. Tinham esta aparência de brutamontes, mas no fundo eram
muito sensíveis. Várias vezes os vi se abraçando”. Aquela era a cereja no topo
da vingança que orquestrei em banho-maria.
Já em casa, saindo do boxe com o corpo e
a alma lavados, olho no espelho embaçado. “Pensaram que eu tinha esquecido?”,
penso, pegando a toalha. “Enquanto vocês achavam que viviam, eu sabia que já estavam
mortos. Da mesma forma que vocês acabaram com a minha vida na escola, eu tirei
a de vocês. Me chamem de otário agora”.
Mas sigamos em frente. Só espero que essas
duas formas no espelho não passem de manchas.
“Otário!”.
poderia me falar o autor, a obra de origem e a nacionalidade da história?
ResponderExcluirConto intrigante! Qta dor guardada, cultivada?
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