terça-feira, fevereiro 25, 2020

A Casa Queimada (L.F.Riesemberg)



Como todas as manhãs, estávamos jogando bola na rua, antes que nossas mães chamassem para o almoço. Naquele dia, o grito veio mais cedo. “Meninos, de onde será essa fumaça?”. Paramos o jogo para admirar a imensa nuvem negra que subia ao céu à distância, e logo outra voz feminina berrou a resposta: “É na casa da Lídia!”.

As crianças do quarteirão e suas mães, algumas em aventais de cozinha, fizeram uma cruzada até o local. Eu estava tão animado com a novidade que mal chutei as pedras no caminho. Quando chegamos, já havia se formado uma multidão em volta. Muitos olhares admiravam o fogo, que comia vorazmente a velha habitação de madeira.

“Meu Deus, que pena!”, repetia minha mãe, com um olhar de terror. Vi outras expressões de tristeza entre os espectadores, e frases ditas como pêsames em um funeral. Eu não entendia como aquele espetáculo causava tais reações. Era uma visão tão linda! Labaredas laranjas roíam paredes, estouravam vidros, reduziam móveis a pó, e a fumaça levava tudo para o céu. Nenhum circo ou parque de diversões se comparava!

“Era a casa do Tite”, disse um dos meus amigos. “Vocês andam com ele?”, perguntou minha mãe. “Não, ele é só um garoto da escola”, respondi, imaginando se ele teria morrido queimado. “Graças a Deus não tinha ninguém em casa”, ouvi uma voz atrás de mim. “Mas eles perderam tudo o que tinham”. E outras vozes surgiam aqui e ali, indicando as causas do acidente e o destino dos moradores.

“Vamos indo, não tem mais nada pra ver”, disse ela, me puxando. Mas eu queria ficar. Ainda havia muita coisa para ver. Nem todas as paredes tinham tombado. Muita madeira ainda arderia. “Isso não é divertido, filho. Imagine se fosse conosco”.

Voltei contra a vontade, sem conversar. Queria ter ficado mais.

No dia seguinte passamos na frente das cinzas. Ainda tinha fumaça. “Será que está quente?”, perguntei. Minha mãe me olhou preocupada. “Não se atrevam, você e seus amigos, a virem brincar aí. É perigoso!”. Eu não entendia que risco poderia haver, se o fogo já estava apagado. “Os fantasmas que começaram o incêndio ainda estão por aí”, disse ela.

Eu nunca imaginara espíritos incendiários. Mas passei a vê-los entre as cinzas, e pedi para irmos embora logo. Não dormi naquela noite, nem nas seguintes, pensando se aquelas criaturas também tentariam queimar tudo o que tínhamos. Pedi para ela ficar comigo no quarto, até que eu pegasse no sono.

Os anos se passaram, e sempre que ouço a notícia de um incêndio lembro daquela manhã, e penso na minha mãe. Hoje viajei para visitá-la. Antes passei em frente ao terreno. Outra casa foi construída tempos depois, mas tudo o que enxergo é o fogo, com seus demônios gritando ensandecidos, vendo tudo queimar.

Quando a enfermeira nos deixa a sós, ofereço-lhe uma colher de sopa. “A senhora lembra quando aquela casa pegou fogo? Nós fomos a pé assistir”.

Seus olhos expressam dúvida.

“Tudo bem, mãe. Já faz muito tempo”.

Ela sorri por educação, mas não sabe do que estou falando.

Não consigo evitar uma lágrima.

“Sou seu filho. Até de mim a senhora esqueceu?”.

Os fantasmas finalmente vieram, mas isto arde mais que o fogo. Perdemos tudo o que tínhamos. Não restou nada...

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