Isso aconteceu em meados dos
anos 80, em minha cidade natal. Numa época em que os góticos estavam na moda.
Quando as bandas que mais tocavam nas rádios eram o A-ha e o INXS. No tempo dos
mullets, dos jogos de Atari e das fichas de orelhão. Quando os noticiários
falavam muito de Aids, Guerra Fria, Ronald Reagan e Glasnost.
Naqueles dias, ainda morando
com meus pais, eu gostava de ficar assistindo TV até a madrugada. Acompanhava o
tardio programa de entrevistas, e depois os filmes da sessão coruja. Por várias
vezes fiquei desperto até tarde, sabendo que eu certamente era o único morador da
cidade com os olhos abertos.
Naquele tempo, muito diferente
de hoje, havia apenas um, ou com sorte dois canais para se assistir. E em
determinada hora, normalmente depois das duas da madrugada, a programação do
dia simplesmente chegava ao fim. Com uma vinheta, a emissora agradecia a
audiência e se despedia dos raros telespectadores ainda acordados, saindo do ar
logo em seguida, para dar lugar a algumas horas de chuviscos brancos na tela.
Veja bem, não havia
computadores com internet, ou celulares, nem canais via satélite. O sinal local
de televisão era a única fonte eletromagnética que chegava até as nossas casas.
Quando interrompido, não sobrava mais nada adulterando a atmosfera. E então,
junto com a temporária suspensão dos canais de TV, eu sentia uma espécie de
alívio que nunca havia experimentado.
Era para desfrutar daquelas duas
ou três horas de paz que eu me mantinha acordado até tão tarde: ao menos
durante aquela pequena fração do dia, não se sofria qualquer efeito dos raios
invisíveis que a televisão fazia implacavelmente cair sobre nós. Mais tarde,
por volta das cinco da manhã, as coisas voltavam ao normal, com o início da
programação de um novo dia (iniciada com um clipe de Imagine, do Lennon).
Mas naquele vácuo, entre o
término de uma programação e o início de outra, eu sabia que o mundo – ao menos
o meu mundo, composto por aquela pequena cidade – era um ambiente seguro, com o
ar idêntico àquele que nossos antepassados respiraram. Naquela hora da noite eu
podia viver como nos longínquos tempos em que a vida dos indivíduos era
dirigida pelas estrelas no céu – e não por antenas de transmissão.
Assim que a programação se
encerrava, notava-se até mesmo um pulsar mais intenso da natureza. O canto dos
grilos aumentava consideravelmente, e a lua parecia até três vezes maior. Certa
vez vi pela janela uma nuvem de vagalumes piscando com perfeita sincronia, em
cores que eu jamais tinha visto.
Mas apesar de toda a beleza
daquele momento, a mudança mais radical acontecia dentro de mim mesmo.
É difícil explicar a sensação
que eu tinha naquelas horas. Dentro do meu quarto, eu ficava olhando minhas
próprias mãos sob a meia-luz do abajur, admirando até os poros da minha pele. Era
quando eu sentia que estava vivo de fato. Que eu existia de verdade, entende? Talvez
você não entenda, mas alguém me compreendia, como fui descobrir.
Certa noite, aproveitando os prazeres
noturnos ocasionados pela ausência do canal da TV, aparentemente fui chamado
para fora de casa. Não sei precisar se ouvi meu nome com a audição ou através
de algum sexto sentido, muito aguçado àquelas horas, mas sei que atendi ao chamado e
me dirigi à rua deserta.
Andei tendo meu caminho
iluminado pelos astros no céu, que lembravam enormes diamantes, e extasiado notei
que as árvores nas calçadas dormiam, respirando com gentis movimentos nos galhos,
imperceptíveis a outra hora do dia.
Caminhei anestesiadamente
pelas maravilhas que a mim se revelavam, até encontrar um outro alguém que,
como eu, gozava daquelas benesses. Ele saiu do meio da folhagem, úmida de
orvalho, e me estendeu a mão rugosa.
Sei que é difícil acreditar.
Eu mesmo não entendo como aceitei aquela visão à minha frente, mas hoje estou
certo que o hábito (de aproveitar aqueles momentos em que a natureza parecia
realmente liberta) transformara-me. Eu já não era uma pessoa comum. Eu havia me
juntado a eles, os seres que habitavam aquela outra dimensão.
Fui levado a uma pequena
reunião no meio de um bosque na minha rua, o qual eu estranhamente nunca havia
notado. Estavam ali, em círculo, pequeno grupo de criaturas mágicas, cuja
descrição foge à minha capacidade linguística.
“Quem são vocês?”, perguntei. “E
por que fui chamado?”
O ser que parecia o líder
adiantou-se, respeitosamente, e disse tudo o que eu precisava saber, sem usar
uma palavra sequer. Novamente, talvez pelo fato de estar me habituando a
permanecer naquela região suspensa das leis naturais, eu experimentava faculdades
que jamais pensara possuir. Naquele momento, a telepatia.
“Meu amigo, seja bem vindo”,
disse ele, reverberando diretamente em minha consciência. “Estamos honrados em
tê-lo dentro de nosso pequeno grupo. Há muito tempo o observamos e
aproveitávamos sua boa energia para a manutenção deste mundo”.
Eu estava confuso, mas ao
mesmo tempo todas minhas dúvidas eram por ele esclarecidas, antes mesmo que eu
as formulasse em minha cabeça.
“Infelizmente não há tempo
para explicações. Neste exato momento, um grave conflito humano ocasionou o
lançamento de diversas ogivas nucleares, que aniquilarão a maior parte da vida
do seu planeta nas próximas horas. Os sobreviventes terão um resto de vida
bastante penoso, em face às condições precárias que esta Terra encontrará a
seguir”.
“Como não temos capacidade de
fazer este anúncio para todos, estamos o fazendo àqueles que mantêm um mínimo
de conectividade com os nossos, e que portanto podem nos ouvir. Você era o
único nesta região”.
“Estamos te oferecendo uma
oportunidade. Veja, esta porta está disponível para que deixe este mundo, antes
que seja destruído”.
À minha frente vi surgir uma
porta aberta, com grande luminosidade vindo dela. Perguntei-me se não estava
sonhando, olhando para aquelas criaturas fantásticas e para a porta que surgira
espontaneamente, no meio das árvores.
Antes de dar qualquer passo,
interroguei: Aonde ela vai me levar? E rapidamente entendi que eu estaria
seguro em outra morada, dentre tantas existentes no multiverso.
"Multiverso"?, questionei.
Pacientemente, ele me explicou com uma simples analogia: "É como os canais da TV: enquanto você assiste a um programa, há outros sendo exibidos na emissora concorrente. Só por que você não os está vendo, não significa que não existam. A vida é assim, com diversos canais, e não só este que você assiste desde que nasceu".
Carente de tempo para pensar,
percebi que algumas daquelas criaturas já estavam se adiantando para o outro
lado da porta. E então, com minha sensibilidade aumentada, tive um
estremecimento, como se o planeta estivesse à beira do colapso. Foi a primeira
vez na vida que realmente senti medo.
“Posso levar algumas pessoas
comigo?”
Eu não podia, pois mesmo que
houvesse tempo para isso, elas não passariam pela porta. Sequer notariam a existência dela, por faltar-lhes sintonia com aquele mundo.
E se eu não me adaptasse ao
outro lado?
“Não se preocupe”, disse-me
meu benfeitor. “Você será alocado em um plano muito parecido com este, porém
com algumas modificações. Pode-se dizer que lá é uma realidade alternativa
desta que conhece, onde encontrará muito daquilo que possui aqui. Um dia você
compreenderá como funcionam as dimensões paralelas. Afirmo que não há com que
se preocupar. Aproveite sua chance”.
Ele me passou extrema
confiança, e foi assim que resolvi cruzar a porta. Grande estremecimento a
travessia me causou, e assim que me encontrei do outro lado fui tomado por
intensa vertigem que me fez tombar sobre meus joelhos.
“Tudo bem, isso logo vai
passar”.
Olhei ao redor e estava de
volta ao meu quarto, caído no chão, diante da TV iniciando a programação diária
com a canção Imagine – que era a mesma que eu já conhecia, salvo algumas
pequenas diferenças na melodia.
Olhei pela janela, com os
primeiros raios de luz anunciando o dia, e compreendi que o mundo não tinha
acabado. Tudo estava quase idêntico ao dia anterior. “Puxa, que sonho maluco eu
tive”, cheguei a pensar. E quando confirmei que todas as coisas importantes estavam
no lugar, fiz questão de aproveitar a companhia das pessoas com quem eu mais me
importava, e de prestigiar os pequenos prazeres da vida.
Já se vão trinta anos dessa
história. O que me fez recordá-la hoje foi um sonho que tive, noite passada. Nele,
eu havia encontrado outra porta, exatamente como aquela, e decidi abri-la, apenas
para vislumbrar o mundo do outro lado. Quem sabe lá haveria um lugar melhor?
Mas a visão que tive me abalou intensamente, pois vi um mundo totalmente
devastado, sem céu, coberto por uma neblina cinzenta e habitado por humanos
convertidos em selvagens.
Até agora estou sem saber se
foi tudo um sonho, ou se, muitos anos atrás, eu escapei de uma realidade para
ingressar nesta que estou vivendo hoje, junto com vocês. Se isso aconteceu
realmente, minha consciência dói por saber que as versões dos meus amigos e da minha
família do lado de lá amargaram uma triste sorte, e talvez penem até hoje, caso
ainda vivam.
Infelizmente, por mais que eu
me esforce, hoje não consigo me conectar com nenhuma criatura de outra
dimensão, nem viver nada daquela natureza especial, já que agora os raios
eletromagnéticos estão distribuídos no ar durante as vinte e quatro horas de
todos os dias.
Porém, quando tenho a
oportunidade, vou até um campo afastado de tudo e me cerco apenas de árvores,
onde fecho os olhos e deixo-me invadir por aquele silêncio suave que pude
experimentar nas madrugadas dos anos oitenta. E só então sinto-me conectado com algo maior,
esplendoroso, que me faz ter a certeza de que o mundo não é só este em que vivemos,
e que há, certamente, muitos lugares desconhecidos a se explorar, muitas
versões de nós mesmos e - mais do que tudo – muitas lições perdidas a se
aprender, eternamente, na roda da vida.
Adorei. .
ResponderExcluirMuito bom!
ResponderExcluirNão me canso de ler seus textos. Grande imaginação, ótima escrita. Parabéns!
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