sábado, janeiro 14, 2012

O Guarda-Chuva (L.F. Riesemberg)

   

    Sem que ele desconfiasse, começamos a chamá-lo de “reloginho suíço”. Não só pela pontualidade quase doentia que mantinha em todos seus compromissos, mas também pelo metodismo exagerado que demonstrava nas mais simples atividades.
    Ele vivia com a roupa muito bem passada e engomada, e os sapatos impecavelmente engraxados. Ia ao barbeiro aparar o cabelo e as costeletas sempre nas primeiras sextas-feiras de cada mês. E o simples ato de caminhar na rua era carregado de uma pomposidade imensa, como se cada movimento fosse devidamente premeditado.
    Ele devia ser feliz assim, mas o achávamos antiquado demais, um chato. O pior era ouvir seus discursos intermináveis, quando ele achava estar agradando a todos com sua insuportável verborragia.
     Às vezes imaginávamos como seria na intimidade do lar, com a esposa. Devia tratá-la por “senhora”, e teria chiliques se descobrisse um amontoadinho de pó sobre a prataria na sala de estar. Essas suposições sempre nos causaram muitos risos.
    Todos tolerávamos seu jeito, mas daquela vez estávamos dispostos a colocar em prática um plano antigo, criado provavelmente em um momento de exageros alcoólicos, e aperfeiçoado a cada nova conversação sobre o tema: queríamos lhe pregar uma peça, para — pelo menos um dia na vida — vir abaixo toda aquela perfeição desesperada com que fazia cada gesto.
    Depois de muito divagar em segredo, o convidamos para um jantar na residência de um dos convivas, com o falso intuito de servir de despedida de estimado colega, que faria uma longa viagem.
    Marcamos para as vinte horas, como sempre, mas toda a turma já estava reunida muito antes, preparando as surpresas daquela noite.
    Às vinte horas em ponto, tocava a campainha do local da reunião.
    O sujeito foi recebido pelo mordomo, que recolheu sua capa, o chapéu e o guarda-chuva, depositando-o ao lado da porta. Esta era outra de suas características mais irritantes: a simples presença de uma nuvem no céu fazia com que ele carregasse, onde fosse, aquele enorme guarda-chuva pontudo debaixo do braço. Era um guarda-chuva preto, mal humorado, que parecia estar sempre trazendo más notícias.
    Imagine qual foi a surpresa do nobre homem ao reparar o grande relógio na parede da sala, marcando vinte horas e trinta minutos.
    Ele deu uma olhada em seu relógio de pulso. Vinte horas e um minuto.
    Foi conduzido, confuso, até a sala de jantar, onde observou uma mesa farta, com toda a turma reunida à sua volta, animada, já apreciando o prato principal.
    — Olha só quem apareceu atrasado! Achamos que nem vinha mais! — bradou um dos nossos companheiros mais exaltados, dando a entender que o vinho já havia sido aberto há um bom tempo.
    — Parece que vai chover mesmo! Nunca o vimos se atrasar assim! — disse um outro.
   
    Envergonhadíssimo, o convidado pediu as mais sinceras desculpas.
    — É a primeira vez que isso me acontece. Preciso levar meu relógio ao conserto. Vejam só: marca dois minutos após as vinte!
    Vários dos homens à mesa olharam para seus próprios pulsos.
    — Vinte e trinta e dois no meu.
    — No meu já são trinta e quatro.
    — Ah, deixa para lá! O importante é que você veio se despedir de mim! Venha, puxe uma cadeira e sente conosco!
    Ainda de certo modo contrariado, o convidado comentou:
    — Eu posso jurar que o relógio estava funcionando muito bem ainda hoje. Não fossem as nuvens no céu, eu diria a hora exata só pela posição das estrelas, e chegaria no horário marcado.
    Alguns riram do exagero, mas mais da metade ficou em silêncio, sabendo que o comentário não era tão absurdo assim, partindo da boca de onde veio. Com tempo bom, a brincadeira estaria acabada.

    Nós sabíamos que ele gostava de sentar-se sempre com muito espaço livre de ambos os lados, para não lhe prejudicar os movimentos ao servir-se. Foi por isso que deixamos a única cadeira vaga entre os dois homens mais encorpados do grupo.
    A vítima da peça ficou espremida, mas esforçou-se para sorrir assim mesmo, mantendo a classe. 
    — Eu é que peço desculpas agora — disse o anfitrião. — Como achávamos que você não vinha mais, mandei retirar os talheres.
    Deu a ordem ao criado.
    O mordomo trouxe o necessário à mesa, mas havia uma grande impressão digital na taça, e os talheres foram depositados displicentemente, um tanto tortos, de propósito para irritar o metódico convidado.
    Toda a turma permaneceu em silêncio, observando o homem servir-se, cada vez mais tímido. Aos poucos cresciam pequenas gotas de suor em suas têmporas, e um leve rubor surgia em toda a face.
    Os arquitetos do plano já riam internamente, e começavam a dar-se por satisfeitos, vendo que tudo estava indo às mil maravilhas. Mas ainda haviam preparado mais para o colega.
    Depois do jantar, quando foi dado um tempo nas brincadeiras, para não constranger demais o pobre homem, os cavalheiros levantaram-se e dirigiram-se à sala.
    O dono da casa trouxe uma fina caixa de madeira e abriu a tampa, mostrando uma série de charutos cubanos. — Vamos experimentar essas maravilhas! — disse.
    Cada convidado foi retirando uma peça da caixa, e já acendendo. Ao amigo esquemático só restou o último charuto, aceito com a insistência dos outros, que queriam vê-lo descer, ainda mais, de seu pedestal de elegância e pedantismo.
    Conversávamos, entre muitas baforadas, sempre procurando deixar o “reloginho suíço” no centro das atenções. Ele divagava a respeito de questões políticas da sociedade quando, ao interromper a fala e colocar mais uma vez o charuto na boca, um estalo o fez arregalar os olhos de espanto e ruborizar totalmente. A ponta do charuto que fumava havia explodido, e desta vez muitos comparsas não detiveram o riso, entregando-se.    
    A vítima das brincadeiras ainda estava transtornada pelo susto, sem querer acreditar que adultos daquela classe seriam capazes de tamanha infantilidade. Começou a tossir, engasgado pela fumaça que engoliu sem querer durante o estouro.
    Um dos homens pediu ao mordomo que trouxesse uma taça de vinho ao homem.
    — Desculpas, meu companheiro — disse o anfitrião. —Eu tinha esse charuto explosivo guardado há meses, e não pude evitar! — e ria. — Eu não podia imaginar que logo você era quem ia ficar com ele. Todos aqui eram vítimas em potencial!
    Eles estavam rindo, e o criado trouxe o vinho.
    O respeitoso homem, visivelmente irritado com a perturbação que sofria naquela noite, levou a taça à boca. Já nem foi tanta surpresa sua quando notou que o vinho escorria pelo queixo e seguia pelo peito, manchando-lhe a camisa.
    Outra explosão de risos.
    Haviam lhe pregado mais uma peça, desta vez com uma daquelas velhas taças furadas.
    Isso foi o ápice para que perdesse a paciência. E esse era o objetivo dos colegas.
    — Eu não posso acreditar que os senhores tenham perdido tempo com essas imbecilidades — dizia, ainda menos contido que antes.
    Levaram-lhe uma toalha para que se enxugasse, mas ele a recusou. Em vez disso continuou, áspero:
    — Não acredito que perdi meu precioso tempo vindo até aqui, para ser joguete de vocês, seus sátiros!
    O riso dos colegas já era menos de diversão, e mais para dissimular o mal estar. De qualquer forma era curioso vê-lo irritado, disparando aquelas frases. Esta poderia ser a única vez que presenciávamos tal cena. E de fato foi mesmo.
    Sem querer ouvir os risos, as desculpas e o “deixa-disso”, o cavalheiro dirigiu-se direto à porta, atravessando a barreira formada pelos irritantes amigos, sem sequer olhar-nos no rosto. Antes de sair, o mordomo lhe entregou um chapéu e um casaco que não eram seus — o toque final planejado pelos companheiros. De tão aborrecida que estava, a vítima nem percebeu e os vestiu assim mesmo. Mas não esqueceu de puxar o famoso guarda-chuva que estava encostado na parede, e saiu com ele debaixo do braço.
    Rimos de mais esta última situação, e fizemos um brinde ao sucesso do plano.

    Na manhã seguinte, o anfitrião do jantar — e principal mentor do plano — recebeu um telefonema.
    Não conseguiu acreditar na notícia que estava recebendo, e a princípio achou tratar-se de uma vingança do “reloginho suíço”, depois das barbaridades que havia sofrido em suas mãos.
    — É verdade mesmo. Ele morreu — afirmou um dos convivas.
   
    Tinha certeza de que, assim que chegasse à casa do amigo, para o velório, descobriria toda uma farsa armada. Estaria o metódico velho finalmente demonstrando senso de humor?
    — Eu não vou conseguir dormir em paz, depois do que fizemos, se isso for verdade — dizia a maioria dos cavalheiros que estavam no jantar da noite anterior.
    À hora marcada para o velório, o grupo de colegas que pregou a peça estava na casa do amigo. Caixão, coroas de flores, uma viúva chorando e pessoas de preto. Parecia mesmo um velório real. Ainda mais com aquele defunto estirado rígido, trajando luxuoso terno, com os dedos entrelaçados sobre o peito e algodões nas narinas.
    Era mesmo ele. Mas estávamos esperando que, a qualquer minuto, se levantasse daquele caixão, tentando pregar um enorme susto. Ficamos olhando atentamente, por muito tempo, para seu rosto imóvel.

    Só isso. Nenhuma peça pregada.
    Ou talvez tenha sido aquela a grande peça que ele armou para vingar-se, morrendo de verdade.
       
    Os colegas ficaram um bom tempo sem conversar depois do acontecido, até que finalmente marcamos outro jantar, meses depois, no horário de sempre.
    Era uma noite nublada e nevoenta.
    Um tanto incomodados, tocamos pouco no assunto.
    Às vinte horas e trinta minutos, no meio do jantar, a campainha tocou.

    — Não havia ninguém na porta, senhor — informou o criado. — Devia ser alguma criança brincando. Ou então, os senhores sabem, o vento...
   
    Na hora da despedida, um dos presentes observou algo no chão, ao lado da porta, e perguntou, assustado:
    — De quem é este guarda-chuva?

4 comentários:

  1. Muito legal este conto! Tem um final que eu não esperava! Lendo imaginei diversos finais, mas nenhum com este mesmo desfecho. Adorei!

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  2. muito bom mesmo, ótimo livro, com ótimos contos

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