Finda a última batalha pelo controle do planeta, o Diabo comemorava a conquista junto de seus mais bravos asseclas. Afinal, foram seis milênios de guerras sangrentas entre anjos e demônios, sem que os confusos humanos entendessem o que se passava no reino invisível. Agora, milhões de emissários do Mal aguardavam a abertura das portas do Inferno, a fim de promover o Caos e a Destruição na superfície do orbe terrestre.
Contudo, uma assembleia urgente fora marcada entre a cúpula das regiões infernais, para que finalmente fosse decidido o destino da Terra. Estavam sentados em torno de uma grande mesa oval os principais correligionários das sombras, liderados por Satã, que deu início à palestra:
— Meus caros: todos que estão aqui reunidos foram de grande valia para o êxito de nossa missão. Antes de tudo, meus mais sinceros agradecimentos.
E fez um gesto triunfal ao brindar com uma taça de sangue.
— Agora que estamos no poder, urge trabalharmos ainda mais, para que nossa luta não tenha sido em vão. Precisamos entrar em acordo sobre qual será a primeira medida a ser tomada neste novo cenário universal que desenhamos.
Nisto, uma unhona levantou-se na outra ponta da mesa, e todos os maléficos olhos da sala voltaram-se para seu dono — um dos generais da armada satânica.
— Meu Senhor — disse ele, respeitosamente. — Proponho um ataque ambiental em massa, fazendo com que todos os vulcões eclodam simultaneamente, ao mesmo tempo em que terminamos de destruir a camada de ozônio. A fraca humanidade não resistiria ao colapso, e em curto prazo estaria exterminada pela própria natureza. Para os
reduzidos sobreviventes só restaria um mundo primitivo, onde os instintos voltariam a imperar sobre a Razão.
Houve um pequeno foco de tumulto ao fim da polêmica exposição do militar, com várias panelinhas discutindo a alternativa citada, até que o Diabo teve que intervir com um forte murro na mesa, clamando que todos se calassem.
Instaurada a ordem no recinto, Satã afirmou:
— O argumento é válido, porém distante do que pretendo. Não queremos uma destruição rápida, mas sim uma generalização do caos em todos os níveis. É uma tarefa de mais longo prazo do que mera aniquilação maciça. Alguém tem outra proposta?
A Peste, que ocupava um lugar mais próximo ao Mestre das Sombras, deu seu palpite:
— Sugiro que liberemos um vírus não mortal que se alastre de forma epidêmica em tempo recorde. A intenção não seria destruir a vida, mas espalhar o medo e o preconceito com os doentes, de modo a gerar conflitos tanto em níveis familiares como diplomáticos. E assim que os cientistas encontrassem uma cura para a doença, subverteríamos todas as regras da Medicina e criaríamos outras viroses, cada vez mais potentes. Seria uma boa oportunidade para instigarmos o que a humanidade tem de pior e, assim, promover a desordem total!
Ao ouvir a explanação, a astuta Avareza também contribuiu:
— Concordo com o colega, nobre Satã. E tem mais: uma crise na Saúde mundial também afetaria as bolsas de valores, ocasionando a falência de milhares de instituições financeiras. Uma onda de desespero tomaria conta dos indivíduos mais materialistas, tão escravizados que estão pelo dinheiro e pelo poder. Aposto como não demoraria nada para ter início uma onda de suicídios em série!
Ao ouvir aquelas palavras, o Diabo alisou a barbicha, parecendo refletir por alguns momentos. E então manifestou-se:
— Não deixam de ser boas estratégias, meus companheiros. Podemos até começar a pôr em prática um protótipo desta experiência, em alguns países. Mas acredito que temos que estabelecer menos alarde.
Insatisfeitos com a difícil tomada de decisão por parte do chefe, mais uma vez os falangistas da Escuridão passaram a deliberar sobre o assunto, até que a Luxúria, do alto de suas botas de couro, emitiu com sua característica voz sensual uma resolução que lhe parecia bastante agradável:
— Ora, temos que aproveitar as tecnologias humanas para conseguir nosso intento. A meu ver, um plano infalível seria promovermos uma nova revolução sexual, disseminada através da pornografia na Internet e de mensagens subliminares na mídia. E nesse aspecto não podemos subestimar o potencial dos pequeninos. Quanto mais jovens eles estiverem expostos às tentações da carne e dos prazeres efêmeros, melhor. Dentro de pouco tempo as famílias da Terra começariam a ser corrompidas, e os principais divulgadores dessa implosão seriam justamente aqueles que acreditam ser os mais livres! Não tem como isso dar errado.
Houve muitos comentários elogiosos após a intervenção da moça, oriundos de emissários do Mal que não desviavam os olhares dos generosos atributos físicos da diaba. Na verdade a maioria dos mortais acharia o aspecto dela mais perturbador do que atraente, mas aqueles seres estavam sintonizados em uma faixa mental muito mais densa do que a dos humanos.
E o Demônio ainda não parecia tão convencido.
— Essas são medidas rotineiras que nunca devemos subestimar — disse. — Porém, deve haver algo ainda mais sutil. Algo que seja inerente ao ser humano, para que possamos simplesmente agir sem que ninguém suspeite.
Um clima geral de impaciência se apossava do ambiente. Todos os habitantes das profundezas, incluindo aqueles líderes reunidos, não queriam esperar mais um minuto sequer para o ataque à Terra. E arrebentando o colar de crânios que adornava seu pescoço, a Fúria, sem conseguir aturar o metodismo de Satã, levantou-se irada da cadeira e lhe apontou as garras:
— Esse é o problema — gritou. — É por sua causa que levamos tanto tempo para vencer a guerra! Agora chega! Eu quero fazer as coisas do meu jeito! Por que não abre logo as portas e libera a todos nós para agirmos?
O Diabo manteve a calma diante da cena, já acostumado com as agruras daquela seguidora, e decidiu explicar melhor sua visão.
— Amigos, é necessário uma estratégia mais profícua. Vivemos um momento delicado, de transição, e uma crise muito grande entre os humanos poderia ter efeito reverso. Nossa ação deve ser imperceptível aos olhos daqueles seguidores do Cordeiro. Tudo o que não queremos agora é um séquito de arrependidos bradando por Deus, clamando por Sua volta do exílio. Vocês bem sabem que, se eles começarem a se manifestar de forma conjunta nesse sentido, todo o nosso trabalho de séculos estaria perdido.
A Fúria pareceu compreender a situação, em partes, e acalmou-se. Visivelmente preocupados ao admitirem a possibilidade lançada pelo Demônio, todos os outros passaram um tempo confabulando novas ideias enquanto não surgia uma solução definitiva.
Foi dessa maneira por alguns momentos, até que a Esperança, que havia se mantido em silêncio, levantou-se e impôs a derradeira manifestação daquele encontro:
— Não é preciso tanta preocupação, meu Senhor. Eu resolverei tudo.
Alguns componentes da mesa lançaram olhares desconfiados, já que sempre consideraram aquela companheira uma impostora infiltrada na organização. Ela continuou:
— Que abram os portais! Que sejam libertas a Peste, a Fome, a Guerra e todos os outros tormentos. Antes que o pavor tome conta dos mortais, espalharei entre eles o boato de que tudo vai dar certo no final e de que não é preciso fazer nada para que se livrem dessas misérias. Os humanos têm a tendência, por preguiça, de não acreditarem que nós existimos e sempre acham que alguém virá salvá-los. Esperançosos, não tentarão impedir a ação demoníaca no mundo deles, e serão culpados pela própria flagelação.
O Mestre das Sombras finalmente sorriu satisfeito e exclamou:
— Agora sim descobrimos o melhor caminho.
E liberou a abertura do Portal.
Pouco depois, uma turba de soldados grotescos atravessava o umbral que separava a Terra do Inferno, muitos carregando chicotes e pesados tridentes. Era uma multidão de seres das sombras que passavam entoando cantos de guerra malignos, alguns sendo puxados por cães de três cabeças, outros voando nas costas de dragões vermelhos. Vampiros, misteriosos homens de negro carregando valises, fantasmas e cavaleiros hediondos: todos seguindo em marcha rumo à superfície do planeta.
Aquele era o Êxodo das Trevas.
O início de um novo tempo.
Até a Esperança? O..O
ResponderExcluirGostei, parabens mesmo...