sábado, janeiro 14, 2012

A Lei de Lavoisier - aplicada à Arte (L.F. Riesemberg)

“Você vai me desculpar, mas não podemos aceitar seu conto. Achamos que ele ainda não está amadurecido o bastante”.
    J.G. não suportava mais ouvir as desculpas dos editores das revistas nas quais tentava publicar.  
    “Mas não desista. Tenho certeza de que você vai criar uma ótima história se continuar tentando. Você não vai desistir de escrever, vai?”.
    O escritor aspirante tinha dezenas de contos escritos e apenas em raros casos era recebido pessoalmente por um editor. Geralmente nem chegavam a lhe dar uma resposta sobre o que haviam achado do trabalho que enviara.
Em algumas poucas vezes chegava a receber um telefonema ou uma carta com um categórico “não”.
     E esta sua entrevista com um dos homens grandes do setor editorial não havia sido muito feliz, para variar.
    “Rapaz, a minha dica para você é que tente ser mais original. Procure colocar algo da sua própria vida no papel, e não só aquilo que lê em outros livros, saca?”.
    O cretino queria parecer jovial com aquele “saca”.
    “Obrigado, senhor. Vou procurar fazer isso nos próximos contos”.   
    Vou uma ova!, pensou, quando deixava o setor de publicações externas da grande revista literária, que todo mês aceitava um conto de escritores novatos.
    Seria ótimo ter seu nome conhecido em nível nacional agora que estava prestes a terminar o primeiro romance. Mas, com a recusa da revista, teria que se virar sem qualquer publicidade.     
    “Talvez meu talento não seja para histórias curtas”, consolava-se. Mas o romance que estava escrevendo teria um estilo gótico que atrairia tanto fãs de histórias românticas como das de terror. Ou pelo menos é isso que poderia ser, se concluísse a obra.
Mais de trezentas páginas já estavam escritas, só que ainda faltava dar uma guinada na reta final. Há duas semanas tentava ter uma nova ideia para mais um capítulo, mas ela recusava a aparecer em sua cabeça. Nas últimas vezes em que sentou-se para escrever, o máximo que conseguiu foi colocar a ponta da caneta sobre o papel. A mão ficava parada sem escrever uma só frase completa, para sua decepção.
Permanecia assim, sem produtividade, por horas. Às vezes olhava para o céu, através da janela do apartamento, em busca de inspiração, mas isso acabava o distraindo e o distanciando ainda mais da história que queria criar.
    Dizia que daria a alma para ter uma ideia mirabolante e original, que deixasse ele mesmo satisfeito e surpreendesse seus leitores — e editores.
    Não que fossem ruins os textos que escrevia. Mas achava que eram por demais evidentes as influências de outros autores em sua obra. Como o velho da revista tinha percebido, ali em suas histórias constava muito do que já lera em tantos outros livros.
    Este seu romance de estreia, por exemplo, estava ficando ótimo, segundo sua própria e exigente opinião. Mas era óbvio que, mais cedo ou mais tarde, os leitores notariam as fortes influências de O Retrato de Dorian Gray. Alguns críticos até o acusariam de plágio, e nunca dariam importância a um escritor que começa a carreira dessa péssima forma.
    Mas não era plágio coisa nenhuma: tratava-se de uma mera coincidência. Quando o romance já estava quase pronto, depois de cuidadosamente planejado por meses, é que o autor foi perceber: inserira elementos que, muito claramente, remetiam ao clássico de Oscar Wilde.
Para certificar-se de que os outros realmente notariam esse deslize, mostrou os primeiros capítulos a um colega, conhecido pela absurda sinceridade. Dizem que entregar um trabalho seu a um crítico dá a mesma sensação de entregar seu bebê nas mãos de um canibal. E aquele canibal percebeu a falta de originalidade assim que bateu os olhos no texto: “Olha, está muito bem escrito, mas acho que você devia ser mais autêntico. Mais ousado. Quem é que vai querer uma cópia, podendo ler o original?”.
    O escritor entendia a opinião do amigo e concordava, mas achava um desperdício jogar fora tanto tempo de trabalho duro em cima dos manuscritos. Seu livro não era uma apropriação indevida da criatividade alheia. Ele não era um ladrão ou um imitador: era um artista. Se eu escrevesse sobre vampiros seria acusado de copiar Drácula? É claro que não!, pensava. Segundo ele, todos deveriam aprender que a lei de Lavoisier também pode ser aplicada à Arte. Nada se cria. Nada se perde. Tudo se transforma.
    E continuava ali, segurando a caneta, parado, pensando, ainda sem conseguir atrair a inspiração para algo realmente novo. As coisas só tendiam a piorar quando chegavam àquele ponto.
    Na revista, o editor havia dito para colocar algo de sua própria vida nos textos. Mas colocar o que? Seu gênero não era realista: era fantástico. Como é que poderia acrescentar sua realidade a uma história que envolve fantasmas e monstros? Nunca havia visto um para descrevê-los, então era inevitável que o fizesse de uma forma semelhante à que outros escritores já tinham feito.

    Naquela tarde, antes que ficasse deprimido pelo bloqueio mental por que passava, J.G. saiu e foi dar uma volta, ainda em busca da inspiração perdida. Seus passos o levaram pelas ruas até o grande e imponente prédio da Biblioteca.
    E existe lugar melhor para se pensar?
    A Biblioteca era um ambiente inspirador por dentro e por fora. Sua arquitetura gótica, cheia de gárgulas carrancudas protegendo a construção, e seu acervo com dezenas de milhares de livros - dos mais diversos gêneros - a tornavam um verdadeiro oceano vivo de imaginação.
    Subiu muitos lances de escadas e percorreu, em silêncio, alguns corredores, até atingir o centro daquele seu velho conhecido depósito de obras maravilhosas: a seção de Literatura.
    Nos fundos do salão ficava um grande arquivo de metal, que continha todas as fichas dos livros disponíveis, cadastrados por autor, em ordem alfabética. Com elas os usuários podiam consultar as obras do acervo, além de dados complementares dos livros, como o ano do lançamento, o tema e, às vezes, uma breve sinopse. O escritor foi até lá e passou os olhos pelas incontáveis gavetas cinzentas que preenchiam toda a parede, do chão ao teto. Abriu uma ao acaso e ficou lendo os nomes dos autores. A maioria deles estava morta, mas os livros que escreveram ainda estavam por aí, vivos, sendo lidos por muita gente.
    Ficou boa parte da tarde ali, verificando as fichas, como se procurasse algo em especial. Em seu íntimo, estava remoendo o orgulho por ser considerado pouco criativo na elaboração de seus próprios trabalhos, enquanto os mortos levavam todos os louros.
    Naquele momento não havia ninguém por perto na Biblioteca. Apenas poucos leitores silenciosos em uma mesa distante, e a bibliotecária que catalogava alguns volumes em sua mesa.
    Ele abriu uma das gavetas e procurou até achar, entre centenas de outras, a ficha que queria. Era um papel retangular, meio amarelado, que trazia datilografado:
    WILDE, Oscar. O Retrato de Dorian Gray.
    Por que você tinha que existir? Você tolhe minha criatividade!
    E rasgou o papel em muitos pedaços.
    Na mesma hora teve um leve estremecimento, seguido de um arrepio pelo corpo. Olhou à volta para checar se alguém reparava nele, e teve uma sensação nova sobre o ambiente. Foi um lapso interessante da mente, no qual nunca havia sequer ouvido falar. Sem conhecer melhor definição para o que sentiu, diria que era um deja vu ao contrário: como se nunca tivesse estado antes naquele lugar, apesar de conhecê-lo muito bem.
    Talvez fosse o sentimento de estar um pouco vingado após destruir o registro de Wilde, como se recuperasse parte do empenho que investira, durante toda sua vida, na criação literária. Sentia que naquela hora rasgara todos os exemplares, de todas as edições, em todas as traduções, daquela obra parecida demais com a sua.
    Saiu de lá mais leve. Sem novas ideias para seu romance, mas mais leve.

    Em casa, durante todo o resto daquele dia insosso, nem tentou acrescentar alguma coisa aos manuscritos. Começava até a cogitar o abandono daquele sonho, e desistir da carreira de autor para virar professor. Se tudo o que escrevia já tinha sido criado antes, isso só podia significar uma coisa: que todas as boas histórias já haviam sido contadas, e que se surgisse uma nova, ela seria somente a pálida versão de uma velha.
    Largou os originais inacabados no chão da cozinha, ao lado do cesto de lixo, e foi dormir.
   
    Na manhã seguinte, bem cedo, quando ainda estava deitado na cama, o telefone começa a tocar. Ele continua lá, sem se mover, e o telefone toca, toca, toca, até que a ligação cai na secretária eletrônica e uma mulher deixa o recado.
    Alô? Não está em casa? Olha, não quero fazer pressão, nem nada, mas seria interessante que eu visse logo o último tratamento. Prometemos para junho, então é bom tomar cuidado com o prazo. Sabe como é a editora, não sabe?Beijinho da sua agente...
    Ele levanta, com os cabelos desgrenhados, meio mau humorado, meio rindo, sem entender direito o divertido recado. Foi engano, é claro. Resolve botar a gravação para ouvir outra vez.
    Alô? Não está em casa? Olha, não quero fazer pressão, nem nada, mas seria interessante que eu visse logo o último tratamento. Prometemos para junho, então é bom tomar cuidado com o prazo. Sabe como é a editora, não sabe?Beijinho da sua agente...
    Desta vez ouviu cada palavra, e ficou perturbado com o que acontecera.
    Anotou o número que aparecia no visor do identificador de chamadas e discou um por um.
    A voz feminina atendeu.
    —Alô?
    —Alô. Aqui é o J.G e...
    —Ah, que bom que você ligou, querido. Olha só, eu acabei de telefonar lá na editora e eles disseram que vão aumentar o prazo. Sabem que há outras interessadas no seu livro, então...
    Fantasia ou realidade? Ele ouvia a mulher, que falava pelos cotovelos, acreditando estar em um sonho.
    —Moça, isso é uma brincadeira?
    Não acreditava que alguém pudesse realmente estar aguardando para publicar sua história, mas resolveu embarcar naquilo, e não perdeu a chance de perguntar:
    —Só responda uma coisa: o que você está achando do meu romance?
    —Hmmm... não quero encher sua bola, não, mas digamos que é promissor. Agora vai fazer seu trabalho que eu ainda tenho o meu para terminar aqui. Até breve.
    Pasmo com o que acabara de vivenciar, ele foi até o chão da cozinha. Os manuscritos estavam lá, do mesmo jeito como estavam na noite anterior.
    Foi até sua estante particular de livros. O Retrato de Dorian Gray não estava lá.
    Vestiu-se apressado e correu até a biblioteca. Foi direto à seção planejada e não encontrou um único exemplar das obras de Oscar Wilde onde elas costumavam ficar, eternamente.
    —Bibliotecária, por favor, como acho O Retrato de Dorian Gray?
    — Como é, moço? Sabe o nome do autor?
    Foram juntos até o conhecido arquivo, letra W, gaveta 26.
    —Wilce, Wilcox, Wild, Wilder... Sinto muito, mas não há nenhum autor Wilde nos arquivos. Tem certeza que é assim que se escreve?

    Ele correu até a maior livraria da cidade.
    —Não, senhor — disse a atendente com um crachá escrito “Posso Ajudar?” — Não temos nenhuma obra com esse título no estoque, e pelo que estou checando aqui no sistema, também nunca constou em nossa rede.
   
    Naquele dia ele voltou para casa e escreveu sem parar para nada, sem ao menos olhar pela janela, sem sequer lembrar-se do tempo. Não se preocupava mais em evitar a sombra do fantasma de Dorian Gray e gastou um calhamaço inteiro de papel anotando as ideias que lhe surgiam. Algumas eram copiadas, é verdade, mas não tinha a menor importância: se havia alguém interessado em ler (e em comprar), o negócio era fazer o que queriam e entregar logo.
    Escreveu até fazer bolhas nos dedos, e só parou por pura exaustão, altas horas da madrugada.
    Esse ritmo de produção continuou por mais de uma semana, durante dias e noites, até que finalmente colocou o ponto final do romance e pôs-se a contemplar, satisfeito, a versão final.
    Lindo! Perfeito! Quero ver se alguém vai ter coragem de reclamar agora!
    Não estava mal, de fato, descontando-se o fato de conter - na íntegra – longos trechos copiados de Dorian Gray.   
    Depois de entregue para a agente literária, ela telefonou chorando. Estava emocionada com o final, e já visualizava as críticas positivas.
    Isso aqui vai receber prêmios! Você vai ficar famoso! E o melhor: vai vender muito!

    Passaram-se alguns meses e as previsões da mulher estavam se concretizando. O escritor foi tido como a grande revelação do ano, e começava a ser citado em outros países. Já havia concedido entrevistas para duas grandes revistas — uma semanal de variedades e uma de Literatura — além de ter sido contatado por um produtor de cinema interessado em adaptar seu livro para as telas.
    Sua vida dava um giro de trezentos e sessenta graus. Mudara-se para um apartamento maior e passara a conviver com um novo círculo social, sempre frequentando as festinhas dos intelectuais e de artistas que começavam, como ele, a ganhar notoriedade.
    Agora sim, com um livro publicado, boas críticas e ótima vendagem, acreditava em seu potencial e considerava-se um autor de verdade.
    Onde ia, não deixava de receber elogios rasgados, e autografava pelo menos três livros por dia.
    Os leitores já começavam a perguntar sobre quando sairia e como seria seu próximo romance. Ele gostava apenas de anunciar, em tom de mistério:
    Só posso dizer uma coisa: vocês vão se surpreender.
    Ele próprio queria surpreender-se, já que não tinha a menor ideia de como seria seu novo trabalho. No momento queria apenas curtir toda aquela bajulação pelo livro que — agora sim — havia plagiado, roubado de uma mente alheia, mas que nunca iriam descobrir, porque tal mente parecia nunca ter existido na Terra desde que rasgara aquela ficha da biblioteca.
    Às vezes sentia culpa. Nos sonhos, via-se como um assassino que assumia a identidade e os bens da vítima.
Mas a glória e a fama tratavam de fazer com que apenas raramente recordasse essa questão.
Numa bela manhã, sem ter marcado qualquer outro    compromisso, tomou o rumo da Biblioteca. Lá dentro, folheou dezenas de livros, dos mais variados autores, tentando encontrar a obra que mais lhe chamasse a atenção para que pudesse tomá-la para si. Passeou por todos os corredores, até chegar à estante de livros de terror – uma de suas paixões.
    Estava olhando os volumes, um a um, quando apareceu ao seu lado uma jovem colegial usando um uniforme azul marinho, com saias e meias na altura das canelas. Na hora ele pensou em Lolita. Mas a viu tirar da estante um livro grande e pesado, que os cantos dos olhos observaram o título em letras vermelhas: Drácula.
    Além da cópia que a jovem retirou, sobraram ao menos outras cinco do mesmo livro. Ali também havia dezenas de outras opções entre histórias de vampiros, mas o mais antigo e interessante era mesmo aquele, publicado por Bram Stoker em 1897. A menina afastou-se e foi até uma das mesas do salão, onde permaneceu absorvida na leitura.
    É este mesmo!
    Foi até os arquivos no final da biblioteca, procurou pelas gavetas o cadastro da obra e achou com facilidade.
    Antes de cometer o crime, olhou bem para o nome datilografado no papel. Adeus, meu camarada!
    E rasgou a ficha.
    Aquele sentimento de deja vu inverso aconteceu novamente, desorientando-o por um segundo. Parecia que coisas à sua volta haviam mudado de lugar.
    Antes de sair, deu outra passada na seção de terror e conferiu, aliviado, que os exemplares de Drácula haviam evaporado da estante. Mas também constatou, um tanto surpreso, que não havia qualquer outro livro sobre vampiros na biblioteca, e os de terror haviam diminuído consideravelmente.
    Foi indo embora e, antes de deixar aquele ambiente, deu uma olhada nas mesas.
    A lolita também não estava mais lá.
   
    Por um tempo, ficou tentando raciocinar sobre a possível reação em cadeia que o desaparecimento de alguns livros poderia causar. Estaria ele apagando apenas a obra, ou a existência do autor? Se assim fosse, isso também apagaria todos os descendentes deles. E aqueles livros que tivessem causado algum efeito na sociedade? Se eles não existissem, será que o mundo estaria muito diferente hoje?
    Ele acreditava que não. Caso os livros não existissem para transformar as pessoas, um substituto teria feito o trabalho, e as coisas seriam do mesmo jeito. Afinal, livros eram apenas histórias. Não apagarei os trabalhos de Einstein, ou de outros cientistas. Isto sim seria uma tragédia.

    A segunda publicação de J.G. causou alvoroço no meio literário. Em poucas semanas o seu novo romance vampiresco estava na lista dos best sellers, e dois grandes estúdios internacionais brigavam para comprar os direitos de adaptação para o cinema. Mais que isso, depois de algum tempo percebia-se que na sociedade nasciam nichos de pessoas obcecadas pelas figuras trágicas apresentadas ao mundo naquela obra.
    Como o senhor teve a ideia de criar personagens imortais, que bebem sangue para viver e trazem problemas existenciais que fazem alusão ao homem moderno?
    O escritor inventava as mais diversas respostas para os jornalistas. Estes, nunca se contentavam e queriam saber mais.
    O gênero terror entra em um novo patamar com o lançamento do seu livro?
    As perguntas lhe pareciam um tanto ingênuas.
    O senhor acha que alguns crimes cometidos recentemente envolvendo assassinos que beberam o sangue da vítima podem ter sido influenciados pelas suas criaturas?
    Para ele, algumas afirmações já começavam a virar piada.
    Apesar das polêmicas, a editora adorava o lucro que a venda dos livros estava gerando. Traduções do texto para sete línguas já estavam sendo produzidas, e o autor viajaria para cada país onde ele fosse lançado.
    Tudo o que os editores perguntavam, entre uma noite de autógrafos e outra, era: E aí? Para quando podemos esperar seu próximo trabalho?
    Aliás, a mesma pergunta feita por centenas de fãs.
    O contrato assinado com a editora previa o lançamento de mais três obras inéditas. Já incomodado com o assédio e a superexposição, pretendia entregá-las o mais rápido possível para, livre das obrigações, poder viajar como anônimo pelo mundo e isolar-se na costa do Pacífico.
    Começava, portanto, a pensar em qual deveria ser seu novo romance – aquele que encerraria sua trilogia gótica.
    Queria que soasse como Lolita. Mas depois de ter escrito duas histórias sombrias, teria que mesclar alguns elementos mais obscuros. Achava que talvez devesse fazer um cruzamento entre dois ou mais clássicos. Ninguém ficaria sabendo. Bastava ir até os arquivos, procurar as fichas e acabar com as provas da sua falta de originalidade.
    Assim que livrou-se dos compromissos, voltou à Biblioteca.
    Depois do sucesso, era cada vez mais desafiador ir a locais fechados sem ser reconhecido, e isso dificultava muito sua missão.
    Também não poderia pedir a alguém que fosse até lá e rasgasse um documento público. Para que levantar suspeitas?
    De volta ao local do crime, conseguiu chegar até o arquivo no amplo salão sem que o abordassem pelo caminho. Procurava a ficha de Nabokov.
    Abriu a gaveta que trazia a letra N estampada abaixo do puxador, e quase deu um grito de susto.
    Levou as mãos à boca, não acreditando no que via.
    Dentro da gaveta, que deveria trazer os cadastros dos autores, só havia restos de pó em seu fundo. Abriu outras, e encontrou o mesmo vazio.
Correu desesperado de um canto dos arquivos a outro, olhando gaveta por gaveta, mas não havia nenhuma ficha lá. Encontrou apenas uma placa na parede: Agora nosso sistema passa a ser informatizado. Consulte um de nossos terminais eletrônicos no setor C deste andar.
Dirigiu-se até a bibliotecária, procurando disfarçar a ansiedade que se alastrava dentro de si.
“Moça, o que foi feito das fichas que costumavam ficar nos arquivos lá daquela parede?”.
“Levaram ontem para a reciclagem. Deu dois caminhões carregados com sacos de lixo cheios de papel.”
O escritor saiu voando para fora e, já de posse do endereço da empresa que procurava, dirigiu-se até os arredores da cidade.
Encontrou um galpão em um vasto campo de montes de lixo. A cada cinco minutos chegava um novo caminhão despejando mais papel e latas, que logo eram recolhidos em carrinhos de mão por catadores vestindo macacão e máscara no rosto.     O cheiro do local era muito desagradável.
Foi caminhando entre pilhas de lixo prensado, procurando as fichas, até encontrar uma mulher que se disse a responsável pelo lugar.
“Ah, o carregamento que veio da biblioteca! Já foi todo reciclado e enviado para os clientes que compram nosso produto”, ela disse.
Amargurado, o escritor começava a dar adeus ao sonho de escrever outros livros geniais e autênticos.
“Mas junto com os caminhões vieram uns livros também. Sempre que encontramos livros nós os guardamos e doamos para as escolas”, disse a mulher.
Apesar do mal aspecto em que ela se apresentava, J.G. teve vontade de abraçá-la e beijá-la. Ainda havia uma chance.
“Moça, eu gostaria muito de dar uma olhada nesses livros”.
Os dois foram juntos até a salinha dela no interior do galpão, passando por diversas máquinas que trabalhavam sem parar, prensando o lixo.
“Estão nessas sacolas. Você pode ficar à vontade”.
Ele foi retirando os exemplares das sacolas, e vendo que a Biblioteca havia descartado algumas obras muito interessantes, apesar do estado lastimável das capas.
Porém, o que queria não eram os livros, mas a ficha de registro deles, que poderiam estar junto.
Foi abrindo e sacudindo um por um, torcendo para que caísse do meio de suas folhas um pedaço de papel com o nome e dados do autor, para que pudesse destruí-lo e reescrever o texto à sua maneira.
Revistou todos os livros. Depois olhou novamente. Olhou uma terceira vez.
Talvez fosse o destino estar ali, com aquela única ficha que restara, entre as milhares que existiam.
Só poderia ser o dono de mais aquela obra, que considerava cheia de erros.
Era uma obra grande, densa, polêmica.
Nunca havia pensado em criar algo daquela magnitude, mas não lhe restavam opções.
Tinha em seu poder o livro mais vendido de todos os tempos.
Se ele o reescrevesse, aí sim surpreenderia o mundo.
Agradeceu a mulher e foi caminhar entre labirintos de cubos de alumínio prensado.
Ao ar livre, debaixo do céu azul, sobe em um morro de lixo e grita:
“Bíblia Sagrada, quem vai ser seu autor, a partir de agora, sou EU!”.
E rasga a ficha, atirando os pedaços ao vento.
Esse mesmo vento começa repentinamente a uivar alto e a sacudir suas vestes, trazendo uma neblina densa e causando pequenos redemoinhos de papéis pelo ar. No mesmo momento o odor do ambiente fica mais repulsivo, e a temperatura se eleva a um nível preocupante. Os olhos do escritor começam a arder.
Ele olha à sua volta e não vê mais o galpão nem as máquinas de reciclagem.
Está sozinho no meio do lixo, debaixo de um céu preto que anuncia tempestade.
No horizonte, até onde sua vista alcança, alastrava-se um depósito de lixo sem fim. Uma chuva negra começa a cair, fétida, ácida, dolorida, como agulhas perfurando seu rosto.

Um comentário:

  1. Muito massa, gostei... Fasgou a ficha do autor? Brink's. Kkk

    ResponderExcluir