sábado, janeiro 14, 2012

Racha (L.F. Riesemberg)

Caíra a noite sobre a cidade.
    O possante Maverick 1970 estava parado no posto de combustíveis, sob a pálida luz fluorescente de um holofote.
    A lataria impecável era de um tom entre o vermelho e o laranja, com as famosas faixas negras no capô e nas laterais.
     O tanque estava cheio de gasolina com aditivos.
    Todo o seu anatômico corpo metálico acabara de ser muito bem lustrado e brilhava, fantasmagórico, como uma jóia na vitrine.
    As rodas também reluziam, refletindo todas as luzes do ambiente nas calotas cromadas.
    O carro era como uma rara peça em exposição, atraindo olhares admirados de quem quer que se aproximasse.
    Através dos vidros era possível ver o conta-giros no painel e os sensuais assentos de couro.   
    A chave foi girada na ignição e o motor de oito cilindros começou a roncar. Ao mesmo tempo acenderam-se os redondos faróis da frente, como se a fera adormecida finalmente abrisse os olhos ao despertar de um sono profundo.
    O rugido foi crescendo conforme o acelerador era suavemente pisado. Uma trepidação em toda a estrutura metálica dava a certeza de que a máquina estava definitivamente viva e furiosa, pronta para o ataque.
    Quanto mais o motor V8 gritava, mais fumaça era cuspida pelo cano de escape duplo.
    O Maverick permanecia estacionando, apenas preparando-se para dar o bote.
    Acionado o braço da seta, o pisca esquerdo passou a funcionar, anunciando uma saída triunfal.
    O volante girou. As rodas dianteiras o obedeceram e apontaram para a rua.
    Os pneus deslizavam pelo chão úmido, colocando em movimento uma potência de quinhentos cavalos.
    Imponente, o monstro de mil e trezentos quilos desfilou sobre as faixas amarelas da via, sentindo o vento gelado no para-brisa. .
    Seguiu pela rua até atingir o círculo vermelho no semáforo.
    Parado, esperando pelo sinal verde, surgiu em seu retrovisor uma figura estranha.
    Um ponto prateado foi crescendo na imagem do espelho, até começar a adquirir forma.
    Ouviu-se um diferente ronco de motor, e um segundo veículo estacionou sobre a faixa de pedestres, lado a lado com o Maverick.
    Era um robusto Mustang branco, conversível, com a capota de vinil.
    Chegou rouco, rosnando, impondo-se no território alheio.
    Os dois veículos se olhavam e rugiam, enciumados com a presença do outro.
    Cada um queria gritar mais alto, forçando o acelerador. Os escapes fumavam à toda, expelindo uma carga extra de gases tóxicos na atmosfera.
    Os pneus traseiros do carro branco começaram a rodar sem que o veículo desse a largada. Giravam para cantar, e a fricção com o asfalto queimava borracha.
    O carro vermelho passou a fazer o mesmo com suas rodas, e a rua transformou-se em uma sinfonia de ruídos industriais, como se várias serras elétricas estivessem trabalhando ao mesmo tempo.
    Mais do que nunca, esperavam o sinal abrir, e então dariam uma lição ao concorrente.
    Assemelhavam-se a dois cães de corrida aguardando a largada.
    A pista era larga. Perfeita para manobras bruscas e perigosas.
    Assim que acendeu o farol verde, os câmbios do Mustang e do Maverick engrenaram a primeira marcha e as máquinas partiram em um fôlego admirável pela via expressa.
    Os aceleradores não foram mais poupados. Eram pisoteados com força até o fundo, sem perdão.
    Em cinco segundos, os ponteiros dos velocímetros saíram do zero e apontaram para a marca dos cem quilômetros por hora.
    Tinha início a caçada pelas ruas da cidade.
    Os dois possantes cortavam a via de forma hostil, fazendo ultrapassagens repentinas e raspando nos veículos lentos.
    Ouvia-se o som de buzinas e xingamentos de protesto quando eles passavam.
    O Mustang tinha leve vantagem na corrida, mas o Maverick vinha vermelho de raiva logo atrás, cuspindo fogo pela traseira.
    Os ponteiros já indicavam cento e cinquenta quilômetros por hora.
    Surgiu outra lâmpada de semáforo acesa, amarela, um quarteirão à frente. Em dois segundos os carros percorreram os cem metros e passaram pelo cruzamento no momento em que a luz ficava vermelha.
    A disputa pelo primeiro lugar continuava, e o trajeto levou os dois automóveis até a rodovia.
    O radar da polícia rodoviária registrou a velocidade de 225 km/h quando os carros passaram.
Cortavam o ar como dois foguetes.
    Os motores davam o máximo nas rampas e depois nas descidas, transformando a auto-estrada em uma montanha russa extrema.
    Agora já era o Mustang branco na traseira do Maverick vermelho, como uma caçada de gato e rato.
    As placas de trânsito chegavam a balançar com a passagem dos carros, um querendo ser mais forte que o outro.
    Ambos queimavam muito combustível a cada manobra brusca, e derrapavam os pneus nas rachaduras da pista.
    A dupla ultrapassou um caminhão, sem temer os perigos da curva logo adiante.
    Os motores gritavam a mais de cem decibéis, e as máquinas corriam alucinadas.
    Prosseguir naquela velocidade era como estar intoxicado, desligar-se do mundo sem perceber o que ocorria em volta.
    Outro caminhão surgiu na direção contrária, antes que os carros terminassem uma ultrapassagem. Ao notar os faróis em sua frente, o máximo que conseguiu fazer foi tentar sair do caminho para evitar a colisão.
    Caso o Maverick estivesse menos veloz, talvez tivesse tempo de desviar.
    Seu capô vermelho chocou-se com a frente do enorme caminhão. No mesmo segundo os vidros do carro explodiram e a lataria foi rapidamente sendo prensada, comprimida, como uma lata de cerveja sendo amassada.
    O motor do automóvel fundiu-se com o do caminhão, e peças eram arremessadas em várias direções. O ponteiro do painel travou com o choque, registrando o último abuso de velocidade. 
    O Mustang branco vinha logo atrás e até conseguiu frear, mas a velocidade era tão alta que o único efeito do breque foram trinta metros de marcas de pneus no asfalto. O carro arremessou-se direto contra a traseira do adversário, destruindo a própria cabine e transformando os restos do Maverick no recheio de um sanduíche de ferro.
    Pouco depois do estrondo, ninguém entenderia o que significava aquela grande e confusa massa de metal retorcido, compacto, pingando óleo, numa mistura branca e vermelha — as mesmas cores da van que chegava minutos depois, inutilmente, com uma sirene estridente e uma luz sanguínea girando no teto. 

2 comentários:

  1. Que descrições, Boto fé:..

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  2. Já perdi as contas de quantas vezes li e rê-li esse conto ao passar dos anos... impressionante como sempre parece ser a primeira vez.

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