segunda-feira, julho 27, 2009

SCHALKEN, O PINTOR (Joseph Sheridan Le Fanu)



O tema desta narrativa, meu caro amigo, certamente o surpreenderá. O que tenho eu que ver com Schalken, ou Schalken comigo? Ele retornara a sua terra natal e estava já morto e enterrado antes de meu nascimento; nunca visitei a Holanda ou falei com um nativo daquele país. Tudo que eu disse até este ponto já é de seu conhecimento, creio eu. Quanto ao restante, somente em minha palavra estará confiada a credibilidade da estranha história que passo a lhe narrar.
Conheci, em minha juventude, um Capitão Vandael, cujo pai servira o Rei Guilherme nos Países Baixos e também em meu infeliz país durante as campanhas irlandesas. Não sei por que motivo apreciava a companhia desse homem, a despeito de suas idéias políticas e religiosas, mas assim foi; e foi no livre curso de nossa amizade que me chegou a estranha história que você vai ouvir.
Em minhas visitas a Vandael, muitas vezes me chamara a atenção um quadro extraordinário, no qual, embora eu não passasse de um amador, não pudera deixar de notar algumas características muito peculiares, especialmente na distribuição de luz e sombra, assim como uma certa estranheza no próprio desenho que aguçou minha curiosidade. Representava o interior do que poderia ser um aposento em algum edifício religioso antigo — o primeiro plano era ocupado por uma figura feminina, vestida com uma espécie de manto branco, parte do qual disposto à maneira de um véu. A vestimenta, contudo, não era a de uma ordem religiosa. Em sua mão, a figura portava uma candeia, e dessa fonte de luz somente vinha a iluminação de sua forma e face; as feições eram marcadas por um sorriso brejeiro, como o que vemos em belas mulheres ocupadas em praticar algum estratagema malicioso; no plano de fundo e (salvo onde a fraca luz vermelha de um fogo baixo tornava a imagem visível) totalmente na sombra, ficava uma figura masculina, vestida à maneira antiga, com gibão e coisas assim, em uma atitude de alarme, a mão no punho de sua espada, que parecia estar prestes a desembainhar.
“Existem algumas figuras”, disse eu a meu amigo, “que causam uma forte impressão de que não representam meras formas, idéias e combinações provenientes da imaginação do artista, mas cenas, rostos e situações que realmente existiram. Quando olho para esse quadro, algo me convence de que contemplo a representação de algo real.”
Vandael sorriu e, mirando pensativamente o quadro, disse:
“Sua imaginação não o enganou, meu bom amigo, pois esse quadro é o registro — e acredito que um registro fiel — de um evento extraordinário e misterioso. Foi pintado por Schalken e o rosto da figura feminina que ocupa o lugar principal da cena, é um retrato exato de Rose Velderkaust, a sobrinha de Gerard Douw, o primeiro e, creio eu, o único amor de Godfrey Schalken. Meu pai conhecia bem o pintor e do próprio Schalken ouviu a história do misterioso drama, do qual o quadro representa uma cena. Esse quadro, que é tido como um belo exemplo do estilo de Schalken, foi doado em testamento pelo artista ao meu pai e, como você observou, é uma obra impressionante e curiosa.”
Bastou-me um pedido para que Vandael contasse a história do quadro; e assim é que posso fornecer-lhe uma repetição fiel do que eu próprio ouvi, cabendo-lhe rejeitar ou aceitar o testemunho sobre o qual depende a verdade da tradição — com uma única garantia, a de que Schalken era um holandês franco e rude e, creio eu, absolutamente incapaz de vôos de imaginação; mais ainda, que Vandael, de quem ouvi a história, parece firmemente convencido de sua veracidade.
A poucas formas o manto de mistério e fantasia cairia menos elegante-mente do que ao desajeitado e ridículo Schalken — o matuto holandês —, o rude e obstinado, mas extremamente habilidoso trabalhador da pintura a óleo, cujas obras deliciam os iniciados de hoje quase tanto quanto seus modos causavam aversão às pessoas refinadas de sua própria época; e no entanto esse homem, tão rude, tão obstinado, tão desleixado — diria eu quase selvagem em seu aspecto e maneiras — durante seus êxitos posteriores, fora eleito pela deusa caprichosa, em sua infância, para protagonizar como herói de uma aventura romanesca não menos despida de interesse ou mistério.
Como saber se em sua juventude estivera à altura do papel de amante ou herói? Como afirmar que em sua infância fora o mesmo matuto carrancudo, mal-educado e rude que se mostrava na idade madura? Ou até que ponto o grosseiro desleixo que posteriormente imprimiu-se em sua aparência, em seu porte e maneiras, poderia ser o desenvolvimento daquela apatia inquieta, não poucas vezes produzida por amarguras e decepções no início da vida?
Essas perguntas jamais poderão ser agora respondidas.
Devemos nos contentar, pois, com uma simples exposição de fatos, deixando essas especulações àqueles que com elas se comprazem.
Quando estudara com o imortal Gerard Douw, Schalken era um jovem; e apesar da constituição fleumática e maneiras nervosas mostradas, acreditamos, assim como seus compatriotas, não era incapaz de impressões profundas e vividas, pois é fato aceito que o jovem pintor via com considerável interesse a bela sobrinha do rico mestre.
Rose Velderkaust era muito jovem, não tendo, no período ao qual nos referimos, atingido a idade de dezessete anos; e se a tradição é verdadeira, possuía os encantos suaves das belas e loiras donzelas holandesas. Não havia muito tempo que estudava na escola de Gerard Douw quando Schalken sentiu seu interesse transformar-se em um sentimento mais agudo e intenso do que convinha à tranqüilidade de seu digno coração holandês; e ao mesmo tempo percebeu — ou julgou ter percebido — sinais lisonjeiros de afeição recíproca, e isso bastou para eliminar qualquer vacilação que poderia até então ter sentido e levá-lo a destinar exclusivamente a ela toda esperança e sentimento de seu coração. Em suma, ele estava tão apaixonado quanto poderia estar um holandês. Não demorou muito para que revelasse seu amor à própria donzela, e sua declaração foi seguida de uma confissão de reciprocidade.
Entretanto, Schalken era pobre e não possuía quaisquer vantagens de nascimento ou condição social que convencessem o ancião a consentir em uma união que deveria mergulhar sua sobrinha nas lutas e dificuldades de um jovem e quase solitário artista. Ele deveria, portanto, esperar até que o tempo lhe fornecesse uma oportunidade e algum evento inesperado, o sucesso; e então, se seus esforços se mostrassem suficientemente lucrativos, esperava-se que suas propostas recebessem pelo menos uma certa atenção por parte do ciumento guardião. Meses passaram-se e, encorajados pelos sorrisos da pequena Rose, redobraram-se os esforços de Schalken, e tanto que seus resultados pareciam trazer a fundada promessa de realização de suas esperanças e celebridade de sua arte num futuro não muito distante.
O curso regular dessa prosperidade animadora estava, desgraçadamente, destinada a sofrer uma súbita e tremenda interrupção e de uma forma não menos estranha e misteriosa o bastante para frustrar todas as investigações e lançar sobre os próprios eventos a sombra de um terror quase sobrenatural.
Certa noite, Schalken havia permanecido no estúdio do mestre um tempo consideravelmente mais longo do que seus companheiros mais inconstantes, que alegremente se permitiam o pretexto da penumbra da tarde para afastar-se de suas várias tarefas, a fim de terminar um dia de trabalho nos prazeres e na sociabilidade da taverna.
Mas Schalken trabalhava pela perfeição, ou antes, por amor. Além disso, sua ocupação presente era apenas um esboço, um trabalho que, ao contrário da pintura, poderia prosseguir enquanto houvesse luz suficiente para distinguir entre tela e carvão. Não tinha então, e de fato nem muito tempo depois, descoberto as qualidades singulares de seu lápis e trabalhava na composição de um grupo de diabinhos e demônios de aparência extremamente traquinas e grotesca, que infligiam vários tormentos engenhosos a um santo Antônio suarento e barrigudo reclinado entre eles, aparentemente no último estágio de embriaguez.
O jovem artista, contudo, apesar de incapaz de executar ou mesmo compreender algo verdadeiramente sublime, possuía no entanto discernimento suficiente para não se satisfazer com a própria obra; e muitas eram as pacientes retificações e correções que os membros e feições do santo e do diabo sofriam, sem todavia produzir em suas novas disposições algum aperfeiçoamento ou intensificação.
O grande e antigo aposento estava em silêncio e, exceto pela presença do pintor, absolutamente vazio de seus ocupantes habituais. Uma hora — quase duas — passou-se sem qualquer resultado melhor. A luz do dia já declinara, e a penumbra estava rapidamente cedendo às trevas da noite. A paciência do jovem se esgotara, e ele postou-se diante da obra inacabada, absorto em ruminações nada agradáveis, uma das mãos mergulhada nas camadas de sua longa cabeleira negra, a outra segurando o pedaço de carvão que tão mal executara sua função, e que ele agora apagara, quase descuidado dos negros traços que fazia, com pressão irritada sobre sua inexpressibilidade flamenga.
“Arre!”, disse em voz alta o jovem, “queria que esse quadro, diabos, santo e tudo o mais, estivessem onde deveriam — no inferno!”
Uma breve e súbita risada, soada surpreendentemente perto de seu ouvido, instantaneamente respondeu à exclamação.
O artista virou-se num pulo e agora, pela primeira vez, deu-se conta de que seus esforços haviam sido inspecionados por um estranho.
A cerca de um metro e meio e bem atrás dele, postava-se o que era, ou parecia ser, a figura de um homem idoso: usava uma capa curta e um chapéu de abas largas com uma copa em forma de cone, na mão, protegida por uma luva pesada, à maneira de luva de esgrima, portava uma bengala longa de marfim, coroada pelo que parecia, com um fraco brilho na penumbra, ser uma cabeça de ouro maciço; e sobre seu peito, por entre as dobras da capa, brilhavam os elos de uma rica corrente do mesmo metal.
O aposento estava tão escuro que nada mais da aparência da figura podia ser afirmado, e o rosto estava totalmente imerso na sombra da pesada aba de feltro que sobre ele pendia, de forma que nenhum traço podia ser divisado. Uma massa de cabelo negro escapava desse chapéu sombrio, uma circunstância que, ligada ao porte ereto, estático, do intruso, provava que seus anos não excediam os sessenta ou algo assim.
Havia um ar de gravidade e importância no garbo de sua pessoa e algo de indescritivelmente extraordinário — eu diria terrível — na imobilidade total, pétrea, da figura que realmente refreou o comentário impertinente que imediatamente subiu aos lábios do irritado artista. Ele portanto, tão logo se recuperara suficientemente da surpresa, pediu ao estranho, polidamente, que se sentasse e dissesse se tinha alguma mensagem ao seu mestre.
“Diga a Gerard Douw”, disse o desconhecido, sem alterar minimamente sua atitude, “que Mynher Vanderhausen, de Roterdã, deseja lhe falar amanhã à noite a esta hora e, se assim desejar, neste mesmo lugar, sobre questões importantes; isto é tudo. Boa noite.”
O estranho, ao cabo dessa mensagem, virou-se abruptamente e, com um passo rápido mas silencioso, deixou o aposento antes que Schalken tivesse tempo de responder.
O jovem ficou curioso para ver em que direção o cidadão de Roterdã iria ao deixar o estúdio e para isso foi imediatamente para a janela que dava vista para a porta.
Um salão bastante amplo ficava entre a porta interior do aposento do pintor e a porta de entrada, e assim Schalken ocupou o posto de observação antes que o velho pudesse ter alcançado a rua.
Em vão ele espiou, contudo. Não havia outra via de saída.
Desaparecera o velho, ou espreitava ele nos recessos do salão com algum propósito escuso? Essa última consideração encheu de um vago terror o espírito de Schalken, que foi tão inexplicavelmente intenso que o tornou igualmente temeroso de permanecer sozinho no aposento e relutante a atravessar o salão.
Contudo, com um esforço que parecia desproporcional à ocasião, ele reuniu forças para decidir-se a sair do aposento e, tendo dado uma volta dupla à chave e enfiado a chave em seu bolso, sem olhar à direita ou à esquerda, atravessou a passagem que havia sido há pouco, talvez ainda, ocupada pela pessoa desse misterioso visitante, mal se aventurando a respirar até chegar em plena rua.
“Mynher Vanderhausen”, disse Gerard Douw para si, quando se aproximava a hora marcada; “Mynher Vanderhausen de Roterdã! Nunca ouvira falar de tal homem até ontem. O que poderia ele querer de mim? Pintar um retrato, talvez; ou tomar como aprendiz o filho mais novo de um parente pobre; ou a avaliação de uma coleção; ou — arre! Não existe ninguém em Roterdã que pudesse me deixar uma herança. Bem, seja qual for o assunto, logo saberemos do que se trata.
O fim do dia aproximava-se e todos os cavaletes, salvo o de Schalken, estavam vazios. Gerard Douw andava de um lado para outro com o passo inquieto de expectativa impaciente; de quando em quando cantarolava uma passagem de uma música que ele próprio estava a compor, pois, embora não fosse um grande conhecedor, admirava a arte; detendo-se às vezes para dar uma olhada na obra de algum de seus discípulos ausentes, mas, mais freqüentemente, postava-se diante da janela, da qual podia observar os passantes da obscura travessa na qual se localizava seu estúdio.
“Você não disse, Godfrey”, exclamou Douw, após uma longa e infrutífera mirada de seu posto de observação e virando-se para Schalken — “você não disse que a hora marcada era por volta das sete, pelo relógio da Stadhouse?”
“Já haviam dado as sete quando o vi pela primeira vez, senhor”, respondeu o estudante.
“Já está quase na hora, então”, disse o mestre, consultando um relógio tão grande e redondo quanto uma laranja. “Mynher Vanderhausen, de Ro-terdã — não é?”
“Foi esse o nome.”
“Um homem mais velho, ricamente vestido?”, continuou Douw.
“Tanto quanto pude ver”, respondeu o discípulo. “Não devia ser jovem nem muito velho, e sua vestimenta era cara e formal, como conviria a um cidadão rico e importante.”
Nesse momento, o sonoro relógio da Stadhouse deu, batida após batida, sete horas; os olhos do mestre e do discípulo dirigiram-se para a porta; e não foi senão depois que o último repique do velho sino acabou de vibrar que Douw exclamou:
“Ora, ora; agora veremos Sua Senhoria — isto é, se ele for pontual; se não, podereis esperar por ele, Godfrey, se concederdes o que é devido a um burgomestre caprichoso. Quanto a mim, penso que nosso velho Leyden contém uma quantidade suficiente de tais produtos, sem importação de Roterdã.”
Schalken riu, educadamente; e após uma pausa de alguns minutos, Douw subitamente exclamou:
“Pode ter sido uma brincadeira, uma palhaçada aprontada por Vankarp ou alguém de sua laia! Gostaria que você tivesse corrido o risco e dado uma boa bordoada no velho burgomestre, stadholder ou o que quer que ele possa ser. Eu aposto uma dúzia de Rhenish que Sua Senhoria juraria ser um velho conhecido antes do terceiro golpe”.
“Aqui vem ele, senhor”, disse Schalken, em um tom baixo, admonitório; e no mesmo instante, após virar-se para a porta, Gerard Douw observou a mesma figura que havia, no dia anterior, se apresentado tão inesperadamente à vista de seu discípulo Schalken.
Havia algo na aparência e no semblante da figura que ao mesmo tempo convenceu o pintor de que não se tratava de uma palhaçada e de que ele realmente estava em presença de um homem importante; e portanto, sem hesitação, tirou seu boné e, saudando cortesmente o estranho, pediu-lhe que se sentasse.
O visitante acenou levemente com a mão, como que em resposta à cortesia, mas permaneceu em pé.
“Tenho a honra de ver Mynher Vanderhausen, de Roterdã?”, disse Gerard Douw.
“Ele próprio”, foi a resposta lacônica.
“Soube que Vossa Senhoria deseja me falar”, continuou Douw, “e estou aqui à hora marcada, ao seu dispor.”
“Esse homem é de confiança?”, disse Vanderhausen, virando-se para Schalken, que se postara logo atrás de seu mestre.
“Certamente”, respondeu Gerard.
“Então ele deverá levar esta caixa ao joalheiro ou ourives mais próximo para avaliar seu conteúdo e retornar com um certificado da avaliação.”
Ao mesmo tempo ele colocou uma pequena caixa, medindo cerca de vinte e três centímetros de cada lado, nas mãos de Gerard Douw, que se espantou tanto com seu peso quanto com a rudeza com a qual ela lhe foi entregue.
De acordo com os desejos do estranho, ele a passou às mãos de Schalken e, repetindo as ordens, despachou-o para a missão.
Schalken guardou sua preciosa carga cuidadosamente entre as dobras de sua capa e rapidamente atravessando duas ou três ruas parou em uma casa de esquina, cujo andar térreo era então ocupado pela loja de um ourives judeu.
Schalken entrou na loja e chamando o pequeno hebreu na obscuridade de sua sala traseira, colocou diante dele o pacote de Vanderhausen.
Examinado à luz de um candeeiro, pareceu ser inteiramente envolvido em chumbo, cuja parte exterior apresentava muitas ranhuras e manchas e quase esbranquiçado pelo passar dos tempos. Esse envoltório foi parcialmente removido, com dificuldade, e revelou uma caixa de madeira escura e particularmente dura; também esta foi aberta com dificuldade e, após a remoção de duas ou três camadas de linho, verificou conter uma quantidade de lingotes de ouro, empilhados de forma compacta e, segundo afirmou o joalheiro, da mais pura qualidade.
Cada um dos lingotes foi submetido ao exame pelo judeuzinho, que pareceu sentir um prazer epicuriano em tocar e examinar essas porções do glorioso metal; e cada um deles foi recolocado na caixa com uma exclamação:
“Mein Gott, que perfeição! Nem um único grão de liga — belíssimo, belíssimo!”
A tarefa foi por fim concluída e o judeu certificou por escrito que o valor dos lingotes submetidos ao seu exame chegava a muitos milhares de rix-dollars.
Com o desejado documento em seu peito e a rica caixa de ouro cuidadosamente apertada sob seu braço e oculta sob sua capa, refez o trajeto e, entrando no estúdio, encontrou seu mestre e o estranho em uma conversação concentrada.
Tão logo Schalken deixara o estúdio a fim de executar a ordem que lhe fora confiada, Vanderhausen dirigiu-se a Gerard Douw com as seguintes palavras:
“Não demorarei convosco esta noite senão alguns minutos e, portanto, relatarei brevemente o motivo de minha vinda. Visitastes a cidade de Roterdã cerca de quatro meses atrás, e na ocasião vi, na Igreja de São Lourenço, vossa sobrinha, Rose Velderkaust. Desejo casar-me com ela e se vos satisfizer o fato de que sou muito rico — mais rico do que qualquer marido que pudésseis sonhar para ela creio que concedereis aos meus propósitos a máxima atenção. Se aprovardes minha proposta, devereis fechar o acordo imediatamente, pois não tenho tempo suficiente para esperar por cálculos e retardamentos.”
Gerard Douw ficou talvez tão perplexo quanto qualquer pessoa diante do caráter extremamente inusitado da comunicação de Mynher Vanderhau-sen; mas não deu qualquer manifestação inconveniente de surpresa. Além dos motivos ditados pela prudência e polidez, o pintor sentiu uma espécie de calafrio e sensação de opressão — um sentimento como o que supostamente toma um homem colocado inconscientemente em contato com algo por que tenha uma antipatia natural — um horror e um pavor indefiníveis — quando diante da presença do estranho excêntrico, que lhe tirou toda vontade de dizer algo que pudesse ser ofensivo.
“Não tenho dúvidas”, disse Gerard, após uma ou duas hesitações preliminares, "de que a ligação que propondes poderia ser tanto vantajosa quanto honrosa para minha sobrinha; mas devo informar-vos de que ela tem vontade própria e pode não aquiescer ao que julgaríamos lhe ser benéfico.”
“Não tenteis me enganar, Senhor Pintor”, disse Vanderhausen; “vós sois seu guardião — ela é vossa protegida. Ela é minha, se assim o determinardes.”
O homem de Roterdã deu um passo à frente enquanto falava, e Gerard Douw, quase inadvertidamente, rezou interiormente pelo rápido retorno de Schalken.
“Desejo”, disse o misterioso cavalheiro, “colocar em vossas mãos imediatamente uma prova de minha riqueza e uma garantia de minha generosidade para com ossa sobrinha. O garoto retornará em um ou dois minutos com uma soma equivalente a cinco vezes a fortuna que ela tem o direito de esperar de um marido. Ela será posta em vossas mãos, juntamente com seu dote, e podereis aplicar a soma conjunta como julgar conveniente ao interesse da moça, e será exclusivamente dela enquanto ela viver. Será isso suficientemente generoso?"
Douw concordou, e interiormente pensou que a sorte fora extrema-mente generosa com sua sobrinha. O estranho, estimou, devia ser extraordinariamente rico e generoso, e tal oferta não deveria ser desprezada, embora feita por um mal-humorado e sem uma presença muito agradável.
Rose não acalentava expectativas muito altas, pois seu dote era quase nulo; na verdade absolutamente nulo, exceto pelo fato dessa carência ter sido suprida pela generosidade de seu tio. Tampouco tinha ele qualquer direito de alegar quaisquer escrúpulos contra o casamento por motivo de nascimento, pois sua própria origem não era absolutamente elevada; e quanto a outras objeções, decidiu Gerard — e, de fato, segundo os costumes da época tinha o direito de fazê-lo — não ouvi-las no momento.
“Senhor”, disse ele, dirigindo-se ao estranho, “vossa oferta é muito generosa e qualquer hesitação que eu possa sentir em aceitá-la imediatamente dever-se-á somente a não ter eu a honra de saber algo sobre vossa família ou condição social. Sobre esse ponto poderíeis, com certeza, facilmente esclarecer-me?”
“Quanto à minha respeitabilidade”, disse o estranho secamente, “tendes minhas garantias por ora; não me importuneis com interrogatórios; nada podereis descobrir a meu respeito se não o que eu decidir revelar-vos. Tereis, como garantia bastante de minha respeitabilidade, minha palavra, se fordes honrado; se sórdido, meu ouro.”
“Um velho cavalheiro bem petulante”, pensou Douw; “ele só faz o que quer. Mas, tudo considerado, tenho motivos para lhe dar a mão de minha sobrinha. Fosse ela minha própria filha, não faria diferente. Não me comprometerei desnecessariamente, contudo.”
“Não vos comprometereis desnecessariamente”, disse Vanderhausen, proferindo estranhamente as mesmas palavras que haviam acabado de vir à mente de seu interlocutor: “mas o fareis se necessário, imagino; e vos mostrarei que o considero indispensável. Se o ouro que pretendo deixar em vossas mãos vos bastar e se não desejardes que minha proposta seja imediatamente retirada, devereis, antes que eu deixe esta sala, assinar este compromisso.”
Tendo assim falado, ele colocou um papel nas mãos de Gerard, cujo conteúdo explicitava um solene compromisso firmado por Gerard Douw em dar a Mynher Vanderhausen, de Roterdã, Rose Velderkaust em casamento e assim por diante, dentro de uma semana a partir desta data.
Enquanto o pintor lia esse acordo, Schalken, como dissemos anterior-mente, entrou no estúdio e, tendo entregado a caixa e a avaliação do judeu às mãos do estranho, estava para se retirar quando Vanderhausen pediu-lhe que esperasse; e, entregando a caixa e o certificado a Gerard Douw, esperou em silêncio até que ele se certificasse, pelo exame de ambos, do valor da caução entregue a suas mãos. Por fim, disse ele:
“Estais satisfeito?”
O pintor pediu “se poderia ter mais um dia para pensar”.
“Nem mesmo uma hora”, disse friamente o pretendente.
“Bem, então”, disse Douw, “estou satisfeito; é uma pechincha.”
“Assine imediatamente, então”, disse Vanderhausen, “minha paciência chegou ao fim.”
Ao mesmo tempo, ele apresentou uma pequena caixa de papéis escritos e Gerard assinou o importante documento.
“Que este jovem testemunhe o acordo”, disse o velho; e Godfrey Schalken inconscientemente assinou o instrumento que concedia a um outro aquela mão que durante tanto tempo ele vira como objeto de recompensa por todos os seus esforços.
Concluído assim o acordo, o estranho visitante dobrou o papel e guardou-o com segurança em um bolso dentro da capa.
“Visitar-vos-ei amanhã à noite, às nove horas, em sua casa, Gerard Douw, e verei o objeto de vosso contrato. Adeus.” E com essas palavras Mynher Vanderhausen moveu-se rígida, mas rapidamente para fora do aposento.
Schalken, ansioso por esclarecer suas dúvidas, postou-se ao lado da janela para observar a porta de entrada; mas o experimento serviu apenas para confirmar suas suspeitas, pois o velho não saiu pela porta. Isso era muito estranho, muito singular, muito amedrontador. Ele e seu mestre retornaram juntos e pouco conversaram no caminho, pois cada um tinha seu próprio objeto de reflexão, de ansiedade e de esperança.
Schalken, todavia, não sabia a desgraça que ameaçava seus acalentados planos.
Gerard Douw nada sabia acerca dos laços que haviam sido estabelecidos entre o seu pupilo e sua sobrinha; e mesmo que soubesse é duvidoso que teria considerado sua existência como uma obstáculo sério para os desejos de Mynher Vanderhausen.
Casamentos eram então questões de negociação e cálculos; e teria sido tão absurdo aos olhos do guardião fazer de uma afeição mútua um elemento essencial em um contrato de casamento, tanto quanto teria sido descrever suas obrigações e contratos na linguagem de romance de cavalaria.
O pintor, contudo, não comunicou a sua sobrinha o passo importante que havia tomado em seu benefício, e sua resolução não nasceu de qualquer antecipação de oposição da parte da moça, mas somente de uma consciência ridícula de que, se sua protegida lhe pedisse, como o faria muito naturalmente, para descrever a aparência do noivo que ele lhe destinara, ele seria obrigado a confessar que não vira seu rosto e, se instado, ser-lhe-ia impossível identificá-lo.
No dia seguinte, após o jantar, Gerard Douw chamou sua sobrinha e, examinou cuidadosamente sua aparência com um ar de satisfação, tomou sua mão e, mirando sua bela e inocente face com um sorriso bondoso, disse:
“Rose, minha garota, esse vosso rosto vos fará a fortuna.” Rose enrubesceu e sorriu. “Faces e temperamentos como esses raramente andam juntos e, quando o fazem, o composto é uma poção amorosa à qual poucas cabeças ou corações podem resistir. Crede-me, sereis em breve uma noiva, garota. Mas chega de frivolidades; o tempo urge e portanto apronte a sala grande por volta das oito horas esta noite e dê ordens para servirem o jantar às nove. Espero um amigo para esta noite; e cuide, minha criança, para se apresentar em belas roupas, a fim de que ele não nos julgue pobres ou sujos.”
Com essas palavras ele deixou a sala e dirigiu-se ao aposento que já apresentamos aos nossos leitores — aquele no qual seus discípulos trabalhavam.
Quando chegou a noite, Gerard chamou Schalken, que estava prestes a tomar o caminho de seu alojamento obscuro e confortável e lhe pediu para vir a sua casa e cear com Rose e Vanderhausen.
O convite é claro, foi aceito e Gerard Douw e seu discípulo logo se viram na bela e algo antiquada sala que havia sido preparada para a recepção do estranho.
Uma lareira acesa alegrava a ampla sala; em um canto, colocara-se uma mesa antiga, com pés ricamente esculpidos — destinada, sem dúvida, a receber a ceia para a qual se adiantavam os preparativos; e dispostas com exata regularidade ficavam as cadeiras de espaldar alto cuja deselegância era mais do que contrabalançada pelo conforto.
O pequeno grupo, formado por Rose, seu tio, e o artista aguardou a chegada do esperado visitante com muita impaciência.
Por fim chegaram as nove horas e com elas, batidas à porta da rua, as quais, rapidamente atendidas, foram seguidas por pisadas lentas e enfáticas na escada; os passos moveram-se lentamente através do vestíbulo, a porta da sala em que o grupo que descrevemos estava reunido abriu-se lentamente e entrou uma figura que chocou, quase estarreceu, o fleumático holandês e quase fez Rose gritar de medo; era a forma, e em roupagens adornadas, de Mynher Vanderhausen; a atitude, o porte, a altura eram os mesmos, mas as feições nunca haviam sido vistas antes por qualquer daquelas pessoas.
O estranho parou à porta da sala e exibiu inteiramente sua forma e face. Ele usava um manto de tecido escuro, que era curto e volumoso, não chegando aos joelhos; suas pernas estavam envoltas em meias de seda púrpura escura e seus sapatos adornados com rosas da mesma cor. A abertura frontal do manto mostrava uma vestimenta que parecia consistir de um material muito escuro, talvez de zibelina, e suas mãos estavam envoltas em um par de luvas pesadas de couro que iam bem além dos punhos, à maneira de uma manopla. Em uma das mãos ele levava sua bengala e seu chapéu, que havia tirado, e a outra pendia pesadamente ao seu lado. Abundantes melenas de cabelos grisalhos desciam em longos cachos de sua cabeça, e suas dobras repousavam sobre as pregas de uma rígida gola franzida, que ocultava totalmente seu pescoço.
Até este ponto, tudo estava bem; mas o rosto! — toda a carne do rosto estava colorida de um tom azul-acinzentado que às vezes é produzido pela ação de medicamentos metálicos administrados em quantidades excessivas; os olhos eram enormes e o branco aparecia tanto acima quanto abaixo da íris, o que lhes dava uma aparência de insanidade, intensificada por seu vermelho vítreo; o nariz era bem feito, mas um dos lados da boca estava consideravelmente repuxado, onde se abria para dar lugar a dois longos e descoloridos caninos, que se projetavam da mandíbula superior até bem abaixo do lábio inferior; a cor dos próprios lábios era correspondente à da face e conseqüentemente quase negra. A fisionomia era extremamente malévola, mesmo satânica; e, com efeito, uma combinação tão horrível mal poderia ser descrita, exceto pela imagem do cadáver de algum malfeitor atroz, que pendera de uma corda, escondido, durante longo período, para tornar-se finalmente a morada de algum demônio — o horrendo passatempo de possessão satânica.
Notava-se que o digno estranho permitia que apenas o mínimo possível de sua carne aparecesse e que durante sua visita nem uma vez sequer tirou suas luvas.
Permanecendo por alguns momentos à porta, Gerard Douw por fim encontrou ânimo e calma para dar-lhe as boas vindas e, com um mudo aceno da cabeça, o estranho entrou na sala.
Havia algo de indescritivelmente singular, horrível mesmo em todos os seus movimentos, algo indefinível, algo não natural, inumano — era como se os membros fossem guiados e dirigidos por um espírito desabituado ao funcionamento da maquinaria corporal.
O estranho mal disse algumas palavras durante sua visita, que não excedeu meia hora; e o próprio anfitrião pôde reunir coragem suficiente para proferir alguns cumprimentos e cortesias necessárias; e, na verdade, tal era o nervoso terror que a presença de Vanderhausen inspirava que por pouco todos os seus convivas não fugiram gritando da sala.
Contudo, eles não perderam totalmente a calma a ponto de deixar de notar duas estranhas peculiaridades de seu visitante.
Durante sua estadia, ele nem uma só vez fechou os olhos, nem mesmo moveu-os ainda que minimamente; mais ainda, havia uma quietude quase cadavérica em toda a sua pessoa, em virtude da total ausência de movimento do peito causado pelo processo de respiração.
Essas duas peculiaridades, embora quando descritas possam parecer triviais, produziam um efeito impressionante e extremamente desagradável quando vistas e observadas. Vanderhausen, por fim, aliviou o pintor de Leyden de sua presença agourenta e, com não pouca satisfação, o pequeno grupo ouviu a porta da rua fechar-se atrás dele.
“Querido tio”, disse Rose, “que homem horrível! Eu não desejaria vê-lo novamente nem pelas riquezas dos Estados!”
“Cale-se, garota tola!”, disse Douw, cujos sentimentos estavam longe de confortáveis. “Um homem pode ser tão feio quanto o demônio, e ainda assim, se seu coração e ações forem bons, valerá todos os belos e perfumados janotas que passeiam no Mall. Rose, minha criança, é bem verdade que ele não tem uma face graciosa como a tua, mas sei que é rico e generoso; e ainda que dez vezes mais feio.”
“O que é inimaginável”, observou Rose.
“Essas duas virtudes seriam o bastante”, continuou seu tio, “para contrabalançar toda a sua deformidade; e se não têm o poder para realmente alterar a forma de sua aparência, são ao menos eficazes o suficiente para impedir alguém de considerá-las erroneamente.”
“Sabe, meu tio”, disse Rose, “quando o vi à porta não pude tirar de minha cabeça que via a cabeça velha, pintada, de madeira que me amedrontava tanto na igreja de São Lourenço em Roterdã”.
Gerard riu, embora não pudesse deixar de reconhecer interiormente a justeza da comparação. Todavia, ele estava decidido, tanto quanto possível, a deter a inclinação de sua sobrinha a ridicularizar a feiúra de seu pretendente, embora não lhe agradasse nem um pouco observar que ela parecera totalmente livre daquele misterioso medo do estranho que — impossível não podia deixar de reconhecê-lo — afetava-o consideravelmente, assim como ao seu discípulo Godfrey Schalken.
Na manhã daquele mesmo dia, chegaram de diversas partes da cidade ricos presentes de sedas, veludos, jóias e assim por diante para Rose; e também um pacote endereçado a Gerard Douw, o qual, aberto, revelou conter um contrato de casamento formalmente redigido, em Roterdã, entre Mynher Vanderhausen de Boom-quay, e Rose Velderkaust de Leyden, sobrinha de Gerard Douw, mestre na arte da pintura, também da mesma cidade; e contendo compromissos da parte de Vanderhausen a prover sua noiva de luxos muito superiores do que ele havia anteriormente levado seu tutor a esperar e cujo uso deveria ser garantido incondicionalmente à moça — o dinheiro seria confiado ao próprio Gerard Douw.
Eu não descreverei cenas sentimentais, nem crueldade de guardiões ou magnanimidade de protegidos ou sofrimentos de amantes. Ofereço registros de sordidez, leviandade e interesse. Em menos de uma semana após o primeiro encontro que já descrevemos, o contrato de casamento foi realizado e Schalken viu o troféu pelo qual arriscara tudo o mais para conquistar ser levado triunfantemente pelo seu poderoso rival.
Durante dois ou três dias ele se ausentou da escola; depois retornou e trabalhou, com menos alegria, mas com uma obstinação redobrada; o sonho de amor dera lugar ao da ambição.
Passaram-se meses e, contrariando suas expectativas e até mesmo as promessas explícitas das partes, Gerard Douw nenhuma notícia teve de sua sobrinha ou de seu venerável esposo. Os benefícios em dinheiro, que deveriam ser solicitados em somas entregues trimestralmente, jaziam intocados em suas mãos. Ele começou a se sentir extremamente inquieto.
Possuía o endereço de Mynher Vanderhausen em Roterdã. Após algumas hesitações, ele finalmente decidiu-se a viajar até lá — algo muito simples e facilmente realizável — e assim certificar-se da segurança e conforto de sua protegida, pela qual nutria um sincero e intenso afeto.
Sua busca foi em vão, contudo. Ninguém em Roterdã jamais ouvira falar de Mynher Vanderhausen.
Gerard Douw procurou por todas as casas de Boom-quay; mas em vão. Ninguém pôde lhe dar qualquer informação acerca do objeto de sua busca, e ele foi obrigado a retornar a Leyden tão desinformado quanto antes.
Ao chegar, ele correu para o estabelecimento do qual Vanderhausen havia alugado o pesado, embora, em vista dos tempos, luxuoso veículo que o casal de noivos empregara para levá-los a Roterdã. Pelo condutor dessa máquina ele ficou sabendo que, tendo marchado em lentas etapas, haviam chegado altas horas da noite a Roterdã; mas, antes de entrar na cidade e ainda a uma milha de seu destino, um pequeno grupo de homens sobriamente vestidos e à moda antiga, com barbas e bigodes pontiagudos, postados no meio da estrada, obstruíram o caminho e detiveram a carruagem. O condutor freou seus cavalos, temendo, pela escuridão da noite e a solidão da estrada, que se tratasse de algum intento maléfico.
Seus receios foram, contudo, acalmados ao observar que aqueles homens estranhos carregavam uma grande liteira, de forma antiga, que eles imediatamente puseram ao chão, onde o noivo tendo aberto a porta do coche, desceu e, tendo auxiliado a noiva a fazê-lo também, conduziu-a, a ela que chorava copiosamente e torcia as mãos, à liteira, na qual ambos entraram. A liteira, erguida pelos homens que a rodeavam foi conduzida sem demora em direção à cidade, e antes que andassem muito as trevas a ocultaram da vista da carruagem holandesa.
No interior do veículo, ele encontrou uma bolsa, cujo conteúdo excedia o triplo do pagamento devido pelo aluguel da carruagem e do condutor. Ele nada mais viu ou pôde contar sobre Mynher Vanderhausen e sua bela senhora. Esse mistério foi uma fonte de profunda angústia e quase pesar para Gerard Douw.
Vanderhausen evidentemente o enganara, embora por qual motivo ele não podia imaginar. Ele duvidava da possibilidade de que um homem que mostrasse em sua fisionomia indícios tão fortes da presença de sentimentos extremamente demoníacos não fosse na realidade senão um bandido; e o passar dos dias sem notícias de sua sobrinha, ao contrário de induzi-lo a esquecer seus temores, tendia a intensificá-los cada vez mais.
A perda da companhia alegre de sua sobrinha tendia também a deprimi-lo; e para dissipar esse desânimo, que muitas vezes tomava seu espírito quando terminavam seus afazeres diários, ele freqüentemente costumava persuadir Schalken a acompanhá-lo até a casa e, com sua presença, até certo ponto afastar a tristeza de sua ceia solitária.
Uma noite, o pintor e seu discípulo estavam sentados ao pé da lareira, terminada uma ceia confortante. Haviam se entregado àquela melancolia pensativa por vezes induzida pelo processo da digestão, quando suas reflexões foram perturbadas por um barulho na porta da rua, como se causado por alguém que a forçasse repetidamente. Um criado acorrera sem demora para averiguar a causa do tumulto, e eles ouviram-no duas ou três vezes interrogar a quem batia na porta, mas sem obter qualquer resposta ou cessação dos sons.
Ouviram-no então abrir a porta do saguão e imediatamente seguiu-se uma luz e passos rápidos na escada. Schalken pôs a mão na espada e avançou em direção à porta. Esta abriu antes que ele a alcançasse, e Rose precipitou-se na sala. Ela parecia fora de si e magra, pálida de exaustão e terror; mas sua vestimenta os chocou quase tanto quanto seu surgimento inesperado. Esta consistia em uma espécie de roupão de lã branca, fechada até o pescoço e chegando até o chão. Estava toda em desalinho e suja, talvez pela viagem. A pobre criatura mal havia entrado no aposento quando caiu sem sentidos. Com alguma dificuldade, eles conseguiram fazê-la voltar a si e ela, ao recobrar os sentidos, instantaneamente exclamou num tom impetuoso e aterrorizado:
“Vinho, vinho, depressa, ou estarei perdida!”
Extremamente alarmados com a estranha agitação em que o pedido fo-ra feito, imediatamente satisfizeram seu desejo e ela tomou vinho com uma rapidez e avidez que os surpreendeu. Mal o havia sorvido, ela exclamou com a mesma urgência:
“Comida, comida, agora, ou morrerei!”
Uma grande porção de carne estava sobre a mesa, e Schalken imediata-mente avançou para cortar um pedaço, mas foi impedido; pois tão logo percebera o alimento ela se precipitou em sua direção com a voracidade de um abutre e, tomando-o em suas mãos, dilacerou a carne com os dentes e a engoliu.
Quando o paroxismo da fome mitigou, ela pareceu subitamente aperceber-se da estranheza de sua conduta, ou por terem outros pensamentos mais perturbadores acorrido a seu espírito, pois ela começou a chorar copiosamente e a esfregar as mãos.
“Oh! Chamem um sacerdote de Deus”, disse ela, “não estarei salva até que ele chegue; chamem-no sem demora.”
Gerard Douw despachou um mensageiro imediatamente e convenceu sua sobrinha a servir-se de seu quarto; ele também a persuadiu a nele permanecer imediatamente para descansar; sua concordância foi obtida à condição de que não a deixariam só nem por um momento sequer.
“Oh!, quem dera que o santo homem já estivesse aqui!”, disse ela, “ele pode me libertar. O morto e o vivo jamais podem ser um só — Deus não quis.”
Com essas misteriosas palavras ela cedeu aos seus pedidos e eles entraram no aposento que Gerard Douw colocara a sua disposição.
“Não — não me deixem nem por um instante”, disse ela. “Estarei perdida para sempre se o fizerem.”
Para se chegar ao quarto de Gerard Douw era preciso atravessar um salão espaçoso, no qual eles estavam agora prestes a entrar. Gerard Douw e Schalken carregavam candeeiros, de modo que uma luz iluminava todos os objetos circundantes. Eles estavam entrando agora no salão espaçoso, o qual, como eu disse, se comunicava com o quarto de Douw, quando Rose deteve-se subitamente e, num sussurro que parecia tremer de horror, disse:
“Meu Deus! Ele está aqui... ele está aqui! Vejam, vejam... lá vai ele!”
Ela apontou para a porta do quarto interno, e Schalken julgou ver o vulto de uma forma indefinida deslizar para dentro dele. Desembainhou a espada e, erguendo o candeeiro para iluminar mais fortemente os objetos do quarto, entrou no local para onde a sombra deslizara. Nada havia lá — nada senão a mobília que pertencia ao quarto, e contudo não restava dúvida de que algo se movera diante deles em direção ao quarto.
Um pavor terrível tomou-o, e o suor frio jorrou em enormes gotas sobre sua fronte; pavor que só aumentou por continuar a ouvir a insistência cada vez maior, as súplicas aflitas com as quais Rose lhes implorava para não a deixarem nem por um instante.
“Eu o vi”, disse ela. “Ele está aqui! Tenho certeza... eu o conheço. Ele está ao meu lado... ele está comigo... ele está no quarto. Então, pelo amor de Deus, salvem-me, não se afastem de mim!”
Por fim, eles conseguiram convencê-la a deitar-se na cama, onde ela continuou a suplicar que ficassem perto dela. Murmurava muitas frases incoerentes, repetindo sem cessar: “O morto e o vivo não podem ser um só... Deus não quis!”, e então novamente: “Paz aos despertos... sono aos sonâmbulos”.
Ela continuou a dizer essas frases misteriosas e entrecortadas até a chegada do sacerdote.
Gerard Douw começou a temer, muito naturalmente, que a pobre garota, em virtude do terror e dos maus-tratos, enlouquecera; e ele tinha algumas suspeitas, pelo inesperado de sua vinda, pelo inusitado da hora e sobretudo pelo desvario e terror de seu comportamento, que ela fugira de algum hospício e estava agora com medo da perseguição. Ele resolveu consultar um médico assim que conseguisse acalmar o espírito de sua sobrinha com a ajuda do sacerdote, cuja presença ela implorava tão ardentemente; e até que este chegasse ele não se arriscaria a fazer-lhe perguntas, o que só reavivaria lembranças penosas ou terríveis e aumentaria sua agitação.
O sacerdote chegou logo — um homem de fisionomia ascética e idade venerável —, por quem Douw tinha grande respeito, porquanto fosse um polemista de longa data, embora, talvez, mais temido como guerreiro do que amado como cristão, de moral pura, cérebro refinado e coração gelado. O sacerdote entrou no quarto que se comunicava com aquele em que Rose estava deitada e imediatamente à sua chegada pediu para rezarem por ela, que estava nas mãos de Satã e não tinha esperanças de libertação, a não ser dos céus.
Para que nossos leitores possam perceber claramente todas as circunstâncias do acontecimento que estamos para descrever imperfeitamente, é necessário esclarecer as posições relativas dos envolvidos. O velho sacerdote e Schalken estavam na antecâmara de que já falamos; Rose estava deitada no quarto interno, cuja porta estava fechada; e ao lado da cama, a seus pedidos insistentes, estava seu guardião; havia uma vela acesa no quarto e mais três no salão.
O velho senhor pigarreou, como que para começar; mas antes que o fizesse, um súbito golpe de vento apagou a vela que iluminava o quarto no qual estava deitada a pobre garota e ela, grandemente alarmada, exclamou:
“Godfrey, traga outra vela; não estou segura na escuridão”.
Gerard Douw, esquecendo por um instante suas repetidas ordens, num impulso momentâneo, dirigiu-se para o salão, a fim de fazer o que ela pedira.
“Meu Deus, não vá, querido tio!”, gritou a infeliz menina; e ao mesmo tempo ela saltou da cama e correu ao seu encalço, para agarrá-lo e detê-lo.
Mas o aviso veio tarde demais, pois mal ele atravessara a soleira e sua sobrinha mal tivesse acabado de pronunciar essas palavras assustadoras, a porta que dividia os dois aposentos fechou-se violentamente atrás dele, como que movida por uma forte rajada de vento.
Schalken e ele correram ambos para a porta, mas, não obstante seus esforços desesperados, não conseguiram movê-la.
Grito após grito soaram do quarto interno, com toda a altura aguda de pavor desesperado. Schalken e Douw empregaram toda a energia e distenderam todos os nervos para forçar a porta a abrir; mas em vão. Nenhum som de luta se ouvia lá dentro, mas os gritos pareciam se tornar mais altos, e ao mesmo tempo ouviram os ferrolhos da janela de treliça moverem-se e a própria janela ranger no peitoril como se abrisse com um solavanco.
Um ÚLTIMO grito, tão prolongado, agudo e agoniado que mal parecia humano, veio do quarto e subitamente seguiu-se um silêncio mortal.
Ouviram-se pisadas leves pelo chão, como que da cama para a janela; e quase no mesmo instante a porta cedeu e abriu, fazendo com que ambos os homens, que sobre ela estavam exercendo pressão, quase se precipitassem para dentro do quarto. Este estava vazio. A janela estava aberta, e Schalken pulou para uma cadeira e olhou para a rua e o canal abaixo. Não viu nenhuma forma, mas divisou, ou pensou ter divisado, as águas do largo canal abaixo agitarem-se em grandes ondas concêntricas, como se, momentos antes, fossem perturbadas pela imersão de um grande e pesado corpo.
Jamais se descobriu um vestígio sequer de Rose, ou se obteve alguma informação clara com relação ao seu misterioso pretendente; nenhuma pista que orientasse alguém pelo labirinto e chegar a uma conclusão definitiva. Mas ocorreu um incidente que, embora não seja aceito por nossos leitores racionais como algo próximo a uma prova do ocorrido, produziu todavia uma impressão forte e duradoura sobre Schalken.
Muitos anos depois dos acontecimentos que descrevemos, Schalken, num lugar muito distante, recebeu a notícia da morte de seu pai e de seu sepultamento num dia marcado, na igreja de Roterdã. Foi consideravelmente longo o caminho percorrido pela procissão funerária, que não foi acompanhada por muitas pessoas. Schalken não conseguiu chegar a Roterdã no dia marcado para o enterro senão à tarde. A procissão ainda não havia chegado. Anoiteceu e, mesmo então, ela não chegara.
Schalken caminhou lentamente até a igreja na qual se anunciara o funeral — e que, portanto, estava aberta — e a câmara mortuária onde deveria ser colocado o corpo à disposição. O funcionário que corresponde ao nosso sacristão, ao ver um cavalheiro bem vestido, que pretendia assistir ao aguardado funeral, andando pela nave lateral de igreja, hospitaleiramente convidou-o a dividir com ele o conforto de uma boa fogueira, a qual, segundo seu hábito durante o inverno e em ocasiões semelhantes, ele costumava acender na lareira de um aposento que se comunicava, por um pequeno lance de escada, com a câmara mortuária abaixo.
Nesse quarto, Schalken e seu anfitrião sentaram-se, e o sacristão, após algumas tentativas infrutíferas para iniciar uma conversa com seu hóspede, foi obrigado a ocupar-se de seu cachimbo e de sua caneca para compensar sua solidão.
Apesar de seu pesar e preocupações, a fadiga de uma cansativa jornada de aproximadamente quarenta horas gradualmente venceu o espírito e o corpo de Godfrey Schalken que caiu num sono pesado, do qual foi acordado por alguém que o sacudia delicadamente pelo ombro. Ele julgou primeiramente que o velho sacristão o chamara, mas ELE não estava mais no aposento.
Schalken levantou-se e assim que conseguiu ver claramente o que havia a sua volta, percebeu uma forma feminina, vestida numa espécie de manto leve de musselina, parte do qual servia de véu, e em sua mão carregava um candeeiro Ela movia-se para longe dele e para o lance de escadas que conduzia às câmaras mortuárias.
Schalken sentiu um certo temor ao ver essa imagem e ao mesmo tempo um impulso irresistível de segui-la. Ele a acompanhou até as câmaras mortuárias, mas quando a forma alcançou o topo da escada ele se deteve; a imagem também parou e, voltando-se suavemente, mostrou à luz do candeeiro que portava, o rosto e as feições de seu único amor, Rose Velderkaust. Não havia nada de terrível, ou mesmo triste, em sua fisionomia. Pelo contrário, ela mostrava o mesmo sorriso brejeiro que encantava o artista muito tempo atrás, nos dias felizes.
Um sentimento de espanto e de curiosidade, irresistivelmente intenso, obrigou-o a seguir o espectro, se é que era um espectro. Ela desceu os degraus e ele seguiu-a; e, voltando-se para a esquerda, através de um corredor estreito, ela conduziu-o, para sua enorme surpresa, ao que parecia ser um salão holandês do tipo antigo, como os que os quadros de Gerard Douw ajudaram a imortalizar.
Havia um grande número de peças de mobiliário caro e antigo no aposento, e em um canto, uma cama de dossel, com cortinas negras e pesadas a sua volta; a imagem voltou-se várias vezes para ele com o mesmo sorriso brejeiro; e ao chegar ao lado da cama, abriu as cortinas e, à luz do candeeiro, exibiu para o pintor aterrorizado, a forma lívida e demoníaca de Vanderhausen, sentada rigidamente na cama. Schalken mal olhou para ele e caiu sem sentidos no chão, onde ficou até que o encontraram, na manhã seguinte, pelas pessoas encarregadas de fechar os corredores entre as câmaras mortuárias. Ele jazia deitado numa cela de tamanho considerável, que durante muito tempo não era visitada, e caíra ao lado de um grande caixão sustentado por pequenos pilares de pedra, uma garantia contra os ataques dos vermes.
Até o dia de sua morte, Schalken esteve convencido da realidade da vi-são que testemunhara, e deixou atrás de si uma prova estranha da impressão que ela produzira em sua imaginação, num quadro executado pouco depois do evento narrado por nós e que é valioso não somente em virtude dos detalhes, pelos quais Schalken é tão apreciado, mas até mesmo mais por mostrar um retrato, tão detalhado e fiel quanto pode ser o que é feito de memória, de seu antigo amor, Rose Venderkaust, cujo destino misterioso será para sempre objeto de especulação.
O quadro representa um aposento de construção antiga, como os que se encontram na maioria das velhas catedrais, e iluminado fracamente por um candeeiro, levado pela mão de uma imagem feminina, como o que tentamos descrever acima; e no fundo, à esquerda do espectador do quadro, há a forma de um homem aparentemente recém-despertado do sono e cuja postura, com a mão sobre sua espada, expressa um grande susto: esta última imagem está iluminada apenas pelo débil brilho do fogo de uma tora de madeira ou de carvão.
A obra toda constitui um belo exemplo daquela astuciosa e singular distribuição de luz e sombra que tornou imortal, entre os artistas de seu país, o nome de Schalken. Este conto é tradicional, e o leitor facilmente perceberá, por termos intencionalmente deixado de dar relevo a muitos pontos da narrativa, quanto de umas poucas cores a mais poderia ter-lhe acrescentado de re-alce, que desejamos apresentar-lhe não uma ficção do cérebro, mas uma tradição singular relacionada e pertencente à biografia de um famoso artista.

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