Em outubro começa a melhor época do ano para se
acampar. O frio já foi embora, mas ainda não temos aquele calor insuportável e risco
de temporais, como em dezembro. Então juntei meu material de camping e fui
fazer a primeira expedição com a companhia da Claudia, minha filha de oito
anos.
Seria apenas uma noite fora de casa, mas não
esqueci de colocar na mochila o fogareiro, o cantil, a lanterna, roupas leves e
mais uma porção de utensílios.
No sábado pela manhã, antes de sairmos,
passamos no supermercado para pegar café e macarrão instantâneo. Claudia estava
muito animada para fazer aquela aventura, mas já fui avisando: “Lá não tem
frescuras”. Ela não poderia reclamar da barraca, nem de saudades da mãe, que
não quis nos acompanhar. No fundo eu sabia que minha filha, dentro de um ou
dois anos, também não se interessaria mais por fazer essas coisas comigo.
Antes de embarcarmos, e depois de ouvirmos
mil recomendações da minha mulher, vi Claudia colocar algo dentro da mochila. “Estávamos
esquecendo! Vai ter muito pernilongo à noite”, falou. Era uma caixinha daqueles
espirais verdes que se queimam para afastar mosquitos. Eu sabia que não era muito
eficaz, mas minha filha tinha obsessão por aquilo. Gostava de ver a fumaça
branquinha saindo dele, de sentir o cheiro que exalava no ar e, principalmente,
do caracol de cinzas que restava no chão, na manhã seguinte.
O tempo estava bom e o trajeto até o cânion
não apresentou muitas dificuldades. Durante todo aquele sábado passamos horas
muito divertidas, apesar do cansaço. Mas do momento em que armamos a barraca,
até a hora de fazer a fogueira, tive aquela sensação de despedida, por saber
que minha filha logo não seria mais uma criança. Eu tinha que aproveitar para fazê-la
gostar da natureza e para passarmos um tempo juntos, antes que ela entrasse na
adolescência.
À noite ficamos contando histórias e olhando
as estrelas. Um meteorito riscou o céu, coroando aquele dia inesquecível.
Fechamos a barraca, nos desejamos boa noite e
fomos cada um para o seu saco de dormir. “Obrigado, pai, por essa aventura
incrível!”, disse ela, ao meu lado, pouco antes de adormecer profundamente. “Quem
agradece sou eu”, pensei. Minhas lembranças dos acampamentos com meu pai tinham
ficado guardadas num lugar especial do meu coração. Agora, até o cheiro do interior
da barraca me lembrava aquele tempo de garoto, e eu torcia para que Claudia
também guardasse boas memórias comigo.
Acabei adormecendo, mas poucas horas depois,
no meio da madrugada, acordei com um ruído do lado de fora da barraca. “Porcos
do mato, farejando nossos restos”, pensei. Não custava dar uma olhada e
espantá-los se fosse preciso. Dificilmente haveria coiotes naquela região, mas
era bom ficar atento.
Abri lentamente o zíper da barraca e coloquei
a cabeça para fora. A noite estava fria, e predominava no ar um forte odor que
inundou minhas narinas. “Ah, Claudia!”, exclamei baixinho, quando vi que ela
havia deixado um espiral aceso bem na entrada da barraca, armado sobre o prato
onde ela jantou. Pensei em apagá-lo, para não ficarmos impregnados com aquele
cheiro, mas ainda havia muitas voltas para continuar queimando, e ela ficaria triste
se, na manhã seguinte, não estivesse lá o caracol de cinzas. Então apenas
afastei o prato do caminho e fiz uma ronda no perímetro do acampamento. Não
encontrei nada. Antes de voltar para dentro, resolvi me afastar uns passos a
fim de esvaziar a bexiga atrás de uma árvore, e foi nessa hora que notei algo
caminhar pelas redondezas.
Eu só o enxergava com a luminosidade natural
do ambiente, pois tinha esquecido de trazer a lanterna. Qualquer animal que
fosse, estaria fazendo sua caçada noturna, atrás de comida. Mas, reparando bem
nos sons que emitia e no pouco que dava para ver dele na escuridão, minha
conclusão foi de que aquilo não podia ser um animal comum.
Fiquei congelado, atento ao que podia
acontecer, e rapidamente pensei em Claudia, dormindo sozinha na barraca. Passei
a mão pelos meus bolsos, com a esperança de estar com a faca, mas todos estavam
vazios. Eu não quis me alarmar, pois talvez não houvesse risco. Porém, a
simples dúvida sobre a segurança de um filho já é o suficiente para deixar qualquer
pai enlouquecido. Mantive-me espreitando atrás do tronco, achando cada vez mais
estranho o formato da criatura que, nas sombras, não me deixava descobrir de
que espécie era.
Sua respiração era um rosnado, e ele parecia
rastejar pela relva, farejando algo. Percebi que ele tinha as costas
encurvadas, de onde apontavam grossos pelos eriçados. Eu, cada vez mais tenso,
percebi, para meu desespero, que ele estava lentamente indo em direção à
barraca. Olhei pelo chão ao meu redor, tentando enxergar algum pedaço de pau
para atacá-lo, e quando olhei novamente, ele estava parado bem na entrada da
barraca.
Não dava para esperar mais. Era um momento
decisivo, e fiquei pronto para tomar uma atitude violenta. Encontrei no chão uma
pedra, peguei-a e me aprontei para correr até a criatura, tentando mirar sua
cabeça.
Assim que dei o primeiro passo, algo me
deteve. Observei melhor, e notei que a coisa havia estacionado a cerca de um
metro da barraca. Estava com a cabeça abaixada, emitindo aqueles sons
amedrontadores, e então fui perceber o insólito: o inominável ser estava parado
diante do espiral, olhando fixamente a ponta acesa em brasa. Fiquei prestando
atenção, temendo que voltasse a se mover na direção de minha filha. Por mais de
um minuto - que esperei imóvel, com todos os músculos tensos – a criatura ficou
parada, olhando o espiral queimar. Parecia que nunca tinha visto algo parecido,
e percebi que estava admirando a pequena brasa alaranjada que percorria
lentamente a extensão do espiral.
Imaginei que a criatura, fosse o que fosse,
estava fascinada, achando aquilo bonito, assim como Claudia. Segundos foram
passando, ou talvez minutos, e não parecia haver nada que a tirasse daquela
posição. Eu já havia afrouxado a pedra no meu punho, um pouco mais tranquilo, quando
ouvi no meio da mata um som realmente assustador, muito mais alto que o daquela
criatura. Ao mesmo tempo, a coisa alarmou-se, levantou a cabeça e correu rumo
ao rugido. Antes de entrar no matagal, ainda parou, deu mais uma olhada em
direção à brasa do espiral e soltou um pequeno mugido. Tive a estranha sensação
de que era um sorriso. E então correu para longe, desaparecendo na escuridão.
Antes de qualquer coisa, corri para dentro da
barraca e vi minha filha ainda adormecida, sonhando, sem a menor ideia do que
eu tinha presenciado. Deitei-me ao seu lado e a abracei, agradecendo por ela
estar bem.
Quando recordo disso tudo, nem eu mesmo compreendo
o que houve. Às vezes até duvido do que vi. Não sei que animal era aquele, mas hoje
tenho a certeza de que era só um filhote, e que voltou correndo para sua mãe,
ou pai, assim que ouviu o chamado.
Na manhã seguinte, tão cedo que algumas
estrelas ainda permaneciam no céu, Claudia saiu da barraca descansada e feliz. Sentiu
o aroma do café tropeiro que eu já preparava, e conseguiu ver uma última fumaça
saindo do centro do espiral de
cinzas. “Eu adoro acampar com você, papai!”.
Muito legal"!
ResponderExcluirAmo essa história!!
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