Dos brinquedos da minha infância, meus
favoritos eram os homenzinhos. Eu os chamava assim, pois não eram simples
soldadinhos de plástico que mexiam os braços e pernas: eles tinham feições
humanas, ainda que fosse preciso olhar bem de perto para notá-las. E eles eram
carregados de detalhes, tanto nas roupas como nos acessórios, que incluíam
pequenos capacetes, mochilas e armas. Fui os comprando ou ganhando de presente
aos poucos, até formar um exército em miniatura.
Brinquei
muito com eles, dentro e fora de casa. Gostava de levá-los para o banho e,
debaixo da ducha, eles se aventuravam em uma cachoeira. A pia do banheiro se
transformava em um lago. O piso, numa rodovia. Do lado de fora de casa, o
gramado era uma floresta; o gato e o cachorro, monstros furiosos; o quintal, um
planeta a se explorar. Os bonecos faziam tudo à minha volta parecer maior e
mais perigoso.
Além
dos soldados, passei também a me interessar por figuras de coleções diferentes,
como super-herois, principalmente depois que assisti ao filme do Batman.
Toda
vez que eu ia com dinheiro na loja, após receber a mesada, torcia para que lá
tivesse algum interessante. Eu gostava particularmente dos vilões, e fiquei
encantado quando consegui o Coringa.
Baseado
na versão daquela série dos anos 60, o insano arqui-inimigo do Batman vinha com
um terno roxo e usava como arma uma marreta verde.
O brinquedo ainda acompanhava uma pequena
revista em quadrinhos que explicava a origem do personagem. Segundo aquela versão,
o Coringa era um criminoso que, durante uma fuga, acabou caindo na piscina de
produtos químicos de uma fábrica, e saiu de lá com aquela conhecida cara de
palhaço louco.
No
cinema a história foi um pouco mais realista, mostrando que ele ficou com o
rosto desfigurado e, para esconder as cicatrizes, passou a se maquiar como
palhaço – o que era bem mais interessante.
Com todos esses detalhes, que incluíam a boca
vermelha sempre aberta em um sorriso malvado, e o cabelo verde, o Coringa
passou a me fazer grande companhia, onde quer que eu fosse. E isso significava
que ele ficava em cima da mesa durante o jantar e dormia sobre meu travesseiro.
Apesar
de gostar muito dos meus brinquedos, eu nunca os poupei dos riscos. Eles
realmente eram usados para brincar – não para colecionar. E até mesmo o Coringa
encarava os banhos de lama, as quedas, os congelamentos no freezer e outras
experiências.
Com
o tempo, de tanto participar destas aventuras, seu estado já não era dos
melhores. Notei que a tinta do seu rosto estava desbotando cada vez mais. A boca
já não era rosada, e uma das sobrancelhas havia desaparecido.
Foi quando resolvi levá-lo para uma
recauchutagem no paiol do meu pai.
Aquele
era um dos cômodos mais interessantes da casa. Escuro, empoeirado, cheio de
pregos e instrumentos cortantes. No armário, uma coleção de sacos com veneno
para formiga e latas de líquidos inflamáveis. Era ali, sobre uma mesa, que eu
praticava experimentos científicos e construía minhas invenções.
Para
dar um jeito no rosto do Coringa, bastaria usar um pincel pequeno e algumas
tintas. O ato era solene, pois seria como realizar uma plástica no boneco,
então ele chegou de helicóptero e foi colocado sobre a mesa cirúrgica.
Foi
com muita confiança que mergulhei o pincel na tinta a óleo preta e, pouco
sutilmente, retoquei sua face. Mas, com minhas fracas habilidades para a
tarefa, ao invés de fazer ressurgir o negro traço da sobrancelha, eu
simplesmente a transformei em um borrão. Levei um susto, mas mantive a calma,
pois havia formas de se contornar aquele erro médico.
Talvez
fosse mais fácil começar pela boca, então passei a tinta vermelha nos lábios do
boneco, para ele recuperar seu sorriso diabólico. E, infelizmente, ao primeiro
toque, a pincelada transformou metade do seu rosto em uma mancha com cor de
sangue.
Fazer
aquela operação revelava-se mais difícil do que o esperado, e era preciso
terminar o serviço, senão a tinta ia começar a secar. Desolado ao ver como o
boneco estava ficando horroroso, percebi que teria sido muito melhor tê-lo
deixado como estava, com todos os seus sinais de desgaste.
Corri
os olhos ao redor do paiol para achar alguma solução. Entre os produtos que meu
pai mantinha ali havia um que sempre era muito útil. Certa vez fiquei com as
mãos sujas de tinta, e não adiantava lavar nem esfregar para limpá-las. Eu já
estava chorando, imaginando que ficaria com as mãos manchadas de branco para
sempre, além da surra que eu ia levar, quando meu pai apareceu e me deu algumas
gotinhas de thiner para lavá-las. Era um líquido com cheiro forte de gasolina
que, num passe de mágica, lavou completamente a tinta das minhas mãos e elas
voltaram ao normal.
Assim,
quando vi o desastre que eu estava cometendo no rosto do boneco, fui logo pegar
o frasco daquele líquido salvador e derramei um pouco naquela sujeira.
Como
era esperado, a camada de tinta que eu havia aplicado começou a evaporar, mas a
face continuava manchada. Resolvi despejar mais um pouco, para um melhor
efeito, e para minha infelicidade a abertura da lata me traiu, fazendo cair uma
quantidade muito acima do desejado. O solvente era tão forte que começou a
agredir a pintura original, e em poucos segundos a cabeça inteira estava sendo
corroída pelo ácido.
Gritando
em desespero, corri com o boneco até a pia mais próxima e o coloquei debaixo da
água corrente. Mesmo com esse cuidado, já estava claro que eu havia barbarizado
o meu companheiro de forma irreversível. Ele perdera seu rosto - e aquela era a
vida real. Desta vez ele não se transformaria em um novo vilão, e sim em
plástico derretido.
Com
um grande aperto na garganta, comecei a chorar, porque eu havia matado o
homenzinho. Minhas lágrimas escorriam assim como a tinta do seu rosto, que o
transformava em um boneco sem olhos, sem boca e sem cabelo: tudo nele passou a
ser apenas branco, como a cabeça de um manequim de vitrine. Já não era mais o
meu Coringa.
Outras
partes do corpo também foram atingidas, de modo que não havia mais solução. Ele
havia morrido para sempre.
Envergonhado,
não tive coragem de pedir ajuda ou de contar aquilo a alguém. Só fiquei lá,
pensando no triste fim do meu bonequinho, morto sobre a mesa de cirurgia suja
de tinta vermelha.
Sem
mais o que fazer para ressuscitá-lo, tive que me conformar com a perda. Mas ele
não poderia simplesmente parar numa lixeira. Era preciso fazer uma justa
homenagem ao meu amigo, em nome de todas as aventuras que havíamos passado
juntos naquele reino. Todos deveriam fazer uma última despedida ao respeitável
companheiro.
Assim,
com o uso de um serrote, ripas de madeira, pregos e um martelo, construí um improvisado
caixãozinho, que durante aquela tarde ficou no centro do meu quarto com o corpo
do boneco. Recebeu a última despedida de todos os meus outros bonequinhos. Até
o Batman foi velar o corpo do seu ex-inimigo. E, antes do pôr do sol, foi
realizado o seu enterro no jardim, com direito a uma cruz para marcar o local e
flores em volta dela.
Apesar
de tudo aquilo estar sendo mais uma brincadeira para mim, saí triste de verdade
de lá, por pensar que não poderia mais brincar com o boneco e que teria que escolher
outro para ser o meu favorito. Mas nenhum seria como aquele. E não bastaria
comprar outro Coringa, pois só aquele tinha uma história comigo, depois de
vivermos tantas coisas juntos.
Naquela
noite não dormi muito bem, pois sonhei que o boneco estava são e salvo, com o
rosto novinho em folha, e ao acordar a decepção da realidade bateu fundo, pois
a verdade era que ele estava debaixo da terra, sem rosto, e isso me fez chorar
mais um pouco, no meio da madrugada.
E
foi assim que, no dia seguinte, eu levantei: sem motivação para mexer na caixa
de brinquedos debaixo da cama, para procurar outro homenzinho que o
substituísse.
Sei
que muitas crianças precisam aprender a lidar desde cedo com a morte, seja a de
um animal de estimação ou de algum familiar, mas no meu caso foi a perda
irreparável de um boneco que me fez entender que nada dura para sempre.
E
foi pensando nessas coisas da vida, olhando para o local de descanso do meu
companheiro, e para a cruz que eu havia enfiado na terra, que comecei a
imaginar uma história a respeito da volta do palhaço louco. Poderia ter caído
uma tempestade durante a noite, e um raio atingido a cruz. A descarga elétrica
teria chegado lá no fundo da terra e eletrizado o caixão, de modo que o boneco
tinha voltado à vida! Ele estaria se mexendo lá dentro da terra, louco para ver
a luz do sol novamente. Teria que conviver com o fato de não ter mais um rosto,
mas o que era isso para quem foi dado como morto?
Sem
esperar mais, corri até o paiol pegar a pá de jardim e cavei novamente o chão,
para desenterrar meu amigo. Tirei da terra o pequeno caixão e o abri,
desesperado para vê-lo novamente, ainda que não da maneira como recordava dele.
E, assim que tirei a tampa, tomei um grande susto.
O
Coringa estava lá, deitado como eu o havia deixado, porém, estava diferente.
Seu rosto estava radiante, com os olhos abertos e a boca aberta em um grande
sorriso. O cabelo verde estava intacto, as sobrancelhas arqueadas como nunca, e
todos os detalhes do seu terno roxo, intactos.
Examinei
muito atentamente para ver se aquele era realmente o meu boneco, mas não havia
dúvidas: apesar de parecer novo em folha, ele ainda tinha algumas das
inconfundíveis imperfeições que o tornavam o “meu” Coringa, as quais eu
conhecia muito bem. Somente os ferimentos causados pelo acidente com o ácido do
dia anterior é que haviam sido restaurados pela pintura de mãos muito mais
destras que as minhas.
Não
acreditei no que estava me acontecendo, e me belisquei para saber se não estava
sonhando ainda. Quem poderia ter feito aquilo? Será que, ao fazer aquele
caixão, eu havia criado uma caixa mágica que recuperava o que nela fosse
depositado? Ou seria a terra do jardim que era especial? Ou então, poderia
alguém ter feito aquilo por mim, sem que eu soubesse? Talvez minha irmã ou
algum dos meus pais? Eles deviam saber que eu não resistiria e abriria
novamente a cova para dar outra olhada no boneco, e poderiam ter preparado uma
surpresa.
Este
foi um dos primeiros mistérios que vivi, e por mais que pareça banal diante de
outros episódios que me aconteceram, a inesperada ressurreição do homenzinho
foi um dos mais marcantes, por me fazer começar a acreditar que havia muito
mais coisas na vida do que eu havia imaginado até então.
O
Coringa, recuperado, ainda participou de muitas aventuras ao meu lado durante a
minha infância, mas não voltou a ser destruído como naquele dia. Mantive-o a
salvo por muitos anos, e agora o estou depositando dentro da caixa com minhas
outras memórias.
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