sexta-feira, outubro 24, 2025

O Telefonema (L.F.Riesemberg)

 

Eu estava no primeiro ano da faculdade e morando sozinho na capital, depois de uma vida toda na cidadezinha onde nasci. Gozando as vantagens da juventude e da invigilância, adentrei o apartamento de mãos dadas com uma jovem. Era a primeira vez que eu ficava sozinho com alguém.

Sentamo-nos no sofá e demos continuidade às carícias e beijos. Lembrei-me que, apenas um ano atrás, eu nunca tinha feito nada disso. Minha timidez me atrasou mais que a média para beijar alguém, mas agora tudo parecia caminhar rápido para a primeira experiência mais íntima.

A jovem comigo era alguém que certamente não seria a companhia de um dia só, dada minha tendência de loucas paixões em troca de tão pouco. Seguíamos aproveitando as sensações, os toques, os suspiros, acanhados em dar o próximo passo, quando fui subitamente interrompido por um ruído estridente à minha direita.

Era o telefone, aquele agora incômodo aparelho que me chamava, roubando a nossa sensual privacidade. Quem poderia ser? Quem fosse, estava dando uma descarga elétrica no meio de um sonho agradável, desmanchando a mesa lindamente posta para o doce banquete.

Afastei as mãos e a boca do corpo ao meu lado, na esperança de que a perda daquele calor fosse apenas momentânea, e me dediquei ao irritante chamado.

“Alô”, atendi, apático.

“Quem?”, uma voz feminina, que não reconheci de imediato.

Falei meu nome.

“Oi. Aqui é a G...”.

Naquele momento, uma ferida se abriu no meu peito. Uma chaga vermelho-fogo, queimando como ácido, destruiu meu coração e se espalhou para meus pulmões, boca e todo o resto.

Não era possível. Depois de tanto tempo, ela me ligando. Lembrei de todas as vezes em que aguardei, ingênua e romanticamente, uma ligação dela assim, no meio da tarde. Quantas vezes digitei seu número e não tive coragem de completar a chamada, sem saber o que falar.

Era ela. A musa das minhas dores. A fada da minha solidão. Aquela que me notou quando ninguém mais o fez. Meu primeiro beijo. Um ano atrás ela tinha feito aquela cidadezinha vazia e gelada virar minha Valência no alto verão.

Recordei nossas primeiras conversas. Do amor nascendo pelos seus longos e lisos cabelos dourados. Da vergonha de perguntar se éramos mesmo namorados, ou se eu só estava delirando. Até hoje não sei o que éramos, mas sei muito bem o que ela significou para mim.

Com ela ali, do outro lado da linha, a boca colada em meu ouvido, as memórias me abraçavam. Mas também me sacudiam, me cortavam, e passei a sentir tudo aquilo novamente: a paixão, a paralisia, a dor de não conseguir dizer nada tendo tanto para falar...

E, ainda mais, logo no dia em que eu estava com outro alguém? Por que esta ironia? 

Fiquei mudo. Ou melhor, balbuciei um glacial “oi”, sem conseguir mais nada, esperando, esperando... O que ela poderia querer? Mesmo quando eu ainda estava morando na cidadezinha, ela não me procurava mais. Por que estaria ligando agora que me mudei? O que teria ocasionado uma chamada interurbana, no horário mais caro, para falar comigo?

Depois do que me pareceu ser um século, ela disse:

“Só liguei para dizer que estou indo embora e queria me despedir. Vou morar em...”

E falou o nome da cidade, que era muito, muito mais distante do que aonde eu havia chegado.

Achei que a dor não podia aumentar, mas aquilo só piorava. Eu não suportava mais. Por que tinha que ser assim? Minha vontade era perguntar “Por que?”. Dizer: “Não vá!”.  Fazer uma elegia, um poema épico de seiscentas estrofes sobre a minha interminável paixão e o pavor de perdê-la para sempre.

Ao menos um pedido para que me ligasse de lá, que me escrevesse cartas, ou um simples “se cuide”, “seja feliz”...

Mas nada pôde sair da minha boca naquele momento. Ficou tudo preso no meu peito.

Mesmo pelo telefone notei ela murchando, e o mesmo comigo. Dei apenas um “tchau”, frio e distante como eu era antes dela, e desliguei. Me senti como um ser pré-histórico se isolando dentro de uma caverna após ter matado o irmão por um pedaço de carne.

Suspiro... Uma tragada num cigarro imaginário.

Agora eu tinha que lidar com a explicação naquele sofá. Falaria a verdade para a pálida substituta que me acompanhava? Mas como falar sobre uma entidade mítica que não se pode falar em idiomas comuns?

Não sei por que fiz isso. Falei não a verdade, mas uma verdade: “Era minha ex. Ligou para dizer que vai embora, para bem longe...”.

Garanti assim o retorno à embriaguez do prazer, com beijos e carícias, cerrando a cortina daquela peça teatral agridoce ­­- ao menos para a plateia.

O telefonema deve ter durado apenas alguns breves segundos, mas na verdade ainda não terminou. Passaram-se trinta anos, e ainda estou lá, naquele sofá, petrificado, com todas as declarações, sonetos e elegias entalados em minha garganta.  


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