É de conhecimento
geral que Jorge Luis Borges encontrou o Aleph no porão de uma casa de Buenos
Aires, em 1941. Como ele mesmo revelou, a casa foi demolida meses depois.
Porém, aquele não era o Aleph, e sim um Aleph. O próprio Borges alertou sobre a
existência de outros, como por exemplo o que se encontrava em uma das colunas
da mesquita de Amr, no Cairo – destruída por um terremoto no século XII.
O Aleph é um ponto onde
se podem observar todos os lugares do orbe, sob qualquer ângulo, ao mesmo
tempo. Este que Borges encontrou era um círculo furta cor de dois centímetros
que se encontrava no décimo nono degrau de uma escada daquela residência. Ao
observá-lo sob certa acomodação ocular, deitado no piso do porão, era possível
ver o mundo todo, ao mesmo tempo.
Quando trouxe ao
público tal revelação, o Aleph já havia se perdido na demolição da casa. E
Borges acertadamente preferiu misturar os fatos com ficção em seu texto, sem assumir
que tudo o que ele vivenciara era verídico.
Segundo ele, se
hoje se soubesse da existência de qualquer peça mágica, como uma lâmpada
maravilhosa, esta não permaneceria esquecida. Antes, geraria uma comoção no
mundo inteiro, e mudaria toda a forma como se entende o espaço e o tempo, a
vida e a morte.
Dito isto, há
alguns anos iniciei uma busca incessante atrás de indícios dos outros Alephs.
Fui às mais obscuras bibliotecas de países longínquos, onde traduzi centenas de
manuscritos perdidos, procurando qualquer menção àquela formidável maravilha da
natureza.
Devo admitir que
nenhum texto por mim encontrado fazia alusão tão clara ao Aleph como o relato
do argentino. Mas entre centenas de outros, que provavelmente indicavam que
seus autores haviam tido algum tipo de contato com um desses círculos
misteriosos, houve somente um que, mais tarde, pude comprovar a veracidade.
Trata-se de um
manuscrito encontrado entre as ruínas do mausoléu de Halicarnasso, na Turquia.
Nele, o autor desconhecido narra o que se assemelha em muitos aspectos com a
descrição do Aleph de Borges. Fiquei particularmente aturdido por um trecho da
narrativa, datada de 350 a.C, em forma de versos, que descrevia as imagens que visitavam
os olhos de quem se prostrasse de joelhos em certo bloco de pedra do tempo de
Ártemis, em Éfeso.
Por muitos anos
reuni informações através de contatos em vários museus do mundo, o que
praticamente me levou à bancarrota, mas ao final da batalha encontrei a glória.
Não posso revelar nomes, nem circunstâncias, mas estive diante dele. O último
Aleph da Terra, guardado em um local seguro pelos derradeiros 2300 anos.
E como Borges
mencionou, talvez o Aleph que ele teve a oportunidade de encontrar não fosse o
verdadeiro. O que eu vi não lembrava tanto um círculo, mas um olho, do tamanho
de um palmo, devidamente instalado no centro do bloco de mármore.
Palavras não
existem para narrar o que se vê dentro dele. Prostrei-me de joelhos, como me
foi recomendado pelo guardião da peça, e de súbito vi um mundo. Estava lá não
apenas o infinito espacial, mas também o temporal, com todas as implicações possíveis.
Vi ali o surgimento
do universo, e com ele o nascimento do Aleph, e o meu rosto já estava nele. Vi
uma flor extravagante brotar num majestoso jardim da Macedônia. Vi uma gigantesca estátua
de bronze deitada criando limo no fundo do mar. Vi um mosteiro sendo atacado
por invasores nórdicos, e todo o holocausto em seguida. Vi a dor, a lepra e uma
flecha cruzando o ar. Um corvo que pousava sobre a cerca de um milharal da Espanha,
e uma aurora boreal no céu noturno. Vi um pianista triste tocando notas decadentes.
Vi um cometa entrando na atmosfera e virando pó. Anéis, cálices e a abóbada
prateada de uma catedral austríaca. Vi as civilizações passadas do hemisfério
Norte, e vi as futuras. Uma bota na lama, um vestido velho na vitrine de um
brechó de Paris, e sua dona dançando uma valsa. Vi Borges, e ele estava feliz. Vi
uma caravela cruzar o mar Cáspio, e uma nave abrindo suas portas. Um mágico
tirando um ás de copas, uma lebre entrando na toca e um vampiro fugindo de uma cruz. Vi a tua face ao ler estas palavras, e também a minha morte. Vi tudo
o que há na terra e debaixo dela, a construção e o caos, do início até a
eternidade. Então fui interrompido pelo guardião, que me retirou daquele lugar.
Foi um segundo apenas
diante do Aleph, e tudo o que observei estava concentrado, com seu passado e
seu fim unidos, formando uma teia de recordações e presságios.
Ao retornar para
minha vida mortal, fiquei desiludido por nada mais me impressionar. Tudo me
parecia um deja vu, e cada pessoa que
eu conhecia surgia aborrecidamente previsível. Tive medo de ter que viver assim
eternamente, sem nada que pudesse me assombrar outra vez, pois tudo já me fora
revelado naquele instante. Mas a vida seguiu sua ordem, e o esquecimento
gradual de todas as coisas foi me libertando.
O Aleph permanecerá
oculto até sua inevitável destruição, que também foi por mim visualizada. No
meu minuto fatal ajoelharei diante de uma árvore e recordarei tudo o que
esqueci, pois daí em diante estarei, para todo o sempre, nas malhas do eterno infinito.
Borges é fantástico, uma justa e bem formulada homenagem.
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