O príncipe cavalgava sem rumo pelo imenso
descampado, com a consciência a lhe corroer as entranhas. Acabara de cometer um
ato torpe, cuja lembrança ficaria impressa na alma à maneira de uma cicatriz
que nunca se apaga.
Há
poucos momentos, desembainhara a espada para penetrar a lâmina no ventre
inchado de sua jovem amante. Com apenas um ataque, arrancou simultaneamente a
vida de dois seres, para evitar um bastardo reclamando seus bens, mais tarde.
A
bela rapariga que se entregara ao monarca, e que acreditava ser por ele amada,
não teve uma chance para defender-se. Simplesmente atendeu ao recado recebido,
dirigindo-se até o local indicado. Sozinha, caminhou ao campo onde aquele
romance se consolidara, apenas para cair nos braços da morte. Sua última fala,
ao perceber que o amado convertera-se em carrasco, foi a expressão da dúvida:
“Por que?”.
Já
com o sangue da moça e do anjinho não nascido a escorrer pelo chão, ele
respondeu, simplesmente: “Porque assim deve ser!”.
Mas
agora o príncipe cavalgava ferido no próprio âmago, atormentado pela tensão do
desatino concretizado. Aquela terrível sensação de asco por si próprio lhe
trazia amargas recordações, das outras oportunidades em que se mostrara cruel e
impiedoso.
Sobre
o cavalo, com o as longas madeixas dançando contra o vento, observava a vasta
planície à sua frente. Temia cruzar com alguém que o encontrasse naquele estado
de abatimento, pouco se importando com a tempestade que as escuras nuvens no
céu anunciavam. Ao invés de dar ouvido aos trovões, escutava apenas os rugidos
das próprias lembranças.
Desta
forma visualizou com clareza certo momento da sua infância, quando era ainda
mais jovem e inconsequente, e acusara um servo de lhe roubar um adorno de ouro.
Apesar da tenra idade, ninguém da família real ousou duvidar da sua afirmação,
já que aquelas eram as palavras do filho do rei.
“Era
só uma brincadeira”, agora pensava. “Eu não imaginava a dimensão que minhas
ingênuas palavras atingiriam”. Mas quando o servo era levado ao calabouço, para
posteriormente ter as mãos decepadas por um machado, ele olhou tristemente em
direção ao garoto, como a lhe perguntar: “Por que fizeste isso?”. E em
pensamento, o pequeno príncipe lhe respondeu, simplesmente: “Porque eu quis!”.
O
futuro rei tentava desesperadamente fugir daquelas culpas, e para isso fazia o
animal galopar ainda mais rápido pelo campo aberto. Esforçava-se ao máximo para
afastar tais pensamentos, e então acreditou ter ouvido outro galope atrás de
si. Olhou assustado em direção àquele som alarmante, mas a extensa e solitária
paisagem lhe dizia estar desprovido de qualquer companhia.
Contudo,
o mero ato de lançar os olhos a um cavaleiro invisível, enquanto cortava o
vento no lombo do alazão, fez com que chegasse ainda mais perto de onde tanto
queria fugir. Pois naquele instante caiu-lhe como um raio a recordação de uma
viagem às Arábias, onde se encantou por certa donzela, e a tomou à força na
calada da noite. Diante da ira do pai da moça, que descobriu o feito, o
príncipe mandou seus soldados atearem fogo em toda a vila para desviar a
atenção dos moradores e poder fugir.
Naquela
época, após o ocorrido, perguntava a si próprio, por que é que tinha agido
daquela maneira em uma terra que o acolhera tão bem? E aquela velha voz, que
emanava do fundo do seu ser, de pronto respondia: “Porque eu posso, meu caro!”.
E
estava feito: o príncipe carregava três culpas das quais a justiça humana nunca
se encarregaria de acusá-lo. Mas a simples memória lhe facultava terríveis aflições,
que se tornavam visíveis no próprio corpo. O suor frio, os batimentos
acelerados do coração e as noites mal dormidas já eram penas suficientes para
seus crimes, pensava. E quem mais iria se importar com meras firulas,
levando-se em conta que ele teria um vasto reino para liderar?
A
sombria voz interior sempre lhe bradava: “Tu podes tudo: serás o Rei. Viva El Rey!”. E ele continuava a
galopar em ritmo acelerado, ainda alheio ao início da tempestade que atingia a
terra.
Lentamente
voltando à realidade com os pingos da chuva que atingiam o rosto, deu-se conta
de que já cavalgava há um bom tempo e continuava longe dos limites do castelo.
Teria percorrido milhas, talvez, e permanecia dentro das margens daquele campo
seco, de onde tanto queria fugir para esquecer a última sandice que cometera.
O
mais inusitado deu-se quando percebeu um ponto negro no horizonte, que logo deu
a certeza de mover-se em sua direção. Aquele longínquo rabisco foi tomando
forma, deixando de ser um pequeno borrão na distância, e aos poucos revelou-se
algo mais vivo do que uma flâmula a tremular. Era um cavaleiro. “Minha família
preocupou-se com a demora e enviou um soldado a procurar-me”, concluiu.
Quem
quer que fosse, fazia um caminho certeiro em sua direção, e o monarca resolveu
dar um descanso ao seu cavalo, enquanto aguardava a chegada do homem. Parado,
tentando descobrir qual membro da cavalaria fora enviado, percebeu que as
vestes da pessoa não condiziam com as da tropa do reino, o que já lhe
proporcionou um pouco de preocupação, perceptível pelo cenho cerrado.
Foi
levando as mãos à espada, como é o hábito de quem aguarda o perigo iminente,
ainda em dúvidas sobre quem chegaria à sua presença e qual o teor da mensagem
que traria.
Logo
seus olhos puderam identificar a capa negra do arauto a esvoaçar pelos ares e a
arma em riste, contrastando com o clarão dos relâmpagos às costas. O príncipe
estava hipnotizado pelo assustador quadro em movimento que se formava à sua
frente, como uma tela viva do Apocalipse, e seus membros congelaram,
impedindo-o de fugir.
Compreendia
o que se passava, e esta constatação também lhe dizia que era inútil correr.
Sentia-se infinitamente vulnerável, preso àquele espaço e tempo, com a Morte
vindo a cavalo arrebatar sua alma.
Quanto
mais ela se aproximava, mais sentia o odor pútrido na atmosfera. Aquela era a
temível hora fatal, da qual ninguém escapa.
Surgindo
em sua frente sob a forma de uma grotesca caveira sobre um corcel negro que
soltava fumaça pelas ventas, a Morte estendeu-lhe a mão esquelética e
pronunciou com voz trevosa : “Venha! Chegaste a
hora!”.
O
príncipe, cheio de medo e nunca acostumado a ter que implorar, balbuciou: “Oh,
não! Afasta-te! Sou jovem! Por que irrompes a mim desta forma, enquanto há
tantos velhos e desgraçados implorando por sua vinda?”.
E
a Morte, sem pesar algum, lhe vomita a resposta: “Porque assim deve ser!”.
O
príncipe, aturdido pela frieza da temida visitante, tenta ganhar tempo, e com a
coragem que lhe resta, prontifica-se a um duelo. “Dai-me uma chance. Duelemos
agora mesmo e, se eu perder, tu terás todo o direito de me levar contigo”.
Mas
a Morte, impassível, disse não.
“Por
que és tão cruel?”, indagou o desesperado príncipe.
E
ela, de uma forma quase singela, responde: “Porque eu quero!”.
Em
uma última tentativa, o príncipe abandona qualquer resquício de orgulho e
humilha-se, atira-se ao chão, beijando os rotos panos da roupa da cruel
senhora. Suplica: “Sabes que tornar-me-ei rei em breve! Por que ages assim, desta maneira tão
impiedosa?”
E
a Morte... : “Porque eu posso, meu caro!”.
E
com a foice fatal, arrebatou-lhe a vida, deixando apenas seu corpo inerte
atirado à terra dura, sob o som dos trovões e do relinchar dos cavalos.
“Eu posso tudo: eu sou a Morte. Viva la Muerte!”.
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