quinta-feira, janeiro 31, 2013

Gata Rainha


Eu gostaria tanto de te apresentar Dana, a minha gatinha siamesa. Sabe, desde o momento em que a vi, no lar de animais abandonados, nasceu um amor muito forte entre nós dois, difícil mesmo de explicar.
            Lembro que naquele tempo eu queria muito uma companhia, que me fizesse esquecer que eu estava tão sozinho. E com aquela elegância felina, coroada por lindos olhos azuis e pêlos prateados, acho que fiquei hipnotizado. Nem dei atenção aos outros gatos disponíveis.
            Desde então passamos a morar, ela e eu, em meu apartamento. No prédio há quem me censure, dizendo que não é recomendado ter um gato em casa, porque transmite asma e outras doenças. Mas Dana não tem nada disso. Ela é a gata mais limpa e saudável que existe. Tenho muito luxo com ela: só come da melhor comida, tem uma caminha muito limpa e confortável para dormir, toma todas as vacinas e, acima de tudo, recebe muito carinho de seu dono.
            Sabe, moça, você também é linda, mas com todo o respeito, nada é mais fofinho do que a minha Dana. Queria que você visse quando eu pego uma varinha para atormentá-la. De brincadeira, é óbvio. Ela fica maluca, dando aqueles tapinhas tão bonitinhos como os gatos fazem. O que mais gosto de ver, nessas horas, é quando ela mostra as unhas, agarra a ponta da varinha e a leva até a boca.
            Mas essa é só uma das brincadeiras que fazemos. O que ela mais ama mesmo é ficar se roçando em mim. Basta eu chegar em casa para a Dana sair de onde estiver e vir correndo até minhas pernas, ronronando, implorando por carinho.
            Quer conhecê-la hoje? Agora mesmo? Ah, eu sabia que você não ia resistir. Quando descobri que você também amava gatos, tive a certeza de que era uma boa pessoa. E se a minha Dana gostar de você, vai ser melhor ainda.
            Venha, vamos conhecer minha casa. Vou pagar a conta e já volto.
            O que achou do restaurante? É, eu também gostei muito. Pena que eles não permitem levar as sobras para viagem. A Dana adora salmão. Bem, a noite está ótima, e não se pode ter tudo o quer, não é? E ela é compreensiva: não vai ficar chateada se eu chegar de mãos abanando.
            Olha, só não estranhe caso ela pareça um pouco fria quando a gente chegar. É ciúme, o que é totalmente normal. Minha última namorada não foi aprovada pela minha gata. As duas viviam se estranhando, como se uma achasse que perderia o lugar para a outra. E foi por isso que desta vez procurei alguém que gostasse de gatos. Assim não vou correr o risco de ser abandonado, da noite para o dia, como me aconteceu.
            É, você ouviu direito: “abandonado”. Foi isso mesmo. Não sei o que fiz para merecer algo assim. Antigamente era sempre eu quem terminava as relações, e aquela ingrata aprontou isso comigo. Fazer o que? Quem mandou eu não ouvir os conselhos da minha mãe e, principalmente, da Dana?
            Você não vai fazer isso, vai? Me abandonar? Se não gostar de alguma coisa que eu fizer ou falar, basta um diálogo para resolvermos tudo. Comigo é simples assim. Não precisa se precipitar.
            Ai, olha só quem fala! Mal nos conhecemos e já estou falando em discutir a relação. Não ligue, está bem? Eu falo umas besteiras de vez em quando. Veja, este é o meu prédio. Vamos chegar quietinhos, porque depois das dez é proibido faz barulho.
            No dia em que ela se foi? Não, não havíamos brigado. Estávamos bem, ao menos em minha opinião. A única coisa bizarra que aconteceu foi um sonho muito esquisito que tive naquela noite. Sonhei que a Dana miava desesperada para a lua cheia, como se estivesse pedindo algo, sabe? Tive a sensação de que ela estava prestes a parir filhotes, ou algo assim, o que não seria nada mal. Imagina só que lindos seriam os gatinhos siameses! Mas ela não estava prenha, e depois passou a gritar desesperadamente. O sonho parecia muito real, e fiquei particularmente assustado quando ela começou a se contorcer no chão da cozinha, e a arregalar os olhos. Eu não conseguia me mexer e também não acordava para dar fim àquele terrível pesadelo. Então as coisas ficaram mais feias, quando notei que o corpo dela ia se esticando. Cada pedacinho da gata foi crescendo, enquanto ela uivava de dor. A impressão que me deu foi a de um lobisomem se transformando, só que ao contrário. Era um gato virando gente!
            É, eu te falei que foi um sonho muito esquisito.
            Logo depois daquela cena chocante no meu pesadelo, vi que ficou estirada no chão uma criatura muito próxima de um ser humano. Tinha formas femininas, porém era coberta de pêlos por todo o corpo e tinha unhas afiadas. Só não pude ver o rosto, porque estava virado para o chão. Mas era uma mistura de mulher e gato. Louco, não?
            Quando acordei na manhã seguinte, pensei: “Credo, devo ter comido demais e não caiu bem no estômago”. E assim que levantei fui correndo procurar a Dana, todo preocupado, achando que ela poderia estar mal.
            Mas para meu alívio ela estava lá na cozinha, lambendo as patinhas, bem bonitinha. Foi uma visão do Céu saber que ela estava bem. Só não lhe abracei e dei um beijo porque vi que ela tinha acabado de vomitar uma bolinha de pêlo.
            Naquele dia eu levantei tão afobado por causa dela que nem percebi que estava sozinho na cama.
            É, foi assim que percebi que a minha ex havia se mandado da minha vida. Saiu no meio da noite. Nem um bilhete ela deixou, acredita? Depois dizem que os gatos é que abandonam os donos...
            Pronto, já te contei. Agora chega de falar do passado. Vamos nos ater ao agora. Aceita uma bebida? Sim, prometo que é só essa e depois te levo para sua casa. Conte mais sobre você. Parece que só eu é que falo! Normalmente eu não sou assim. Deve ser minha ansiedade. Ah, você sabe o motivo. É que estamos aqui, no escurinho, só nós dois, você com esse vestido tão sensual...
            Ai, desculpa. Eu bebi um pouco demais hoje. Normalmente não bebo nada. Juro! Mas como eu prometi, é somente mais esse e pronto. Já terminou seu vinho? Ótimo, deixa só eu pegar as chaves do carro e vamos indo.
            Prontinho. Está tudo bem aí no sofá? Consegue me ouvir? Está vendo minha mão acenando na frente dos seus olhos? E esse beliscão, sente? Nadinha? Maravilha! Ninguém ia querer que você gritasse. Esses vizinhos são muito chatos. São capazes de chamar a polícia! Foi por isso que coloquei um remedinho na sua taça. Agora você pode ver tudo, mas não conseguirá se mexer, nem gritar.
            Já deve estar quase na hora da Dana.
            Vocês nem se conheceram direito. Eu queria tanto que se dessem bem. Uma pena essa gata ser tão ciumenta. Mas eu a amo, você sabe.
            Não fique assustada assim, moça. Pouca gente teve a oportunidade de presenciar o que você vai ver agora. Fique deitadinha aí que eu já volto com a minha gatinha.
            Vol-ta-mos! Minha Dana não é ainda mais linda quando assume essa forma?
O que? Vai dizer que não sabia que nós, homens, nos amarramos em uma mulher-gato? Talvez este não seja ainda o padrão de beleza criado pela mídia, com todo esse pêlo no corpo, os dentes pontudos, as garrinhas nos dedos e o focinho achatado. Mas pense bem: foram quase três séculos sendo uma gata, tendo que tantas vezes revirar o lixo para se alimentar! É difícil voltar ao normal assim, do dia para a noite. O corpo humano é muito complexo! Requer muito sangue nas veias.
            É por isso, garota, que você está aqui hoje. A Dana precisa de algumas coisinhas suas para poder deixar de ser definitivamente um animalzinho e voltar a ser um mulherão. Não vai doer nada. Bem, se eu fosse um mau sujeito, é claro que doeria. Mas como tenho bom coração, te dei essa anestesiazinha. Vem, Dana! Aproveita que a nossa convidada está bem acomodada no sofá. Vem se alimentar para definitivamente voltar a ser a rainha que sempre foi e me deixar ser seu rei.        

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