quarta-feira, setembro 09, 2009

DECISÃO CORRETA (Henry James)

I
Quando, após a morte de Ashton Doyne — apenas três meses depois —, George Withermore foi procurado, como se diz, a propósito de um “livro”, a comunicação chegou-lhe diretamente de seus editores, que haviam sido, e na verdade muito mais, também os de Doyne; mas ele não ficou surpreso ao saber, durante a entrevista que em seguida eles lhe solicitaram, que uma certa urgência com relação à publicação, em breve, de uma biografia, viera da viúva de seu falecido cliente. As relações de Doyne com sua mulher haviam sido, como era do conhecimento de Withermore, um capítulo muito especial — que se mostraria, a propósito, muito delicado para o biógrafo; mas uma percepção do que ela perdera, e até mesmo de suas deficiências, deixara-se trair pela pobre mulher, nos primeiros dias de sua perda, o bastante para deixar qualquer observador iniciado na expectativa de algum gesto de compensação, algum patrocínio até mesmo exagerado dos interesses de um nome ilustre. George Withermore era — assim julgava-se ele — um iniciado; contudo, o que ele não esperava era ouvir que ela o mencionara como a pessoa em cujas mãos colocaria sem demora o material para um livro.
Esse material — diários, cartas, memorandos, anotações, documentos de muitos tipos — era propriedade da viúva, e ela detinha todo poder sobre ele, sem qualquer restrição ou reserva relativa à sua parte na herança; portanto, estava livre para fazer o que desejasse — livre, especialmente, para não fazer nada. O que Doyne teria disposto, tivesse ele tempo para fazê-lo, poderia ser apenas objeto de suposições e de adivinhações. A morte levara-o muito prematura e subitamente, e era uma pena que os únicos desejos por ele expressos, segundo se sabia, eram os de que fossem absolutamente desconsiderados. Ele ficara inacabado — essa fora sua peculiaridade; e o fim estava imperfeito e necessitava de remendos. Withermore estava plenamente consciente dos laços que os uniam, mas não menos de que ele próprio era relativamente obscuro. Era jovem, um jornalista, um crítico, alguém que cavava a existência dia a dia, ainda com pouco, como se dizia, a apresentar. Seus escritos eram escassos e de pouca importância, suas relações, limitadas e indefinidas. Doyne, por outro lado, vivera o bastante — acima de tudo, possuíra talento o bastante — para se tornar famoso, e entre seus muitos amigos, também cercados de prestígio, havia vários, sobretudo aqueles que conheciam sua mulher, que lhe pareceriam ainda mais interessante.
A preferência que ela, indubitavelmente, declarara — e o fizera de um modo indireto, polido que lhe deixou uma margem de liberdade — fez com que nosso jovem sentisse que devia ao menos veda e que haveria de qualquer modo muito sobre o que conversar. Ele imediatamente escreveu-lhe, ela com igual presteza indicou uma hora e eles se explicaram. Mas desse encontro ele saiu consideravelmente mais convicto de sua idéia inicial. Ela era uma mulher estranha, e ele nunca a julgara agradável; mas havia algo na sua impaciência atarefada, desajeitada que o comovia agora. Ela queria que o livro fosse escrito, e a pessoa, do grupo de seu marido, que ela provavelmente acreditava poder manipular mais facilmente deveria sob todos os aspectos ajudar a escrevê-lo. Ela não havia levado Doyle muito a sério durante sua vida, mas a biografia deveria ser uma resposta convincente a toda e qualquer incriminação a ela própria. Sobre como tais livros eram escritos, ela muito pouco sabia, mas investigara e aprendera algo. Causou um certo alarme a Withermore, de início, perceber que ela desejava algo volumoso. Ela falava em “volumes” — mas ele tinha suas próprias idéias a esse respeito.
“Pensei imediatamente em você, como ele teria feito”, ela dissera quase no momento em que surgiu diante dele em seus amplos trajes de luto — com seus grandes olhos negros, sua grande peruca negra, seus grandes leques e luvas negros, sua desolada, feia, trágica, mas impressionante e, como se poderia julgar, de um certo ponto de vista, “elegante” presença em geral. “Dentre todos, você era de quem ele mais gostava; ah, muito mais!” — e isso foi mais do que o suficiente para virar a cabeça de Withermore. Pouco importava que depois se perguntasse se conhecera Doyne o bastante, como ocorreria, com certeza. Ele diria a si mesmo, de fato, que o testemunho dela sobre essa questão dificilmente teria contado. Anda assim, não há fumaça sem fogo; ela sabia ao menos o que queria dizer, e ele não era um indivíduo a quem ela poderia ter interesse em lisonjear. Eles subiram juntos, sem demora, ao escritório vazio do grande homem, que ficava na parte posterior da casa e dava para o espaçoso jardim de inverno — um belo e inspirador cenário, segundo o pobre Withermore — comum às casas ricas.
“Você pode perfeitamente trabalhar aqui, se quiser”, disse a sra. Doyne; “terá este lugar somente para si — eu o reservarei para você; e assim, especialmente às noites — não acha? — servirá às mil maravilhas para sua tranqüilidade e privacidade.”
Maravilhado, de fato, era como o jovem se sentia ao olhar a sua volta — após ter explicado que, como seu trabalho regular era num jornal vespertino e suas horas anteriores, ainda por um longo tempo, estavam normalmente tomadas, ele viria sempre à noite. A presença de seu amigo desaparecido ainda pairava no lugar; tudo que eles tocavam fizera parte da vida dele. Por hora, isso tudo era excessivo para Withermore — uma honra grande demais e até mesmo uma atenção grande demais. Memórias ainda recentes retornaram, e fizeram com que seu coração batesse mais forte, e seus olhos se enchessem de lágrimas, a pressão de sua lealdade parecia mais do que ele poderia suportar. Ao ver suas lágrimas, também as da sra. Doyne marejaram-lhe os olhos, e ambos, por um instante, apenas olharam-se. Ele quase esperava que ela exclamasse: “Ah!, ajude-me a sentir o que você sabe ser meu desejo sentir!” E, após um momento, um deles disse, com a viva aprovação do outro, não importava qual: “É aqui que estamos com ele”. Mas foi decididamente o jovem a dizer, antes de deixarem a sala, que era “aqui que ele estava com eles”.
O jovem começou a vir tão logo pôde, e foi então que, no mesmo instante, no encantador silêncio, entre a lâmpada e o fogo, e com as cortinas fechadas, que uma certa consciência mais vivida invadiu-o. Ele viera de uma sombria Londres de novembro; atravessara a grande e silenciosa casa, e subira as escadas onde encontrara em seu caminho apenas rapidamente com uma criada obedientemente muda, ou a visão, pelo vão de uma porta, dos trajes régios de luto da sra. Doyne e de seu rosto trágico e aprovador; e depois, com um simples toque da porta bem-feita que produzia um estalido tão preciso e agradável, fechou-se lá durante três ou quatro horas cordiais com o espírito — sempre fizera questão de as caracterizar assim — de seu mestre. Ficou não pouco amedrontado quando, na primeira noite mesmo, tomou consciência de que ficara, na verdade, profundamente impressionado, no caso todo, pela expectativa, pelo privilégio e pela delícia dessa sensação. Ele não refletira — agora percebia-o —, não ponderara claramente sobre a questão do livro — acerca do qual havia aqui, até mesmo anteriormente, muito a pensar; simplesmente deixara que seu afeto e admiração — para não falar de seu orgulho gratificado — acedessem plenamente à tentação que a sra. Doyne lhe apresentara.
Como saber, sem maiores reflexões, ele poderia começar a se indagar, que o livro era, de um modo geral, desejável? Que justificativa jamais recebera ele do próprio Ashton Doyne para uma aproximação tão direta e, de certo modo, tão informal? Respeitável era a arte da biografia, mas havia vidas e vidas, havia temas e temas. Ele recordava-se vagamente, a esse respeito, de palavras há muito ditas casualmente por Doyne com relação a elaborações contemporâneas, indícios de seu juízo exigente com relação a outros heróis e a outras paisagens. Ele até mesmo lembrava-se de como seu amigo, em certos momentos, parecia ter-se mostrado da opinião de que a carreira “literária” poderia — salvo no caso de um Johnson e um Scott, com a ajuda de um Boswell e de um Lockhart — ter-se dado por satisfeita em ser representada. O artista era o que ele fazia — e nada mais. E contudo, por outro lado, como deixaria ele, George Withermore, um pobre diabo, de agarrar-se à oportunidade de passar seu inverno num convívio tão abastado? Fora simplesmente maravilhoso — essa era a verdade. Não haviam sido os “termos” dos editores — não obstante eles fossem, como haviam dito no escritório, satisfatórios; fora o próprio Doyne, sua companhia, seu contacto, sua presença — fora particularmente a decorrência disso tudo, a possibilidade de um relacionamento mais íntimo do que houvera em vida. Era estranho que, de ambas as coisas, fosse a morte a possuidora de menos mistérios e segredos! Na primeira noite em que nosso jovem ficou a sós no aposento, pareceu-lhe que seu mestre e ele estavam real-mente juntos pela primeira vez.
II
A sra. Doyne, na maioria das vezes, deixara-o propositadamente a sós, mas em duas ou três ocasiões surgira para verificar se ele não precisava de nada, e ele tivera a oportunidade de agradecer-lhe imediatamente o discernimento e o zelo com que ela lhe facilitara o trabalho. Até certo ponto, ela própria examinara o material e já conseguira reunir diversos grupos de cartas; colocara nas mãos dele, além disso, todas as chaves de gavetas e armários e lhe dera informações úteis acerca dos lugares prováveis de diferentes assuntos. Em suma, ela lhe entregara todo o material possível e, quer seu marido confiara nela ou não, ela, ao menos — isso estava claro — confiava no amigo de seu marido. Todavia, tomou conta de Withermore a impressão de que, a despeito de todas essas atenções, ela ainda não estava tranqüila e de que uma certa ansiedade não aplacada continuava até mesmo a acompanhar sua confiança. Embora tivesse cercado-o de consideração, ela ao mesmo tempo estava sensivelmente ali: ele a sentia, embora mediante um sexto sentido extremamente sutil de que toda a conexão já fora posta em jogo, pairar, no silêncio da noite, no alto da escadaria e no outro lado das portas, a inferir-se do farfalhar mudo de suas saias o sinal de suas vigílias e expectativas. Uma noite, quando, à mesa de seu amigo, ele estava absorto nas profundezas da correspondência, aconteceu-lhe assustar-se e virar-se, com a impressão de que havia alguém atrás de si. A sra. Doyne entrara sem que ele ouvisse a porta e deu-lhe um sorriso forçado quando ele se pôs em pé de um salto. “Espero”, disse ela, “não tê-lo assustado”.
“Só um pouco — eu estava tão absorto... Foi como se, por um instante”, o jovem explicou, “fosse ele próprio.”
A singularidade de seu rosto aumentou com sua surpresa. “Ashton?”
“Ele parece tão próximo”, disse Withermore.
“A você também?”
Isso compreensivelmente o espantou. “Você também sente a presença dele?”
Ela hesitou, imóvel no lugar onde estivera de início, mas olhando em volta da sala como se para penetrar em seus cantos mais escuros. Tinha ela um modo de levantar ao nível do nariz o grande leque negro, que aparentemente nunca abandonava e com o qual cobria assim a parte inferior do rosto, que tornava seus olhos um tanto duros, acima dele, ainda mais ambíguos-vagos. “Às vezes.”
“Aqui”, continuou Withermore, “é como se ele pudesse entrar a qualquer momento. Foi por isso que me assustei há pouco. Faz tão pouco tempo que ele realmente... foi apenas ontem. Sento-me em sua cadeira, folheio seus livros, uso suas penas, atiço seu fogo, exatamente como se, sabendo que ele retornaria agora de uma caminhada, eu tivesse subido até aqui, satisfeito, a aguardá-lo. É delicioso — mas estranho.”
A sra. Doyne, ainda com seu leque levantado, ouvia com interesse. “Isso o preocupa?”
“Não; agrada-me.”
Ela hesitou novamente. “Você já sentiu como se ele estivesse... ahm... pessoalmente na sala?”
“Bem, como disse agora há pouco”, riu seu companheiro, “ao ouvi-la atrás de mim pareceu-me senti-lo. Afinal, não é exatamente o que desejamos?”, perguntou ele, “tê-lo conosco?”
“Sim, como você disse que ele estaria — na primeira vez.” Ela encarou-o, concordando plenamente. “Ele está conosco.”
Ela era um tanto solene, mas Withermore apenas sorriu. “Então devemos mantê-lo. Devemos fazer apenas o que ele gostaria que fizéssemos.”
“Ah!, exatamente isso, é claro — apenas. Mas se ele está aqui...?” E seus olhos melancólicos pareciam sugerir, numa vaga ansiedade, sobre seu leque.
“Isso mostra que ele está satisfeito e quer ajudar? Sim, com certeza; deve estar a mostrar isso.”
Deu um leve suspiro e olhou novamente em volta da sala. “Bem”, disse ela enquanto se despedia, “lembre-se de que eu também desejo ajudar”. E com isso, quando ela se fora, convenceu-se de... que ela viera simplesmente para ver se ele estava bem.
Ele estava cada vez melhor, como descobriu em seguida, surpreso, pois à medida que começou a envolver-se no seu trabalho, assim lhe parecia, aproximou-se ainda mais da idéia da presença pessoal de Doyne. Desde que essa fantasia começara a envolvê-lo, ele a saudava, chamava-a, estimulava-a, até mesmo lembrava-se dela com prazer, ansiando durante todo o dia para senti-la renovar-se à noite e esperando pela noite, exatamente como um casal de amantes aguardariam a hora de seu encontro. Os acasos mais fortuitos animavam-na e confirmavam-na, e ao fim de três ou quatro semanas ele decididamente terminara por vê-la como a consagração de seu empreendimento. Não era ela a resposta ao que Doyne teria pensado do que eles estavam fazendo? O que eles estavam fazendo era o que ele desejava que fosse feito, e eles podiam ir em frente, passo a passo, sem vacilações ou dúvidas. Com efeito, havia momentos em que Withermore regozijava-se ao sentir essa certeza: por vezes, profundamente mergulhado em alguns dos segredos de Doyne, era particularmente agradável poder crer que Doyne desejava, por assim dizer, que ele os soubesse. Ele estava aprendendo muitas coisas que não imaginara, abrindo muitas cortinas, forçando muitas portas, desvendando muitos enigmas, percorrendo os bastidores, em geral, como se diz, de quase tudo. Era em uma dessas mudanças bruscas de direção das perambulações mais obscuras pelos “bastidores” que ele realmente, de súbito, sentia-se mais fortemente, de um modo íntimo, perceptível, face a face com seu amigo; de tal modo que ele dificilmente poderia dizer, naquele instante, se seu encontro ocorrera no corredor estreito e comprimido do passado, ou na hora e no lugar que ele realmente ocupava. Fora em 1867, ou apenas do outro lado da mesa?
Felizmente, de qualquer modo, até mesmo à luz mais vulgar que a vida pública poderia jamais lançar, haveria o acontecimento magnífico do modo como Doyne estava “mostrando-se”. Ele estava mostrando-se maravilhosamente bem — melhor ainda do que um sectário como Withermore poderia ter imaginado. Todavia, durante todo o tempo igualmente, como esse sectário poderia descrever a alguém o estado especial de sua própria consciência? Não era algo de que se pudesse falar — era somente algo que se sentia. Havia momentos, por exemplo, em que, ao inclinar-se sobre seus papéis, a respiração leve do anfitrião morto estava tão nitidamente em seus cabelos quanto seus próprios cotovelos na mesa diante de si. Havia momentos em que, pudesse ele levantar os olhos, o outro lado da mesa teria lhe mostrado seu companheiro tão vividamente quanto a luz sombreada da lâmpada lhe mostrava sua página. Por que ele não podia levantar os olhos era assunto somente dele, pois a situação seguia regras — como era natural — de profundas sutilezas e delicados receios, por temor de um progresso demasiado súbito ou demasiado descortês. O que pairava no ar com maior intensidade era que, se Doyne estava lá, não era tanto por si mesmo quanto pelo jovem sacerdote em seu altar. Ele hesitava e protelava, ia e vinha e, em meio aos livros e papéis, movia-se quase como um silencioso, discreto bibliotecário, a executar certas tarefas, a oferecer auxílios discretos, tal como aprazia aos homens de letras.
O próprio Withermore, entrementes, ia e vinha, mudava de lugar, vagueava em buscas ora definidas, ora vagas; e mais de uma vez, descendo um livro de uma estante e nela encontrando marcas do lápis de Doyne, ele sentira-se estimulado e perdido, ouvira documentos sobre a mesa atrás de si suavemente moverem-se e agitarem-se, encontrara literalmente, ao seu retorno, alguma carta que pusera em lugar inadequado ser colocada novamente à vista, uma miscelânea desfeita ao abrir-se um velho periódico na data exata que ele desejava. Como lhe fora possível, certa vez, dirigir-se a uma caixa ou gaveta em especial, em meio a cinqüenta receptáculos, que o auxiliaria, não fosse pelo fato de que seu místico ajudante, numa bela previsão, balançar sua tampa ou entreabri-la, exatamente de modo a lhe atrair a atenção? — a despeito, não obstante, de interrupções e períodos nos quais, caso se pudesse realmente ter olhado, ver-se-ia alguém em pé, ao lado da lareira, ligeiramente afastado e profundamente atento — alguém a fitar outro com um olhar um pouco mais duro do que na vida real.
III
Que essa relação auspiciosa de fato existira, permanecera durante duas ou três semanas, estava suficientemente provado pelo despertar da angústia mediante a qual nosso jovem tornou-se consciente de que havia, por algum motivo, desde uma certa noite, começado a perdê-la. O sinal disso foi uma percepção abrupta, atônita — quando ele perdera uma página maravilhosa não publicada que, por mais que procurasse, permanecia tolamente, irremediavelmente perdida —, de que esse estado protegido corria, afinal, o risco de alguma confusão e até mesmo de algum enfraquecimento. Se, para a felicidade do trabalho, Doyne e ele haviam, desde o início, estado juntos, a situação, poucos dias após a primeira vez em que desconfiara dela, passou pela estranha mudança de deixar de sê-lo. Foi isso que ocorreu, ele disse para si, a partir do momento em que a impressão de simples amontoado e de abundância surpreendentemente, na satisfação com que via seu material, substituiu sua presunção prazerosa de um curso desimpedido e de uma marcha veloz. Durante cinco noites ele lutou; e então, sempre longe de sua mesa, caminhando a esmo pela sala, consultando suas referências somente para deixá-las de lado, olhando através da janela, atiçando o fogo, pensando estranhos pensamentos e à escuta de sinais e sons, não como os supunha ou imaginava, mas os que inutilmente desejava e conjurava, ele decidiu que estava, ao menos naquele momento, desamparado.
Mas o extraordinário foi tornar-se esse fato motivo não somente de tristeza por não sentir a presença de Doyne, mas também de profunda inquietação. De certo modo, era mais estranho que ele não estivesse lá do que fora sua presença constante — na verdade, tão estranho, por fim, que os nervos de Withermore acabaram por ser afetados de modo bastante despropositado. Eles haviam se afeiçoado bastante complacentemente ao que constituía uma ordem inexplicável e reservado seu estado mais agudo ao retorno ao normal, à substituição do falso. E estavam excepcionalmente descontrolados quando, finalmente, uma noite, após resistir por uma ou duas horas, ele simplesmente saiu intempestivamente da sala. Tornara-se agora, pela primeira vez, impossível para ele permanecer lá. A esmo, mas ofegando um pouco e indubitavelmente como um homem assustado, ele caminhou pelo seu corredor costumeiro e alcançou o topo da escada. Lá, viu a sra. Doyne embaixo, olhando para ele exatamente como se soubera que ele viria; e o mais singular de tudo era que, embora estivesse consciente de que não tivera nenhuma intenção de recorrer a ela e de que fora impelido somente a acalmar-se pela fuga, vê-la naquela atitude fez com que ele reconhecesse seu fundamento, rapidamente a sentisse como parte de alguma opressão monstruosa que se estava fechando em torno de ambos. Foi maravilhoso como, num simples e moderno salão londrino, entre os tapetes de Tottenham Court Road e a luz elétrica, da senhora alta e em negro até ele e dele novamente até ela, lá embaixo, veio-lhe a certeza de que sabia o que significava o fato de ela olhar para ele como se ele o soubesse. Ele desceu imediatamente, ela entrou em sua sala particular no andar térreo e lá, em seguida, com a porta fechada, eles confrontaram, ainda em silêncio e nos rostos uma expressão estranha, as confissões que haviam nascido subitamente desses dois ou três movimentos. A descoberta do motivo pelo qual seu amigo o abandonara fez com que Withermore ofegasse. “Ele esteve com você?
Com isso expressou-se tudo — expressou-se tão completamente que nenhum deles teve de explicar e, quando um “O que você imagina estar acontecendo?” de súbito ouviu-se, entre eles, pareceu que tanto um quanto outro o havia dito. Withermore olhou em volta da pequena e iluminada sala na qual, noite após noite, ela estivera a viver sua vida do mesmo modo que ele estivera vivendo a sua lá em cima. Ela era bonita, aconchegante, rosada; mas ela sucessivamente ali sentira o que ele sentira e ali ouvira o que ele ouvira. O efeito que a sra. Doyne produzia ali — negro irreal, ostentoso e extravagante, sobre rosa escuro — era o de uma estampa colorida “decadente”, um cartaz da escola da moda. “Você compreendeu que ele me abandonou?”, perguntou ele.
Ela visivelmente desejava esclarecê-lo. “Esta noite — sim. Eu compreendi tudo.”
“Você sabia... antes... que ele estava comigo?”
Ela hesitou novamente. “Senti que ele não estava comigo. Mas na escadaria...”
“Sim?”
“Bem... ele passou, mais de uma vez. Ele estava na casa. E à sua porta...”
“Então?” ele continuou, quando ela mais uma vez vacilou.
“Se eu parasse, poderia algumas vezes saber. E por sua expressão”, acrescentou ela, “esta noite, de qualquer forma, eu sabia como você estava.”
“E foi por isso que você saiu?”
“Julguei que você viria até mim.”
A estas palavras, ele estendeu a mão para ela, e eles assim, por um mi-nuto, em silêncio, mantiveram as mãos apertadas. Não havia uma presença singular para ambos, agora — nada mais singular do que a de um para o outro. Mas o lugar subitamente tornara-se como que santificado, e Withermore transmitiu-lhe novamente sua ansiedade. “O que está acontecendo, então?”
“Eu apenas quero fazer a coisa realmente certa”, replicou ela após um momento.
“E nós não o estamos fazendo?”
“Não sei. Você não está?”
Ele ponderou também. “O melhor que posso, creio eu. Mas precisamos pensar.”
“Precisamos pensar”, ecoou ela. E eles realmente pensaram — pensaram intensamente, juntos, pelo resto da noite, pensaram cada qual em seu canto — Withermore pelo menos podia responder por si — durante os muitos dias que se seguiram. Ele interrompeu brevemente suas visitas e seu trabalho, tentando, em meditação, apanhar-se no ato de algum erro que pudesse explicar a perturbação de ambos. Haveria ele tomado, sobre alguma questão importante — ou parecera haver tomado — alguma passagem errada ou um ponto de vista errado? Teria ele em algum lugar inadvertidamente mentido ou insistido inadequadamente? Voltou por fim com a idéia de ter-se deparado com duas ou três questões às quais ele poderia estar tratando de maneira equivocada; depois disso, ele teve, no andar superior, outro período de agitação, logo seguido de outra conversação, no andar inferior, com a sra. Doyle, que ainda estava perturbada e ansiosa.
“Ele está aqui?”
“Ele está aqui.”
“Eu sabia!”, replicou ela com um estranho brilho de triunfo. E então, como que para esclarecer: “Ele não esteve novamente comigo”.
“Nem comigo para ajudar”, disse Withermore.
Ela ponderou. “Não para ajudar?”
“Não consigo entender — estou desnorteado. Faça o que fizer, sinto que estou errado.”
Ela cobriu-o por um momento com sua dor pomposa. “Como você o sente?”
“Ora, por coisas que acontecem. As coisas mais estranhas. Não consigo descrevê-las — e você não acreditaria.”
“Ah!, sim, eu acreditaria!”, murmurou a sra. Doyne.
“Bem, ele intervém”, Withermore tentou explicar. “Para onde quer que eu me volte, encontro-o.”
Ela seguiu-o atentamente. “Encontra-o?”
“Deparo-me com ele. Ele parece surgir lá, diante de mim.”
A sra. Doyne, olhando-o fixamente, esperou um pouco. “Você quer dizer que o vê?”
“Sinto como se a qualquer momento pudesse vê-lo. Estou perplexo. Estou chocado.” E então acrescentou: “Tenho medo”.
Dele? ”, perguntou a sra. Doyne.
Ele pensou. “Bem... do que estou fazendo.”
“O que, então, de tão terrível, você está fazendo?”
“O que você propôs que eu fizesse. Entrar na vida dele.”
Ela mostrou, em sua atitude solene, um novo sobressalto. “E você não gosta disso?”
“Ele gosta? Essa é a pergunta. Nós o desnudamos. Nós o apresentamos numa bandeja. Como se chama isso? Nós o mostramos ao mundo.”
A pobre sra. Doyne, como se sob uma ameaça e diante de uma desventura de difícil reparação, ponderou sobre essas palavras, por um instante, com uma tristeza mais profunda. “E por que não o faríamos?”
“Porque não sabemos. Existem naturezas, existem vidas que se retraem. Ele pode não desejá-lo”, disse Withermore. “Nunca lhe perguntamos.”
“Como poderíamos? ”
Ele ficou em silêncio por um momento. “Bem, perguntemos a ele agora. Foi isso, afinal, que nossa iniciativa, até agora, representou. Nós o impusemos a ele.”
“Então — se ele tem estado conosco — tivemos sua resposta.”
Withermore falou agora como se soubesse no que acreditar. “Ele não tem estado ‘com’ nós ambos — ele tem estado contra nós.”
“Então, por que você julga...”
“O que eu julguei, de início... que o que ele deseja é fazer-nos sentir sua simpatia? Porque, em minha simplicidade inicial, eu estava enganado. Eu estava — não sei como chamá-lo — tão empolgado e encantado que não compreendi. Mas compreendo, finalmente. Ele apenas queria comunicar-se. Ele esforça-se por sair da escuridão; de lá de seu mistério, ele dirige-se a nós; ele nos faz débeis sinais de seu horror.”
“Horror?”, disse ofegante a sra. Doyne, com o leque à altura de sua boca.
“Do que estamos fazendo.” Ele conseguia, agora, juntar todas as peças. “Vejo agora que inicialmente...”
“Sim, o quê?”
“Tinha-se apenas que sentir que ele estava lá, e portanto não indiferente. E a beleza disso me enganou. Mas ele está lá como um protesto.”
“Contra a minha Biografia?”, gemeu a sra. Doyle.
“Contra qualquer biografia. Ele está lá para preservar sua biografia. Ele está lá para ser deixado em paz.”
“Então você desiste?”, ela quase gritou.
Ele não poderia senão concordar com ela. “Ele está lá como um aviso.”
Por um momento, diante disso, eles trocaram um olhar intenso. “Você está com medo!”, disse ela finalmente.
Isso o afetou, mas ele insistiu. “Ele está lá como uma maldição!”
Com isso eles se despediram, mas apenas por dois ou três dias; de tal forma a última palavra dela continuou a soar em seus ouvidos que, entre sua necessidade real de satisfazê-la e uma outra necessidade a ser atendida no momento, ele sentiu que não deveria ainda arriscar-se. Por fim, voltou na sua hora habitual e encontrou-a em seu lugar de sempre. “Sim, estou com medo”, anunciou, como se houvesse examinado-o muito bem e soubesse agora o que tudo aquilo significava. “Mas imagino que você não está.”
Ela vacilou, nada respondendo. “O que você teme?”
“Bem, que se continuar eu o verei.
E então...?”
“Ah!, então”, disse George Withermore, “eu deveria desistir!”
Ela ponderou com seu ar altivo, porém sincero. “Penso, você sabe, que devemos ter um sinal claro.”
“Você quer que eu tente novamente?”
Ela hesitou. “Você sabe o que significa — para mim — desistir.”
“Ah!, mas você não precisa”, disse Withermore.
Ela pareceu cismar, mas logo continuou. “Isso significaria que ele não tomará de mim...” Mas ela deteve-se, tomada de desânimo.
“Bem, o quê?”
“Tudo”, disse a pobre sra. Doyne.
Ele encarou-a por mais um momento. “Eu também pensei em um sinal claro. Tentarei novamente.”
Quando ele estava se afastando, contudo, ela lembrou. “Mas acho que esta noite nada foi providenciado — nem lâmpada nem fogo.”
“Não importa”, disse ele, do pé da escadaria; “eu encontro as coisas".
Ela respondeu que a porta da sala estaria, de qualquer modo, provavelmente aberta; e retirou-se novamente, como que a aguardá-lo. Ela não teve de esperar muito; embora, com sua própria porta aberta e a atenção concentrada, possa não haver tido uma percepção do tempo semelhante à do seu visitante. Ouviu-o na escada, após algum tempo, e ele logo surgiu à porta, onde, embora não houvesse se precipitado, mas antes se aproximado cautelosamente, relutante e incerto, apareceu por fim, lívido e estupefato.
“Eu desisto.”
“Então você o viu?”
“Na soleira da porta... guardando-a.”
“Guardando-a?” Sua face afogueou-se acima do leque. “Claramente?”
“Imenso. Mas indistinto. Sombrio. Terrível”, disse o pobre George Withermore.
Ela continuou a inquirir. “Você não entrou?”
O jovem afastou-se. “Ele o proíbe!”
“Você diz que eu não preciso”, ela continuou após um momento. “Bem, então eu preciso?”
“Vê-lo?”, perguntou George Withermore.
Ela esperou um instante. “Desistir.”
“Cabe a você decidir.” Quanto a ele, conseguiu apenas cair por fim no sofá, o rosto apoiado nas mãos. Ele não se lembraria depois durante quanto tempo; mas se lembraria de que somente se dera conta, em seguida, de estar sozinho entre os objetos prediletos dela. Assim que ele se pôs de pé, contudo, com essa sensação e a de abrir-se a porta do salão, deparou-se novamente, envolvida na luz, na calidez, no espaço róseo, com a grande presença negra, perfumada, da sra. Doyne. Ele percebeu imediatamente, diante dos olhos enormes, mais soturnos, que o encaravam acima da máscara do leque, que ela havia estado lá em cima; e assim foi que, pela última vez, eles enfrentaram juntos sua estranha indagação: “Você o viu?”, perguntou Withermore.
Ele inferiria mais tarde, pelo modo extraordinário com que ela fechou os olhos e, como se para equilibrar-se, apertou-os com força e durante muito tempo, em silêncio, que, em comparação com a inominável visão da esposa de Ashton Doyne, a sua própria poderia ser classificada como uma libertação. Ele soube, antes que ela falasse, que tudo terminara. “Eu desisto.”

Um comentário:

  1. E ae garoto, blz? Esse conto que vc postou aqui embaixo (Flor, Telefone Moça) é realmente fantástico. Até virou lenda urbana, rsrs. Ah, o conto do Ray Bradbury que vc perguntou lá na Biblioteca se chama O Próximo da Fila. Abraços!

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