segunda-feira, junho 24, 2013

Achados e Perdidos (L.F.Riesemberg)



Tio Vincent administrava um almoxarifado do metrô, e de vez em quando eu passava a tarde com ele. Assim eu podia vagar pela cidade inteira sem pagar nenhum bilhete, pois ele tinha um cartão que liberava a roleta para eu passar de graça. 
Uma das suas atribuições era resgatar as coisas esquecidas pelos passageiros nos vagões e levá-las ao depósito. Eu adorava as histórias que ele contava sobre os objetos mais improváveis que alguém poderia esquecer. Certa vez ele encontrou um par de muletas. Como é que o dono delas voltou para casa? Outra vez apareceu um senhor dizendo ter perdido sua dentadura, e a encontrou lá no depósito. Uma semana depois ele foi devolvê-la, dizendo que tinha se enganado e que aquela não era a dele. E além dos casos bizarros havia alguns muito interessantes, de objetos realmente valiosos que as pessoas perdiam.
-Você nunca ficou com nada, Vincent? - eu perguntava já sabendo a resposta. Ele era honesto demais até para ficar com uma moeda de vinte centavos que não fosse dele.
-Nem fale uma coisa dessas, menino! Tudo o que eu já achei entre as quarenta e oito estações em que trabalho foi devolvido ao dono, ou está esperando por ele no depósito.
-Sim, mas e se ninguém vier buscar? Vocês não podem guardar tudo para sempre, não é?
Ele me explicou que se ninguém aparecesse para buscar os objetos perdidos dentro de dois anos, a empresa podia desfazer-se deles. Porém esse trabalho de descarte estava atrasado, e havia caixas de coisas perdidas completando mais de cinco anos no depósito.
-Quer dizer que nós podemos pegar essas coisas para nós, tio?
Ele coçou a barba, pensativo, e por fim me disse:
-É, teoricamente não é errado ficar com alguma dessas coisas, pois quem a perdeu não tem mais direito de reclamar.
E eu completei:
-Quem não veio buscar em cinco anos, nunca mais vai aparecer!
Eu insisti tanto que ele me levou para conhecer o lugar. Havia uma porta entre as estações 31 e 32, que levava a um barracão cheio de caixas empilhadas formando altos corredores. 
-Nestas não podemos mexer, pois são as mais recentes. As que já passaram do prazo para entrega estão lá no final.
Conforme avançávamos pela fileira, as caixas iam ficando mais velhas e empoeiradas.
-Garoto, vou te deixar aqui, pois preciso resolver algumas coisas. Escolha só um objeto, das caixas com data até 2010. Logo eu apareço para te pegar. Juízo, hein?
Fiquei sozinho no meio daquele mar de relíquias. Em cada caixa estava escrito o mês e o ano em que elas foram guardadas, e assim decidi procurar as coisas mais antigas primeiro.
-Vejamos... abril de 2009... junho de 2008... março de 2005... pelo jeito há coisas com mais de cinco anos aqui.
Arregacei as mangas para não me sujar muito com a poeira, e fui descobrindo caixas cada vez mais velhas atrás das outras. Pensei: "Minha nossa! Tem coisas aqui de antes do meu tio vir trabalhar no metrô...".
Foi uma tarefa demorada e cansativa, mas depois de muito procurar, acabei encontrando a caixa mais antiga de todas, datada de outubro de 1972.
Abri cuidadosamente a tampa de papelão para não rasgar, e olhei seu conteúdo. Eram objetos que estavam desaparecidos há, pelo menos, quarenta anos. Talvez houvesse algo valioso ali. Retirei um isqueiro de metal, uma escova de cabelos,  um chapéu cinza de feltro, um broche do partido comunista... tudo eu ia acumulando em um montinho no chão, para depois devolver como estava. Aos poucos fui esvaziando a caixa, de onde saíram algumas moedas antigas (mas não tão antigas a ponto de valerem alguma coisa), revistas em quadrinhos e um espelho oval. De tudo, o espelho era o mais interessante, pois tinha um cabo de osso com flores esculpidas, e estava tão sujo que mal refletia. Tive que usar a manga da minha camisa para lustrar o vidro. Conforme fui retirando a camada de pó, o meu reflexo ia surgindo. Mas eu ia notando algo estranho conforme o meu rosto tornava-se visível. Aquele ali não era eu. Quem me olhava do outro lado do espelho era um homem de barba negra e roupas antiquadas, que falava alguma coisa. 
-Não! - gritei, e larguei o espelho na caixa.
Tremendo de susto, eu sabia que não havia mais ninguém ali comigo, e achei que eu pudesse ter tido alguma alucinação. Desconfiado, lentamente peguei o espelho novamente e olhei para ele. Um homem estranho, tão assombrado quanto eu, olhava do outro lado, com os olhos arregalados. Devia estar me vendo e, como eu, pensando no absurdo daquela situação. Ele mexia os lábios, mas eu não o entendia.
-Quem é você? Onde você está?
Inutilmente eu perguntava, enquanto ele próprio devia estar fazendo suas interrogações do lado de lá.
Ele afastou o espelho de seu rosto e me mostrou o seu redor. Ele estava no metrô, mas não no metrô que eu conhecia. Tudo o que apareceu no espelho estava levemente alterado, como se não fosse hoje.
-É claro! Você está em 1972... mas como isso é possível?
Já que ele me mostrou onde estava, eu decidi fazer o mesmo, mas não no depósito, pois o homem só veria um amontoado de caixas velhas. Corri com o espelho para a estação e mostrei-lhe as pessoas andando para lá e para cá, com seus aparelhos eletrônicos. Ele fez um sinal indicando que estava impressionado com o que vira, e agradeceu através de um gesto.
O tio Vincent apareceu e me viu com o espelho na mão.
-Ah, então foi isto que você quis pegar?
Eu mostrei para ele, mas ele não se surpreendeu. Era como se ele não visse nada além do próprio reflexo.
-Tio Vincent, você não acha isso fantástico? Eu posso me comunicar com um homem de quarenta anos atrás!
Ele me devolveu o espelho, desdenhando do que vira.
-Isso não é nada, garoto. Estou há tempo demais aqui embaixo para me surpreender com isso. Talvez algum dia eu te mostre algo realmente maravilhoso...
Então saímos de lá, pois ele já havia cumprido o expediente do dia, e o meu espelho mágico tornou-se um espelho comum assim que subimos as escadas para fora do metrô.

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