domingo, maio 12, 2013

O Chamado de Cthulhu



O Chamado de Cthulhu
H.P. Lovecraft

Encontrado entre os papéis do falecido Francis Wayland Thurston, de Boston

“De tais seres ou potestades superiores pode ser concebida uma sobrevivência... uma sobrevivência de um período fantasticamente remoto onde... a consciência se manifestava, talvez, em vultos e formas desde então repelidos pela maré montante da humanidade... formas das quais apenas a poesia e a lenda captaram uma memória fugaz e as chamaram deuses, monstros, seres míticos de todos os tipos e espécies...”
Algernon Blackwood

I
O Horror de Argila

A coisa mais misericordiosa do mundo, acho eu, é a incapacidade da mente humana correlacionar tudo que ela contém. Vivemos em uma plácida ilha de ignorância em meio a mares tenebrosos de infinidade, e não estávamos destinados a chegar longe.
As ciências, cada uma puxando para seu próprio lado, nos causaram poucos danos até agora, mas algum dia a junção das peças do conhecimento disperso descortinará visões tão terríveis da realidade e de nossa pavorosa posição dentro dela que só nos restará enlouquecer com a revelação ou fugir da iluminação mortal para a paz e a segurança de uma nova idade das trevas.
Os teosofistas imaginaram o admirável esplendor do ciclo cósmico no qual o nosso mundo e a raça humana são incidentes transitórios. Eles sugeriram estranhos remanescentes com termos que congelariam o sangue se não fossem mascarados por um suave otimismo. Mas não foi deles que me chegou o especial vislumbre de eras ancestrais proibidas que me arrepia ao lembrar e me enlouquece nos sonhos. Esse vislumbre, como todos os pavorosos vislumbres da verdade, revelou-se de uma hora para outra com a junção acidental de peças separadas, nesse caso, uma velha notícia de jornal e as anotações de um professor já falecido. Espero que ninguém mais junte essas peças. Se eu viver, jamais ajuntarei, deliberadamente, um elo à tão odiosa cadeia, com certeza. Imagino que o professor também pretendia guardar silêncio sobre a parte que sabia, e que teria destruído suas anotações se a morte súbita não o tivesse colhido.
Meu contato com o assunto começou no inverno de 1926 para 1927 com a morte de meu tio-avô George Gammell Angell, Professor Emérito de Línguas Semíticas na Universidade Brow, Providence, Rhode Island. O professor Angell era muitíssimo conhecido como uma autoridade em inscrições antigas e costumava ser consultado por curadores de museus importantes, de forma que muitos se lembrarão de seu falecimento, aos noventa e dois anos de idade. No meio local, o interesse foi intensificado pela obscuridade da causa da morte. O professor fora atingido quando voltava do barco de Newport, caindo de repente, segundo testemunhas, depois de receber o encontrão de um negro com ar de marinheiro que saiu de uma das vielas tenebrosas da ladeira íngreme que servia de atalho do cais até a casa do falecido, na Williams Street. Os médicos não conseguiram detectar nenhuma doença visível e concluíram, depois de um debate confuso, que o fim se devera a alguma obscura lesão cardíaca provocada pela subida apressada de uma ladeira tão íngreme por um homem tão idoso. Na ocasião, não tive por que discordar dessa conclusão, mas ultimamente me sinto inclinado a estranhar... e mais do que estranhar.
Na qualidade de herdeiro e executor testamentário de meu tio-avô, pois ele morreu viúvo e sem filhos, teria de examinar seus papéis com certa meticulosidade, e para esse fim transferi todas as suas pastas e arquivos para minha moradia em Boston. Boa parte do material que eu correlacionei será no futuro publicada pela Sociedade Arqueológica Americana, mas havia uma caixa que me intrigou sobremaneira e não quis expô-la a outras vistas. Ela estava trancada e não consegui encontrar a chave até que me ocorreu olhar a argola de chaves que o professor trazia sempre no bolso. Consegui então abri-la, mas ao fazê-lo deparei-me com um obstáculo maior e ainda mais protegido, pois qual poderia ser o significado do estranho baixo-relevo de argila e os apontamentos, divagações e recortes de jornais desconexos que encontrei? Teria meu tio, em seus últimos anos, se transformado em um crédulo das mais levianas imposturas? Resolvi então procurar o excêntrico escultor responsável por aquela aparente perturbação da paz de espírito de um velho.
O baixo-relevo era um retângulo tosco com menos de uma polegada de espessura e cerca de cinco por seis polegadas de área, de origem ao que tudo indica moderna. A atmosfera e as sugestões de seus motivos estava longe de ser modernas, porém, pois não obstante as excentricidades de cubismo e futurismo serem muitas e alucinadas, elas não reproduzem amiúde aquela regularidade críptica que emerge de documentos pré-históricos. E o grosso daqueles desenhos com certeza parecia ser algum tipo de escrita, conquanto minha memória, embora familiarizada com os papéis e as coleções de meu tio, não conseguiu de maneira alguma identificar aquele tipo particular, ou mesmo inferir suas filiações remotas.
Ao alto desses aparentes hieróglifos havia uma figura com finalidade evidentemente decorativa, embora seu estilo impressionista prejudicasse a formação de uma idéia muito precisa da natureza. Parecia uma espécie de monstro, ou símbolo representando um monstro, cuja forma só poderia ter sido concebida por uma fantasia mórbida. Se digo que minha imaginação um tanto extravagante forjou imagens simultâneas de um polvo, um dragão e uma caricatura humana, não estarei sendo infiel ao espírito da coisa. Uma cabeça carnuda e tentaculada coroava um corpo grotesco, coberto de escamas, com asas rudimentares, mas era o contorno geral do conjunto que o tornava mais aterrorizante. Por trás da figura havia a vaga sugestão de uma paisagem arquitetônica ciclópica.
Exceto por uma pilha de recortes da imprensa, os textos que acompanhavam essa extravagância eram obra recente da mão do Professor Angell, sem a menor pretensão a um estilo literário. O que parecia ser o documento principal se intitulava “CULTO DE CTHULHU”2 em caracteres cuidadosamente grafados para evitar a leitura incorreta de uma palavra tão invulgar. O manuscrito estava dividido em duas seções, a primeira intitulada “1925 — Sonho e Obra do Sonho de H.A. Wilcox, Thomas Street, 7, Providence, R.I.”, e o segundo, “Narrativa do Inspetor John R. Lesgrasse, Bieville Street, 121, Nova Orleans, La., em 1908 A.A.S. Mtg. — Notas sobre o Mesmo, & Prof. Webb´s Acct”.
Os outros papéis manuscritos eram todas anotações breves, alguns deles relatos de sonhos bizarros de diversas pessoas, outros citações de livros e revistas teosóficas — especialmente de Atlantis and the Lost Lemuria de W. Scott-Elliot — e o resto comentários sobre antigas sociedades secretas e cultos proibidos, com indicações de passagens de livros de referência de antropologia e mitologia como Golden Bought3 de Frazer e Witch-Cult in Western Europe da Srta. Murray.4 A maior parte dos recortes aludia a doenças mentais excêntricas e surtos de loucura ou mania coletiva na primavera de 1925.
A primeira metade do manuscrito principal relatava uma história muito estranha. Ao que parece, em 1º de março de 1925, um jovem magro e soturno, de aspecto neurótico e exaltado, tinha procurado o Professor Angell, levando um curioso baixo-relevo de argila ainda muito fresco e úmido. Seu cartão trazia o nome de Henry Anthony Wilcox, e meu tio o identificara como o filho mais jovem de uma excelente família que ele conhecia de longe.
O jovem era estudante de escultura na Escola de Desenho de Rhode Island e morava no edifício Fleur-de-Lys perto daquela instituição.5 Wilcox era um jovem precoce, de gênio conhecido, mas grande excentricidade, e desde a infância ele chamava a atenção pelas histórias bizarras e sonhos curiosos que tinha o hábito de relatar. Ele se considerava “psiquicamente hipersensível”, mas para o povo pacato da antiga cidade comercial ele não passava de um “esquisitão”. Sem nunca se misturar muito com sua própria gente, ele foi perdendo aos poucos a visibilidade social e agora só era conhecido de um pequeno grupo de estetas de outras cidades. Mesmo o Clube das Artes de Providence, zeloso de seu conservadorismo, o considerava um caso sem esperança.
Por ocasião da visita, dizia o manuscrito do professor, o escultor, de repente, pediu a ajuda dos conhecimentos arqueológicos de seu anfitrião para identificar os hieróglifos dos baixo-relevo. Ele falava de maneira calma, sonhadora, sugerindo uma simpatia afetada e distante, e meu tio foi um tanto ríspido na resposta, pois a condição claramente recente da tabuleta indicava afinidade com qualquer coisa, menos com arqueologia. A réplica do jovem Wilcox que impressionou meu tio o bastante para ele recordar-se dela e registrá-la tal qual, teve um feitio poético que deve ter marcado toda a conversa, e que mais tarde descobri tratar-se de uma forte característica sua.
Ele disse, “É novo, de fato, visto que o fiz na noite passada em meio a um sonho com cidades estranhas, e os sonhos são mais antigos do que a fervilhante Tiro, ou a contemplativa Esfinge, ou a ajardinada Babilônia.”
Foi aí que ele começou aquele relato confuso que, de repente, espicaçou memórias adormecidas e conquistou o interesse febricitante de meu tio. Tinha havido um rápido tremor de terra na noite anterior, o mais forte sentido na Nova Inglaterra em muitos anos, e a imaginação de Wilcox fora fortemente abalada. Recolhendo-se ao leito, ele teve um sonho sem precedentes com grandes cidades ciclópicas, construídas com blocos titânicos e monólitos projetados para o céu, tudo exsudando um limo verde e sinistro de horror latente. As paredes e pilares estavam cobertos de hieróglifos, e de algum ponto indeterminado abaixo chegava uma voz que não era voz, uma sensação caótica que somente a fantasia poderia transformar em som, mas que ele tentara transmitir com o amontoado de letras quase impronunciável “Cthulhu fhtagn”.
Essa mixórdia verbal foi a chave para a recordação que exaltou e perturbou o Professor Angell. Ele interrogou o escultor com meticulosidade científica e estudou com atenção quase fanática, o baixo-relevo em que o jovem se vira trabalhando, enregelado e vestido apenas com as roupas de dormir, até a vigília insinuar-se em seu torpor. Meu tio culpou a sua velhice, disse Wilcox mais tarde, pela lentidão com que identificou os hieróglifos e a imagem. Muitas de suas perguntas pareceram deslocadas para o visitante, em especial as que tentavam relacioná-lo com cultos ou sociedades estranhos, e Wilcox não pôde compreender as repetidas promessas de silêncio que lhe foram feitas em troca de ser aceito em alguma ordem religiosa mística ou pagã. Quando o Professor Angell se convenceu de que o escultor ignorava mesmo qualquer culto ou sistema de sabedoria críptica, assediou o visitante com pedidos para que ele lhe relatasse sonhos futuros. Isso rendeu frutos regulares. Depois da primeira entrevista, o manuscrito registra visitas diárias do jovem durante as quais ele relatava fragmentos surpreendentes de imaginação noturna cujo tema constante era alguma vista ciclópica terrível de pedra escura e gotejante, com uma voz ou inteligência subterrânea gritando monotonamente através de enigmáticos impactos sensoriais só possíveis de descrever com palavras sem sentido. Os dois sons repetidos com maior freqüência são os expressos pelas letras “Cthulhu” e “R’lyeh”.
No dia 23 de março, prosseguia o manuscrito, Wilcox não apareceu, e indagações feitas em sua moradia revelaram que, atacado por um tipo desconhecido de febre, ele fora levado para a casa de sua família na Waterman Street. Ele havia gritado durante a noite, despertando outros artistas do prédio, e havia manifestado, a partir daquele momento, condições alternadas de consciência e delírio. Meu tio telefonou incontinente para a família e dali em diante passou a acompanhar o caso de perto, telefonando muitas vezes para o consultório do Dr. Tobey na Thayer Street, o médico que estava acompanhado o caso. A mente febril do jovem, ao que parecia, estava retida em coisas estranhas, e o médico chegava a estremecer quando as mencionava. Estas incluíam não só a repetição do que ele tinha sonhado antes, mas envolviam também algo gigantesco “com milhas de altura” que andava ou se arrastava de um lado para outro. Em nenhum momento ele descreveu essa coisa, mas expressões alucinadas ocasionais, reproduzidas pelo Dr. Tobey, convenceram o professor de que ela devia ser idêntica à monstruosidade inominável que ele tentara representar em sua escultura do sonho. A referência a essa coisa, acrescentou o doutor, preludiava sempre a recaída do jovem na letargia. Sua temperatura, por estranho que pareça não subia muito acima do normal, mas seu estado geral sugeria antes uma febre genuína do que uma perturbação mental.
No dia 2 de abril, por volta das três da tarde, todos os sintomas da doença de Wilcox desapareceram de uma hora para outra. Ele sentou-se na cama, espantado por estar em casa e sem a menor noção do que tinha acontecido em sonho ou realidade desde a noite de 22 de março. Recebendo alta do médico, voltou a seus aposentos em três dias, mas deixou de prestar qualquer ajuda ao Professor Angell. Todos os vestígios de sonhos estranhos tinham sumido de sua memória, e meu tio não guardou nenhum registro de seus pensamentos noturnos depois de uma semana de relatos insossos e irrelevantes sobre visões perfeitamente normais.
Aqui terminava a primeira parte do manuscrito, mas referências a algumas anotações espalhadas deram-me muito em que pensar, tanto, de fato, que só o arraigado ceticismo que marcava então a minha filosofia pode explicar a persistente aversão que senti pelo artista. As anotações em questão descreviam os sonhos de várias pessoas no mesmo período em que o jovem Wilcox sofrera suas estranhas provações. Meu tio, ao que parece, criou às pressas uma vasta rede de pesquisa envolvendo quase todos os amigos a quem poderia fazer perguntas sem parecer impertinente, pedindo-lhes que relatassem seus sonhos noturnos e as datas de qualquer visão extraordinária no passado recente. A receptividade a seu pedido parece ter sido irregular, mas ele deve ter recebido, no mínimo, mais respostas do que uma pessoa normal poderia lidar sem uma secretária. Essa correspondência original não foi preservada, mas suas anotações formaram um resumo completo e realmente significativo. As pessoas comuns da sociedade e do meio comercial — o “sal da terra” da Nova Inglaterra tradicional — deram um retorno quase negativo, embora casos esparsos de impressões noturnas perturbadoras mas informes apareçam aqui e ali, sempre entre 23 de março e 2 de abril, o tempo do delírio do jovem Wilcox. Os homens de ciência foram afetados um pouco mais, embora que, de quatro casos de descrição vaga sugiram vislumbres fugidios de paisagens exóticas, e, em um caso, seja mencionado o pavor de alguma coisa anormal.
Foi dos artistas e poetas que vieram as respostas pertinentes, e tenho clareza de que o pânico se alastraria se eles tivessem podido comparar as anotações. Tal como aconteceu, na falta das cartas originais, suspeitei que o compilador tinha feito perguntas indutivas ou editado a correspondência para corroborar o que ele estava potencialmente inclinado a ver. Isso reforçou minha idéia de que Wilcox, de alguma forma conhecedor dos dados antigos que meu tio possuía, vinha se insinuando junto ao veterano cientista. As respostas daqueles estetas contavam uma história perturbadora. De 28 de fevereiro a 2 de abril, uma grande parte deles havia tido sonhos extraordinários e a intensidade dos sonhos havia sido muito maior durante o período do delírio do escultor. Mais de um quarto dos que relataram algo, registravam cenas e sons vagos parecidos com os descritos por Wilcox, e alguns sonhadores confessaram ter sentido um intenso pavor da gigantesca e indescritível criatura avistada quase no fim. Um caso, que a anotação descreve com ênfase foi muito triste. O indivíduo, um arquiteto muito conhecido, com propensões para a teosofia e o ocultismo, tornou-se um louco furioso na data do acesso do jovem Wilcox e expirou alguns meses mais tarde depois de gritar incessantemente para ser salvo de algum invasor fugido do inferno. Se meu tio tivesse organizado esses casos por nome em vez de números, eu poderia tentar confirmá-los e fazer algumas investigações pessoais, mas do jeito como as coisas se deram, só consegui localizar alguns. Desses, porém, confirmei as anotações por completo. Muitas vezes me perguntei se todos os objetos das inquisições do professor ficaram tão perplexos quanto esses poucos. É bom que não lhes chegue nenhuma explicação.
Os recortes da imprensa, como sugeri, abordavam casos de pânico, mania e excentricidades durante o período em questão. O Professor Angell deve ter-se valido de um serviço especial, pois era imenso o número de recortes de fontes espalhadas por todo o Globo. Aqui, um suicídio noturno em Londres; alguém que dormia sozinho havia saltado pela janela depois de lançar um grito assustador. Ali, uma carta delirante ao editor de um jornal da América do Sul, onde um fanático deduz um futuro tétrico de visões que tivera. Um despacho da Califórnia descreve uma colônia de teosofistas distribuindo mantos brancos em massa para algum “acontecimento glorioso” que nunca chega, enquanto notícias da Índia falam com reservas de sérias rebeliões de nativos no final de março. Orgias de vodu multiplicam-se no Haiti e postos avançados na África registram murmúrios ominosos. Funcionários americanos nas Filipinas sentem que algumas tribos estão inquietas naquele período, e policiais de Nova York são atacados por levantinos histéricos na noite de 22 para 23 de março. Na região oeste da Irlanda, também, correm abundantes rumores e lendas fabulosas, e um pintor de temas fantásticos, Ardois-Bonnot, expõe uma blasfema “Paisagem Onírica” no salão de primavera de Paris de 1926. E são tão numerosos os distúrbios registrados em asilos de loucos que só um milagre poderia ter impedido a comunidade médica de observar os estranhos paralelismos e tirar conclusões enganosas. No todo, um espantoso maço de recortes e até hoje mal consigo entender o calejado racionalismo que me fez deixá-los de lado. Mas eu estava convencido então de que o jovem Wilcox tinha conhecimentos dos assuntos mais antigos mencionados pelo professor.

II
A Narrativa do Inspetor Legrasse

Os assuntos antigos que tornavam o sonho e o baixo-relevo do escultor tão significativos para meu tio constituíam o tema da segunda metade de seu extenso manuscrito. Ao que parece, o professor Angell já tinha visto a silhueta infernal da monstruosidade sem nome, já se tinha intrigado com os misteriosos hieróglifos e ouvido as sílabas aziagas que só podem ser representadas por “Cthulhu”, e isso tudo associado de maneira tão excitante e terrível que não causa espanto que ele tenha perseguido o jovem Wilcox com perguntas e solicitações de dados.
A experiência anterior tinha ocorrido em 1908, dezessete anos antes, quando a Sociedade Antropológica Americana realizara seu encontro anual em Saint Louis. O professor Angell, como convinha a alguém com sua autoridade e suas realizações, teve um papel destacado em todas as deliberações, e foi um dos primeiros a ser abordado por diversos leigos que aproveitaram a convocação para formular perguntas querendo respostas corretas e problemas para uma solução especializada.
O principal desses leigos, e, dentro em pouco, o centro de interesse de todos os participantes, era um homem de meia idade e aparência comum que tinha vindo de Nova Orleans atrás de informações especiais impossíveis de obter junto a alguma fonte local. Chamava-se John Raymon Legrasse e era, de profissão, inspetor de polícia. Trouxera consigo o motivo de sua visita, uma estatueta de pedra, grotesca, repulsiva e ao que tudo indica muito antiga, cuja origem não conseguira determinar. Não se deve supor que o Inspetor Legrasse tivesse o menor interesse em arqueologia. Ao contrário, seu desejo de esclarecimento era movido por considerações estritamente profissionais. A estatueta, ídolo, fetiche, ou seja lá o que fosse, fora capturada alguns meses antes nos pântanos arborizados ao sul de Nova Orleans, durante uma batida a uma suposta reunião vodu, e os ritos a ela associados eram tão extraordinários e repulsivos que a polícia não pôde deixar de concluir que tinha topado com um culto demoníaco totalmente desconhecido e muito mais diabólico do que os mais tenebrosos círculos de vodu africanos. Sobre a sua origem, afora as histórias desencontradas e inacreditáveis extraídas dos praticantes capturados, não se haveria de descobrir absolutamente nada, o que explicava a ansiedade da polícia por qualquer sabedoria arcaica que a ajudasse a situar o pavoroso símbolo e, através dele, a reconstituir a origem do culto.
O Inspetor Legrasse não estava preparado para a sensação que seu oferecimento provocou. Bastou uma vista ao objeto para colocar os homens de ciência em estado de tensa excitação, e sem demora eles se aglomeraram ao seu redor para examinar a diminuta figura cuja absoluta estranheza e aparência de antigüidade abissal sugeriam poderosamente panoramas arcaicos e fechados. Nenhuma escola de escultura identificável havia inspirado o terrível objeto, mas, entretanto, centenas, milhares de anos, talvez, pareciam gravados na superfície turva e esverdeada da pedra inclassificável.
A estatueta, que foi sendo passada com vagar de mão em mão para um estudo mais cuidadoso, tinha sete a oito polegadas de altura e um acabamento artístico raro. Representava um monstro de perfil meio antropóide, mas com uma cabeça de polvo com um amontoado de tentáculos por face e um corpo coberto de escamas aparentemente elástico, garras prodigiosas nas patas dianteiras e traseiras, e asas longas e estreitas nas costas. A coisa, que parecia animada de uma malignidade terrível e apavorante, tinha o corpo um tanto estufado e estava acocorada em um pedestal, ou bloco retangular, com inscrições indecifráveis. As pontas das asas tocavam na borda escura do bloco, o traseiro ocupava o centro, enquanto as garras longas e curvas das patas traseiras dobradas agarravam a borda frontal e se prolongavam até um quarto da distância até a base do pedestal. A cabeça cefalópode estava curvada para a frente de tal forma que as pontas dos tentáculos faciais raspavam nos dorsos das patas dianteiras que se apoiavam nos joelhos erguidos da figura acocorada. Ela dava uma impressão geral de estar viva, e era ainda mais assustadora por sua origem ser tão absolutamente desconhecida. Sua antigüidade imensa, espantosa e incalculável era inegável, embora ela não revelasse qualquer ligação com algum tipo de arte da aurora da civilização — ou, mesmo, de alguma outra era. Em contrapartida, o próprio material de que era feita constituía um mistério, pois a pedra lisa preto-esverdeada com suas listras ou estrias douradas ou iridescentes não se assemelhava a nada que a geologia ou a mineralogia conhecessem. As inscrições ao longo da base eram também intrigantes e nenhum dos presentes, apesar de ali se encontrar a metade do conhecimento especializado do mundo nesse campo, conseguiu formar a menor idéia nem mesmo de sua mais remota filiação lingüística. Assim como a figura e o material, elas pertenciam a algo terrivelmente antigo e distinto da humanidade tal como a conhecemos; algo que sugeria com pavor ciclos de vida remotos e profanos, alheios a nosso mundo e a nossas concepções.
Contudo, enquanto os membros abanavam com seriedade as cabeças e confessavam sua derrota em face do problema apresentado pelo inspetor, uma pessoa naquela reunião presumiu um traço de estranha familiaridade na forma monstruosa e na inscrição e contou, com certa modéstia, uma curiosidade de seu conhecimento. Tratava-se do hoje falecido William Channing Webb, professor de antropologia da Universidade de Princeton e conhecido explorador. O professor Webb participara, quarenta e oito anos antes, de uma expedição à Groenlândia e à Islândia em busca de certas inscrições rúnicas que não conseguiu descobrir, e na costa da Groenlândia Ocidental havia encontrado uma tribo ou culto singular de esquimós degenerados cuja religião, uma curiosa forma de adoração ao diabo, o havia estarrecido por seu caráter deliberadamente cruel e repulsivo. A fé era pouco conhecida dos outros esquimós e eles só a mencionavam entre arrepios, dizendo que tinha surgido em épocas terrivelmente primitivas, antes mesmo do mundo existir. Além de ritos indescritíveis e sacrifícios humanos, ela incluía certos rituais hereditários fantásticos devotados a um demônio ancestral supremo ou tornasuk, e o professor Webb havia conseguido uma cuidadosa transcrição fonética deste de um velho mago-sacerdote ou angekok, expressando os sons em caracteres romanos da melhor maneira que pôde. Mas no momento, tinha um significado todo especial o fetiche que esse culto adorava e ao redor do qual os praticantes dançavam enquanto a aurora boreal luzia por cima dos penhascos de gelo. Era, pontificou o professor, um baixo-relevo em pedra muito tosco exibindo uma figura repulsiva e algumas inscrições misteriosas. Até onde ele saberia dizer, tratava-se de um similar tosco, em todos os traços essenciais, do objeto bestial pousado, naquele momento, diante daquela assembléia.
Essas informações, recebidas com espanto e admiração pelos membros ali reunidos, mostraram-se empolgantes em dobro para o inspetor Legrasse, e ele na hora assediou o informante de perguntas. Tendo anotado e transcrito um ritual oral dos adoradores do pântano que seus homens haviam detido, pediu ao professor que se lembrasse o melhor possível das sílabas anotadas entre os esquimós satanistas. Seguiu-se uma exaustiva comparação de detalhes e um momento de respeitoso silêncio quando ambos, investigador e cientista, concordaram sobre a identidade virtual da frase comum aos dois rituais satânicos separados por mundos de distância. O que, em essência, tanto os feiticeiros esquimós como os sacerdotes do pântano da Louisiana tinham entoado para seus venerados ídolos era algo assim — sendo a divisão de palavras inferidas das quebras normais da frase quando entoada em voz alta:

“Ph’nglui mglw’ nafh Cthulhu R’lyeh wgah’nagl fhtagn.”

Legrasse estava um passo à frente do professor Webb, pois vários de seus prisioneiros mestiços tinham repetido pare ele o que os celebrantes mais velhos lhes tinham dito sobre o significado das palavras. Esse texto dizia algo assim:

“Em sua morada em R’lyeh o morto Cthulhu espera sonhando.”

Então, atendendo a um pedido geral e insistente, o inspetor Legrasse contou, da forma mais completa possível, sua experiência com os adoradores do pântano, contando uma história a que, como pude observar, meu tio atribuiu um significado profundo. Ela sugeria os mais alucinados sonhos dos criadores de mitos e teosofistas, e revelava um espantoso grau de imaginação cósmica em mestiços e párias.
Em 1º de novembro de 1907, a polícia de Nova Orleans recebera um chamado frenético da região lacustre e pantanosa ao sul. Os posseiros da região, em sua maioria descendentes primitivos mas de boa índole dos homens de Lafitte,6 estavam tomados de mais absoluto pavor por uma coisa desconhecida que se aproximara furtivamente deles durante a noite. Parecia vodu, mas vodu de um tipo mais terrível do que todos que conheciam, e algumas mulheres e crianças tinham desaparecido desde que o “tantã” maléfico começara seu batimento incessante no coração dos bosques escuros e assombrados onde ninguém se aventura. Havia gritos insanos e uivos angustiados, cantos de arrepiar a alma e chamas diabólicas dançantes, e, prosseguiu o assustado mensageiro, que as pessoas não podiam mais suportar.
Assim, um corpo de vinte policiais que lotava dois veículos e um automóvel partiu ao entardecer, levando o trêmulo posseiro como guia. No final da estrada transitável eles apearam e chapinharam muitas milhas em silêncio pelos terríveis bosques de ciprestes onde o dia não penetrava.
Raízes pavorosas e festões pendentes e malignos de musgo espanhol os cercavam e, de vez em quando, um amontoado de pedras úmidas ou fragmentos de alguma parede apodrecida intensificavam, com sua sugestão de moradia mórbida, o sentimento de depressão que cada árvore retorcida e cada ilhota musgosa se combinavam para produzir. Finalmente despontou o povoado de posseiros, um amontoado de casebres miseráveis, e moradores histéricos vieram correndo aglomerar-se em volta do grupo de lanternas balouçantes. A batida surda dos tambores era agora pouco audível ao longe, muito ao longe, e um uivo horripilante chegava em intervalos irregulares quando o vento mudava. Um clarão avermelhado parecia filtrar através da pálida vegetação rasteira além das intermináveis avenidas de escuridão florestal. Mesmo relutando em ser deixados mais uma vez à sós, os amedrontados posseiros recusaram-se a avançar uma polegada na direção do culto profano, e o inspetor Legrasse e seus dezenove colegas tiveram que seguir em frente, sem guia, pelas negras arcadas de horror que nenhum deles jamais percorrera.
A região invadida pela polícia tinha má reputação e era geralmente desconhecida e não freqüentada por homens brancos. Corriam lendas de um lago oculto, jamais vislumbrado por olhos mortais, habitado por uma coisa poliposa branca e informe, com olhos luminosos, e os posseiros sussurravam que demônios com asas de morcego saíam voando de cavernas, nas entranhas da terra, para adorá-la à meia-noite.

Eles diziam que a criatura já estava ali antes de D’Iberville,7 antes de La Salle,8 antes dos índios, e antes mesmo dos animais e pássaros saudáveis dos bosques. Era o próprio pesadelo e vê-la significava a morte, mas ela fazia os homens sonharem e assim eles sabiam o bastante para se manter à distância. A orgia de vodu acontecia, de fato, na mera fímbria da zona abominável, mas aquele local era ruim o bastante, daí, porque, talvez o próprio local da adoração aterrorizasse os posseiros mais do que os pavorosos sons e incidentes.
Somente a poesia ou a loucura poderiam fazer justiça aos barulhos escutados pelos homens de Legrasse enquanto abriam cainho pelo pântano tenebroso na direção do clarão vermelho e do “tantã” abafado. Há características vocais típicas dos homens, e características vocais típicas das feras, e é terrível ouvir uma quando a fonte devia indicar a outra. A fúria animal e a libertinagem orgiástica atingiram ali alturas demoníacas com uivos e guinchos extáticos que cortavam, reverberando o bosque sombrio como tempestades pestilentas das profundas do inferno. De vez em quando, a gritaria desordenada cessava, destacando-se o que parecia um coro bem ensaiado de vozes roucas entoando compassadamente aquela frase ou ritual hediondo:

“Ph’nglui mglw’ nafh Cthulhu R’lyeh wgah’nagl fhtagn.”

Atingindo um ponto onde o arvoredo era menos denso, os homens toparam de repente com a visão do próprio espetáculo. Quatro deles cambalearam, um desmaiou e dois foram sacudidos por um pranto convulsivo que a furiosa cacofonia do festim felizmente abafou. Legrassse aspergiu água do pântano no rosto do desmaiado e todos ficaram paralisados, tremendo, quase hipnotizados pelo horror.
Em uma clareira natural do pântano havia uma ilha relvada e sem árvores, com um acre de extensão, talvez, e em certa medida seca. Sobre ela saltitava e se contorcia uma horda de anormalidade humana tão indescritível que só um Sime ou Angarola9 poderiam descrever. Desprovida de roupas, aquela prole híbrida zurrava, urrava e se contorcia em volta de um anel de fogo cujo centro, revelado por aberturas ocasionais da cortina de chamas, era ocupado por um grande monólito branco com quase oito pés de altura, sobre o qual repousava, parecendo incongruente por sua pequena dimensão, a pérfida estatueta cinzelada. De um amplo círculo formado por dez patíbulos dispostos em intervalos regulares, tendo monólito branco rodeado de chamas como centro, pendiam, de cabeça para baixo, os corpos terrivelmente desfigurados dos infortunados posseiros desaparecidos. Era no interior desse círculo que a roda de adoradores saltava e rugia, movendo-se da esquerda para a direita em um bacanal interminável entre o anel de corpo e o anel de fogo.
Pode ter sido apenas imaginação e podem ter sido apenas os ecos a induzir um dos homens, um espanhol impressionável, a imaginar ter ouvido reposta antifônicas ao ritual de algum ponto distante e escuro das profundezas do bosque de antiga lenda e horror. Esse homem, Joseph D. Galvez, eu encontrei e interroguei mais tarde, e ele se mostrou espantosamente imaginativo, chegando a sugerir um tênue bater de grandes asas e o vislumbre de olhos brilhantes e de um enorme vulto branco além das árvores mais distantes — mas imagino que tenha ouvido muitas superstições nativas.
A paralisia de pavor dos homens, na verdade, durou pouco. O dever logo se impôs e mesmo havendo por ali perto uma centena de mestiços celebrantes, a polícia confiou em suas armas e caiu, com determinação, em cima da turba repugnante. Durante cinco minutos, o alvoroço e o caos resultantes foram indescritíveis. Golpes terríveis, tiros e fugas, mas no final Legrasse pôde contar cerca de quarenta e sete prisioneiros sombrios que foram obrigados a se vestir às pressas e se alinhar entre duas filas de policiais. Cinco adoradores estavam mortos, e dois gravemente feridos foram levados em macas improvisadas por seus colegas presos. A estatueta sobre o monólito foi retirada com cuidado, é claro, e trazida por Legrasse.
Inquiridos na delegacia depois de uma jornada de tensão e cansaço intensos, os prisioneiros revelaram-se todos homens de um tipo de mestiçagem muito inferior e mentalmente aberrante. Eram marinheiros, em sua maioria, e um punhado de negros e mulatos, sobretudos caribenhos ou portugueses de Brava, nas ilhas de Cabo Verde, dava um toque de voduísmo ao culto heterogêneo. Mas não foi preciso muita inquisição para ficar evidente que havia algo muito mais profundo e mais antigo do que o fetichismo negro. Degradadas e ignorantes como eram, as criaturas defendiam, com surpreendente consistência, a idéia central de sua abominável fé.
Eles adoravam, assim disseram, os Grandes Antigos que viveram muitas eras antes de existirem os homens, e que tinha vindo do céu para o mundo jovem. Esses Antigos já tinham partido, para o interior da Terra e o fundo do mar, mas seus corpos mortos tinham revelado seus segredos em sonhos aos primeiros homens, que criaram um culto que jamais deixara de existir. Aquilo que praticavam era esse culto, e segundo os prisioneiros ele sempre existira e sempre existiria, escondido em desertos remotos e lugares sombrios espalhados pelo mundo até o dia em que o grande sacerdote Cthulhu, saindo de sua tétrica morada na imponente cidade submarina de R’lyeh, emergeria e colocaria a Terra novamente sob seu jugo. Algum dia ele conclamaria, quando as estrelas estivessem preparadas, e o culto secreto estaria pronto para libertá-lo.
Até lá, nada mais deveria ser dito. Havia um segredo que nem a tortura poderia extrair. A humanidade não era de modo algum a única das coisas conscientes da Terra, pois emergiam vultos da escuridão para visitar os poucos fiéis. Mas esses não eram os Grandes Antigos. Nenhum homem jamais vira os Antigos. O ídolo cinzelado era o grande Cthulhu, mas ninguém saberia dizer se os outros eram exatamente iguais a ele. Ninguém conseguira ler a antiga inscrição, mas as coisas eram transmitidas de boca em boca. O ritual entoado não era o segredo — esse jamais era dito em voz alta, apenas sussurrado. O canto significava apenas isto: “Em sua morada em R’lyeh, o morto Cthulhu espera sonhando.”
Somente dois dos prisioneiros foram considerados sãos o bastante para a forca e o resto foi confiado a várias instituições. Todos negaram que a matança tinha sido feita pelos Alados Negros que tinha vindo até eles de seu imemorial ponto de encontro no bosque assombrado. Mas daqueles aliados misteriosos, não se pôde jamais obter um relato coerente. O grosso do que a polícia conseguiu extrair veio de um mestiço muito velho chamado Castro, que alegava ter navegado em portos estranhos e conversado com líderes imortais do culto nas montanhas da China.
O velho Castro recordou fragmentos da odiosa lenda que fizeram empalidecer as especulações dos teosofistas e faziam o homem e o mundo parecerem recentes e transitórios. Durante muitas eras, outras Criaturas governaram a Terra, e Elas tinham construído grandes cidades. Restos Delas, segundo lhe disseram os chineses imortais, ainda poderiam ser encontrados como pedras ciclópicas em ilhas do Pacífico. Elas todas tinham desaparecido vastas eras antes dos homens chegarem, mas certas artes poderiam revivê-las quando as estrelas girassem novamente para as posições certas no ciclo da eternidade. Elas próprias, na verdade, tinham vindo das estrelas, e trazido Suas imagens Consigo.
Os Grandes Antigos, prosseguiu Castro, não eram totalmente de carne e sangue. Tinham forma — pois não o prova essa estatueta estrelada? — mas essa forma não era feita de matéria. Quando as estrelas estivessem posicionadas, Eles podiam saltar de mundo para mundo, céu afora, mas quando as estrelas estavam na posição errada, não podiam viver. Mas embora não vivessem mais, Eles jamais podiam realmente morrer. Jaziam em casas de pedra em Sua grande cidade de R’lyeh, preservados pelos feitiços do poderoso Cthulhu para uma gloriosa ressurreição quando as estrelas e a Terra estivessem mais uma vez prontas para Eles. Mas a essa altura, alguma força exterior teria de agir para libertar Seus corpos. Os encantamentos que Os mantinham intatos também Os impediam de dar o passo inicial, e Eles só podiam ficar deitados, despertos, no escuro, e pensar, enquanto incontáveis milhões de anos transcorriam. Sabiam tudo que se passava no universo, mas se comunicavam por transmissão de pensamentos. Mesmo agora Eles conversavam em Seus túmulos. Quando, depois de infinidades de caos, surgiram os primeiros homens, os Grandes Antigos falaram aos mais sensíveis deles, moldando seus sonhos, pois só assim Sua linguagem conseguia atingir as mentes carnais dos mamíferos.
Então, sussurrou Castro, aqueles primeiros homens criaram o culto em torno de pequenos ídolos que os Grandes lhes mostraram, ídolos trazidos de estrelas escuras para zonas sombrias. Esse culto não morreria jamais até que as estrelas estivessem de novo em posição e os sacerdotes secretos tirassem o grande Cthulhu de Sua sepultura para reanimar Seus súditos e recuperar Seu domínio sobre a Terra. O momento seria fácil reconhecer pois a humanidade se teria tornado então como os Grandes Antigos, livre, selvagem, e além do bem e do mal, com as leis e os comportamentos morais deixados de lado, e todos os homens, em júbilo, gritando, matando e festejando. Os Antigos libertadores lhes ensinariam então novas maneiras de gritar, matar, festejar, se divertir, e toda a Terra arderia em um holocausto de êxtase e liberdade. Até lá, o culto, através de ritos apropriados, devia manter viva a memória daqueles costumes ancestrais e transmitir secretamente a profecia de sua volta.
Outrora, nos tempos idos, homens escolhidos tinham conversado com os sepultados Antigos em sonhos, mas alguma coisa acontecera então. A grande cidade de pedra de R’lyeh, com seus monólitos e sepulcros, tinha afundado debaixo das ondas e as águas profundas, cheias do mistério primordial no qual nem mesmo o pensamento pode penetrar, tinham interrompido o intercâmbio espectral. Mas a memória nunca morria, e sumos sacerdotes diziam que a cidade se ergueria de novo quando as estrelas se posicionassem. Depois sairiam do chão, mofados e tétricos, os espíritos negros da Terra, e cercados de rumores sombrios apanhados em cavernas por baixo dos leitos esquecidos dos mares. Mas o velho Castro não ousou falar muito deles. Calou-se bruscamente e não houve persuasão ou sutilezas que pudessem elucidar mais nessa direção. O tamanho dos Antigos, também, o que é curioso, ele não quis mencionar. Sobre o culto, disse que seu núcleo devia estar no centro dos desertos intransitáveis da Arábia, onde Irem, a Cidade dos Pilares, sonha oculta e intocada. Ele não tinha qualquer relação com o culto das bruxas europeu, e era virtualmente desconhecido entre seus membros. Nenhum livro jamais se referira de fato a ele, embora, segundo os imortais chineses, houvesse um duplo significado no Necronomicon10 do árabe louco Abdul Al-Hazred que os iniciados poderiam ler quando quisessem, especialmente no muito discutido dístico:

“Pois não há morto que fique em repouso eterno, E com imensa idade, poderá finar-se a morte.”

Legrasse, muitíssimo impressionado e não menos perplexo, tinha interrogado em vão sobre as filiações históricas do culto. Castro, ao que parece, falara a verdade ao dizer que ele era absolutamente secreto. As autoridades da Universidade de Tulane não puderam lançar luz nem sobre o culto, nem sobre a imagem, e o investigador tinha procurado as mais altas autoridades do país, obtendo apenas a história da Groenlândia do professor Webb.
O interesse febril provocado pelo relato de Legrasse ao encontro, corroborado como era pela estatueta, repetiu-se na correspondência subseqüente dos participantes, embora só apareçam menções esparsas a ele nas publicações formais da sociedade. A cautela é o primeiro cuidado dos que se acostumam a enfrentar o charlatanismo e a impostura.
            Legrasse emprestou a imagem por algum tempo ao professor Webb, mas quando este morreu, ela lhe foi devolvida e permanece em sua posse, onde eu a vi não faz muito tempo. É, de fato, uma coisa terrível, e está inconfundivelmente relacionada com a escultura de sonho do jovem Wilcox.
Não me espanta que meu tio ficasse excitado com a história do escultor, pois o que poderia pensar ao saber, conhecendo o que Legrasse havia apurado sobre o culto, de um jovem sensível que tinha sonhado não só com a figura e os hieróglifos exatos da imagem encontrada no pântano e da tabuleta diabólica da Groenlândia, mas que chegara em seus sonhos, pelo menos três das palavras exatas da fórmula pronunciada por satanistas esquimós e mestiços da Louisiana? O pronto empreendimento de uma investigação de extrema eficácia pelo professor Angell era perfeitamente natural, embora eu suspeitasse que o jovem Wilcox tinha tomado conhecimento do culto por algum canal indireto, e tinha inventado uma seqüência de sonhos para aumentar e prolongar o mistério às custas do meu tio. As narrativas de sonhos e os recortes colecionados pelo professor eram, por certo, uma prova poderosa, mas minha vocação racionalista e a extravagância do assunto todo levaram-me a adotar o que considerei as conclusões mais sensatas. Assim, depois de estudar cuidadosamente o manuscrito de novo e comparar as anotações teosóficas e antropológicas com a narrativa sobre o culto de Legrasse, fiz uma viagem à Providence para encontrar o escultor e censurá-lo, como achava que merecia, por se impor de maneira tão atrevida a um homem culto e idoso.
Wilcox ainda morava sozinho no Edifício Fleur-de-Lys da Thomas Street, uma pavorosa imitação vitoriana da arquitetura Breton do século XVII que pavoneia sua fachada de estuque em meio às adoráveis casas coloniais da antiga colina e à sombra do mais belo campanário da América. Encontrei-o a trabalhar em seus aposentos, e deduzi, imediatamente, pelos modelos espalhados por ali, que seu gênio era mesmo profundo e autêntico. Algum dia, acredito, ele será conhecido como um grande decadentista, pois conseguiu cristalizar em argila, e algum dia espelhará em mármore, aqueles pesadelos e fantasias que Arthur Machen11 evoca em prosa e Clark Ashton Smith12 exibe em versos e pinturas.
Frágil, soturno e um tanto desleixado, virou-se languidamente à minha batida perguntou-me, sem se levantar, o que eu queria. Quando lhe contei quem eu era, mostrou algum interesse, pois meu tio havia excitado sua curiosidade ao investigar seus sonhos bizarros, mesmo sem nunca explicar as razões de seu estudo. Eu não ampliei seus conhecimentos a esse respeito, mas tentei, com alguma sutileza, interessá-lo. Em pouco tempo, convenci-me de sua absoluta sinceridade, pois ele falou dos sonhos de uma maneira que não deixava dúvidas.
            Os sonhos e seu resíduo subconsciente tiveram profunda influência em sua arte, e ele me mostrou uma estátua cujos contornos me fizeram estremecer com a perversidade que sugeria. Não se lembrava de ter visto o original da coisa exceto no baixo-relevo sonhado, mas as linhas foram insensivelmente tomando forma em suas mãos. Era, sem dúvida, a forma gigante que ele tinha expressado em seu delírio. Logo ficou claro que ele não sabia nada sobre o culto secreto afora o que a sabatina implacável de meu tio deixara escapar, e mais uma vez tentei imaginar alguma maneira pela qual ele pudesse ter recebido as pavorosas impressões.
Ele falou de seus sonhos de uma maneira curiosamente poética, fazendo-me ver, com terrível nitidez, a úmida cidade ciclópica de pedras verdes escorregadias — cuja geometria, comentou casualmente, era toda errada — e ouvir, em suspensa expectativa, o incessante e quase mental chamado das profundezas: “Cthulhu fhtagn”, “Cthulhu fhtagn”. Essas palavras eram em parte do terrível ritual que falava da vigília em sonho do falecido Cthulhu em sua cripta de pedra em R’lyeh, e fiquei profundamente comovido a despeito de minhas crenças racionais. Wilcox, com certeza, ouvira falar do culto de maneira casual e logo se esquecera dele em meio à profusão de leituras e fantasias também excêntricas. Mais tarde, sendo muito impressionável, aquilo tinha encontrado expressão subconsciente em sonhos, no baixo-relevo e na terrível estátua que eu agora tinha diante de mim, de forma que sua imposição sobre meu tio tinha sido muito inocente. O jovem era de um tipo um tanto afetado e um tanto rude ao mesmo tempo, de que eu jamais poderia gostar, mas eu já me sentia inclinado a admitir seu gênio e sua honestidade. Despedi-me amistosamente, desejando-lhe todo o sucesso que seu talento promete.
A questão do culto continuava a me fascinar, e às vezes eu tinha vislumbres de glória pessoal com as pesquisas sobre sua origem e suas conexões. Visitei Nova Orleans, conversei com Legrasse e outros participantes daquela antiga batida policial, vi o ídolo assustador e cheguei a inquirir os prisioneiros mestiços sobreviventes. O velho Castro, infelizmente, morrera há alguns anos. O que ouvi de forma tão vívida de primeira mão, conquanto apenas confirmasse em detalhes o que meu tio tinha escrito, animou-me de novo, pois me parecia estar na pista de uma religião muito real, muito secreta e muito antiga cuja descoberta faria-me um antropólogo ilustre. Minha atitude ainda era toda materialista, tomara ainda fosse, e desconsiderei com perversidade quase inexplicável a coincidência entre as anotações dos sonhos e os curiosos recortes colecionados pelo professor Angell.
Uma coisa de que comecei a suspeitar, e que agora temo saber, é que a morte de meu tio não fora natural. Ele caíra em uma rua enladeirada e estreita que levava a um antigo cais coalhado de mestiços estrangeiros, depois do esbarrão involuntário de um marinheiro negro. Eu não me esquecera do sangue misto e das atividades marinhas dos membros do culto em Louisiana, e não me surpreendia ficar sabendo de métodos secretos e agulhas envenenadas, tão implacáveis e tão ancestralmente conhecidas quando os ritos e crenças eram secretos. Legrasse e seus homens, é verdade, não tinham sido afetados, mas na Noruega, um certo marinheiro que vira tais coisas está morto. As investigações mais profundas de meu tio, depois de obter os dados do escultor, não poderiam ter chegado a ouvidos sinistros? Creio que o professor Angell morreu porque sabia demais, ou porque, provavelmente, viria a saber demais. Resta saber se irei como ele se foi, pois também sei muito agora.

III
A Loucura Vinda do Mar

Se o céu algum dia quisesse conceder-me uma benção, esta seria apagar de todo os efeitos do acaso que fez meus olhos se fixarem em um pedaço de papel que forrava uma prateleira. Não era algo com que eu me teria deparado naturalmente em minhas ocupações diárias, pois se tratava de um número velho de um jornal australiano, o Sydney Bulletin, de 18 de abril de 1925. Ele tinha escapado inclusive à firma de distribuição de recortes que, por ocasião de sua edição, vinha coletando material para a pesquisa de meu tio.
Minhas investigações sobre o que o professor Angell chamava de “Culto de Cthulhu” estavam quase paradas e eu estava de visita a um amigo erudito em Paterson, Nova Jersey, curador de um museu local e mineralogista de renome. Examinando, certo dia, os espécimes de reserva, espalhados nas prateleiras de uma sala de fundo do museu, meu olhar foi atraído por uma curiosa ilustração em um dos velhos jornais estendidos embaixo das pedras. Tratava-se do Sydney Bulletin que mencionei, pois meu amigo tinha amplas relações no exterior, e a ilustração era uma autotipia recortada de uma repulsiva imagem de pedra quase idêntica à que Legrasse tinha encontrado o pântano.
Retirei, impaciente, as peças preciosas de cima da folha de jornal e examinei minuciosamente a matéria, despontando-me com o pouco que dizia. O que ela sugeria, porém, teve profundas repercussões em minha busca periclitante e recordei com todo cuidado para tomar medidas imediatas. Ela dizia o seguinte:

MISTERIOSO NAVIO PERDIDO ENCONTRADO NO MAR

Vigilant chega rebocando iate neozelandês armado e abandonado.
Encontrados um sobrevivente e um morto a bordo.

História de batalha desesperada e mortes no mar. Marinheiro resgatado omite detalhes sobre a estranha experiência. Encontrado ídolo estranho em sua posse. Investigações prosseguem.

O cargueiro Vigilant da Morrison Co., com destino a Valparaíso, chegou esta manhã à sua doca no Porto de Darling, rebocando o iate a vapor Alert, combatido e inutilizado mas fortemente armado, de Dunedin, Nova Zelândia, que foi avistado no dia 12 de abril em 34º 21’ de Latitude S. e 152º 17’ de Longitude O. com um homem vivo e um morto a bordo.
O Vigilant deixou Valparaíso em 25 de março, e no dia 2 de abril foi impelido muito ao sul de sua rota por tempestades excepcionalmente violentas e ondas monstruosas. Em 12 de abril, o navio abandonado foi visto e embora parecesse estar deserto, depois de abordado, verificou-se que abrigava um sobrevivente em condições quase delirantes e um homem que, com certeza, estava morto havia mais de uma semana. O vivo estava agarrado a um horrível ídolo de pedra de origem desconhecida, com cerca de trinta centímetros de altura, sobre cuja natureza autoridades da Universidade de Sydney, da Royal Society e do Museu da College Street professaram total perplexidade, e que o sobrevivente fiz ter encontrado na cabine do iate, em um pequeno escrínio cinzelado de tipo comum.
Esse homem, depois de recobrar os sentidos, contou uma história muito estranha de pirataria e chacina. Trata-se de Gustaf Johansen, um norueguês de alguma inteligência, e que fora o contramestre da escuna Emma, de Auckland, que zarpou para Callao com uma tripulação de onze homens em 20 de fevereiro. A Emma, dizia ele, foi retardada e empurrada com toda força para o sul de sua rota pela grande tormenta de 1º de março, e em 22 de março, estando em 49º 51’ de Latitude S. e 128º 34’ de Longitude O. encontrou Alert, manejado por uma tripulação estranha e mal-encarada de canacas e mestiços. Ordenado peremptoriamente a voltar, o capitão Collins se recusou, diante do que a estranha tripulação começou a atirar com selvageria e sem aviso na escuna com a bateria pesada de canhões de bronze que equipava o iate. Os homens da Emma travaram luta, conta o sobrevivente, e embora a escuna começasse a afundar com os tiros recebidos abaixo da linha d’água, eles conseguiram emparelhar o barco com o inimigo e abordá-lo, enfrentando a tripulação selvagem no convés do iate, e sendo forçados a matar todos, cujo número era um pouco superior, devido ao modo particularmente abominável e desesperado, ainda que canhestro, com que eles lutavam.
Três homens da Emma, inclusive o capitão Collins e o imediato Green, foram mortos, e os oito restantes, comandados pelo contramestre Johansen trataram de manobrar o iate capturado, seguindo em seu curso original para ver se existia alguma razão para a ordem de voltar. No dia seguinte, ao que parece, eles desembarcaram em uma pequena ilha, embora não soubesse da existência de nenhuma ilha naquela parte do oceano, e seis dos homens morreram, de alguma forma, em terra, embora Johansen seja curiosamente reticente sobre essa parte de sua história e fale apenas de eles terem caído em uma fenda da rocha. Mais tarde, ao que parece, ele e um companheiro subiram a bordo do iate e tentaram manobrá-lo, mas foram fustigados pela tempestade de 2 de abril. Daquele momento até seu resgate no dia 12, o homem pouco se recorda, e nem mesmo se lembra de quando William Briden, seu companheiro, morreu. Não há evidências visíveis da causa da morte de Briden, e é provável que se tenha dado à perturbação mental ou à desproteção. Informações telegráficas de Dunedin relatam que o Alert era bem conhecido ali como um barco mercante na ilha, e possuía uma péssima reputação em todo o cais. Pertencia a um estranho grupo de mestiços cujas reuniões freqüentes e incursões noturnas aos bosques atraíam grande curiosidade, e tinha zarpado com grande pressa pouco depois da tempestade e dos tremores de terra de 1º de março. Nosso correspondente de Auckland confere uma excelente reputação à Emma e a sua tripulação, e Johansen é descrito como homem sóbrio e valoroso. O almirantado vai abrir um inquérito sobre o assunto todo a partir de amanhã, e todos os esforços serão enviados para induzir Johansen a falar mais fracamente do que tem feito até agora.

Isso era tudo, além da imagem da estatueta infernal, mas que associação de idéias desencadeou em minha mente! Ali estavam novas e preciosas informações sobre o Culto de Cthulhu, e evidências de que ele guardava estranhas relações com o mar, assim com a terra. O que teria levado a tripulação mestiça a ordenar que a Emma retornasse enquanto seguiram em frente com seu hediondo ídolo? O que seria a ilha desconhecida onde seis homens da Emma tinham morrido, e sobre a qual o imediato Johansen era tão reticente? O que a investigação do vice-almirantado teria apurado e o que se saberia do abominável culto em Dunedin? E o mais admirável, que relação profunda e sobrenatural de datas era aquela que emprestava um significado maligno agora inegável às diversas viravoltas dos acontecimentos tão cuidadosamente anotadas por meu tio?
Em 1º de março — nosso 28 de fevereiro segundo a linha internacional da data — vieram o terremoto e a tempestade. De Dunedin, o Alert e sua deletéria tripulação tinha partido a toda pressa como se fossem imperiosamente convocados, e no outro lado da Terra, poetas e artistas tinham começado a sonhar com uma estranha cidade ciclópica e úmida, enquanto o jovem escultor tinha modelado, durante o sono, a forma do temível Cthulhu. Em 23 de março, a tripulação da Emma desembarcou em uma ilha desconhecida onde deixou seis mortos; e naquela mesma data, os sonhos de homens sensíveis assumiram uma vivacidade acentuada, obscureceram de pavor da perseguição maligna de um monstro gigantesco, enquanto um arquiteto enlouquecia e um escultor mergulhava no delírio! E quanto a essa tempestade de 2 de abril — a data em que todos os sonhos com a cidade úmida cessaram e Wilcox escapou ileso do jugo de estranha febre? O que pensar disso tudo — e das sugestões do velho Castro sobre os Antigos, de origem estelar, submersos e o advento de seu reinado, seu culto religioso e seu domínio sobre os sonhos? Estaria eu cambaleando à beira de horrores cósmicos que a capacidade humana seria incapaz de suportar? Se assim fosse, deviam ser apenas horrores mentais, pois, de algum modo, o dois de abril dara um fim à qualquer ameaça monstruosa que tivesse começado seu assédio à alma da humanidade.
Naquela noite, depois de um dia de arranjos e telegramas apressados, despedi-me de meu hospedeiro e tomei um trem para São Francisco. Em menos de um mês, eu estava em Dunedin, onde descobri, porém, que pouco se sabia dos estranhos membros do culto que tinham perambulado pelas velhas tavernas do cais. A escória das docas era comum demais para merecer alguma menção especial, embora corressem vagos rumores sobre uma viagem ao interior, feita por aqueles mestiços, durante a qual se notaram um longínquo rufar de tambores e chamas vermelhas nos morros distantes. Em Auckland, fiquei sabendo que Johansen tinha voltado com os cabelos louros embranquecidos depois de uma inquisição perfunctória e inconclusiva em Sydney, e depois disso vendera sua casinha na West Street e navegara com a mulher para sua velha casa em Oslo. Sobre a sua estarrecedora experiência, ele não diria aos amigos mais do que dissera aos funcionários do almirantado, e tudo que eles puderam fazer foi dar-me seu endereço em Oslo.
Depois disso, fui a Sydney e conversei com marinheiros e membros do tribunal do vice-almirantado, mas foi em vão. Vi o Alert, agora vendido e em uso comercial, no Cais Circular em Sydney Cove, mas de nada me serviu sua aparência vulgar. A estatueta agachada com sua cabeça de choco, corpo de dragão, asas escamadas e pedestal hieróglifo, estava guardada no Museu do Parque Hyde. Eu a estudei atentamente, achando-a de um artesanato muito raro, contendo o mesmo absoluto mistério, terrível antiguidade e sinistra estranheza de material que eu tinha notado no exemplar menor de Legrasse. Os geólogos, contou-me o curador, tinham-na considerado um grande mistério, pois juravam que não havia no mundo uma pedra daquele tipo. Estremecendo, pensei no que o velho Castro tinha dito a Legrasse sobre os Grandes primitivos: “Eles vieram das estrelas e trouxeram Suas imagens consigo.”
Abalado por uma revolução mental como jamais conhecera, resolvi visitar o contramestre Johansen em Oslo. Navegando até Londres, tornei a embarcar em seguida para a capital da Noruega onde desembarquei, em um certo dia de outono, nas docas bem cuidadas à sombra de Egeberg.13 O endereço de Johansen, conforme verifiquei, ficava na Cidade Velha do Rei Harold Haardrada, que mantivera vivo o nome de Oslo durante os séculos em que a cidade maior se disfarçara de “Christiania”.14 Fiz o breve percurso de táxi com o coração palpitando, na porta de um velho e bem cuidado edifício com a frente rebocada. Uma mulher de rosto melancólico, de preto, atendeu, causando-me profunda frustração ao me contar, em um inglês vacilante, que Gustaf Johansen já não existia.
Não sobrevivera a seu retorno, contou-me a esposa, pois os acontecimentos ao mar, em 1925, tinham acabado com ele. Ele não tinha contado à esposa nada além do que dissera em público, mas tinha deixado um longo manuscrito — sobre “assuntos técnicos” como dizia — escrito em inglês, evidentemente para protegê-la do risco de uma leitura casual. Caminhando por uma estreita viela perto do cais de Gotemburgo, fora atingido e derrubado por um fardo de papel caído de uma janela de sótão. Dois marinheiros indianos ajudaram-no prontamente a se levantar, mas antes que a ambulância chegasse, ele estava morto. Os médicos não encontraram nenhuma causa apropriada para o seu falecimento e atribuíram a problemas cardíacos e à constituição debilitada.
Sentia agora corroer-me as entranhas aquele terror hediondo que jamais me abandonará até que eu também fique em repouso, “por acidente” ou de alguma outra forma. Persuadindo a viúva de que minha conexão com os “assuntos técnicos” de seu marido me intitulava a ficar com o manuscrito, levei o documento e comecei sua leitura no navio para Londres. Era uma coisa simplória, desconexa — o esforço de um marinheiro ingênuo em um diário a posteriori — e procurava recordar, dia a dia, aquela última e terrível viagem. Não posso tentar transcrevê-lo literalmente em toda sua nebulosidade e redundância, mas reproduzirei o bastante de seu conteúdo para mostrar por que o som da água contra os costados do navio se tornou de tal forma insuportável para mim que tapei os ouvidos com algodão.
Johansen, graças a Deus, não sabia tudo, apesar de ter visto a cidade e a Coisa, mas eu jamais dormirei tranqüilo enquanto pensar nos horrores que espreitam sem parar por trás da existência no tempo e no espaço, e naquelas blasfêmias profanas, de estrelas primitivas, que sonham no fundo do mar, conhecidas e veneradas por um culto de pesadelo pronto e ávido para soltá-las no mundo, sempre que algum terremoto suspender sua monstruosa cidade de pedra novamente até o sol e o ar.
A viagem de Johansen tinha começado tal como ele contou ao vice-almirantado. A Emma, navegando com lastro, fizera-se ao mar em Auckland, em 20 de fevereiro, e tinha sido atingida em cheio por aquela tempestade provocada pelo terremoto que devia ter desprendido, do fundo do mar, os horrores que povoam os sonhos humanos. De novo sob controle, a embarcação avançava em boa marcha quando foi atacada pelo Alert, em 22 de março, e pude sentir o desgosto do imediato enquanto descrevia seu bombardeio e afundamento. Aos fanáticos mestiços do Alert, ele se refere com perceptível horror. Eles tinham alguma coisa especialmente abominável que parecia quase um dever destruí-los, e Johansen manifesta um espanto ingênuo com a acusação de impiedade feita a seu grupo durante o inquérito judicial. Depois, impelidos pela curiosidade, seguiram em frente no iate capturado sob o comando de Johansen e avistaram uma grande coluna de pedra se projetando para cima da superfície do mar, e em 47º 9’ de Latitude S. e 126º 43’ de Longitude O. Chegaram a um litoral combinando lodo, limo e construções de alvenaria ciclópica coberta de ervas daninhas que outra coisa não poderia ser senão a substância tangível do supremo horror sobre a Terra — a pavorosa cidade-defunta de R’lyeh, construída em eras imemoriais anteriores à História pelas formas imensas e malignas que se infiltraram das estrelas sombrias. Ali jaziam o poderoso Cthulhu e suas hordas, ocultos em criptas verdes, enlameadas, e expedindo, enfim, depois de ciclos temporais incalculáveis, os pensamentos que espalhavam o terror nos sonhos de pessoas sensíveis e convocavam imperiosamente os fiéis a uma romaria de libertação e restauração. Disso tudo não suspeitava Johansen, mas Deus sabe que ele logo veria o suficiente.
Imagino que um único topo de montanha, a hedionda cidadela encimada por monólito sobre a qual o grande Cthulhu estava enterrado, emergiu mesmo das águas. Quando penso na extensão de tudo que pode estar germinando naquele lugar, tenho vontade de me matar. Johansen e seus homens ficaram admirados diante da majestade cósmica daquela Babilônia gotejante de demônios ancestrais, e devem ter imaginado, sem orientação, que aquilo não pertencia a este e nem a qualquer outro planeta são. A admiração com o tamanho descomunal da cidade de blocos de pedra esverdeados, com altura estonteante do grande monólito cinzelado e com a estarrecedora semelhança entre as colossais estátuas e baixos-relevos, e a imagem bizarra encontrada em um escrínio do Alert, é dolorosamente visível em cada linha da apavorada descrição do contramestre.
Sem conhecer o futurismo, Johansen chegou muito perto dele ao falar da cidade, pois, em vez de descrever alguma estrutura ou edifício definido, ele se atém a impressões gerais sobre os imensos ângulos e superfícies de pedra — superfícies grandes demais para pertencerem a qualquer coisa normal ou própria desta Terra, corrompidas por imagens e hieróglifos terríveis. Menciono sua referência a ângulos porque sugere algo que Wilcox me disse sobre seus pavorosos sonhos. Ele disse que a geometria do lugar que via em sonhos era anormal, não euclidiana, sugerindo locais e dimensões repulsivos, diferentes dos nossos. Agora, um marinheiro iletrado sentia a mesma coisa observando a terrível realidade.
Johansen e seus homens desembarcaram em um banco de lama inclinado daquela monstruosa Acrópole, e escalaram aos escorregões os titânicos blocos enlameados que não poderiam ser a escada de nenhum mortal. O próprio sol no firmamento parecia distorcido visto através dos miasmas polarizantes que exalavam daquela perversão encharcada, e um misto de ameaça e expectativa, às escondidas, daqueles ângulos loucamente enganosos de rocha entalhada, onde se revelava côncavo a um segundo olhar do que se mostrara convexo a um primeiro.
Algo muito parecido com pavor tomara conta de todos os exploradores antes mesmo de avistarem qualquer coisa mais definida do que rocha, limo e mato. Cada um deles teria fugido não fosse por medo da zombaria dos outros, e foi sem muito entusiasmo que eles procuraram — em vão, com se provou — alguma lembrança que pudessem carregar.
Foi Rodriguez, o português, quem escalou a base do monólito e gritou, informando o que tinha encontrado. Os outros seguiram e olharam, cheios de curiosidade, a imensa porta entalhada com o já familiar baixo-relevo em forma de dragão com cabeça de lula. Parecia, segundo Johansen, uma grande porta de celeiro, e todos sentiram que era uma porta devido à verga, umbral e batentes ornamentados que a cercavam, embora não conseguissem ter claro se era horizontal como um alçapão ou inclinada como a porta externa de um porão. Como Wilcox teria dito, a geometria do lugar era toda errada. Não se podia ter certeza se o mar e o chão eram horizontais e, por isso, a posição relativa de tudo o mais parecia irrealmente variável.
Briden tentou forçar a porta em vários pontos, sem resultado. Depois Donovan tateou sua borda deliberadamente, pressionando um ponto de cada vez. Ele subiu pela grotesca moldura de pedra — isto é, se podia chamar aquilo de subir já que não era mesmo horizontal — e os homens se perguntavam como alguma porta no universo podia ser tão imensa. Então, lenta e suavemente, o imenso painel começou a ceder para dentro na parte superior, e eles puderam notar que ele era articulado. Donovan escorregou, ou algo assim, para baixo ou ao longo do batente, juntando-se aos companheiros, e todos ficaram observando o estranho recuo daquele portal com os entalhes monstruosos. Naquela ilusão de distorção prismática, ele se movia de forma anormal, em diagonal, parecendo contrariar todas as regras da matéria e da perspectiva.
A abertura era negra, de uma escuridão quase material. Aquelas trevas eram, na verdade, uma qualidade positiva, pois escureciam as partes das paredes internas que deveriam ter sido reveladas, e de fato exalava para fora como fumaça de sua prisão multimilenar, obscurecendo aos olhos a vista do sol, ao escoar para o céu inchado e convexo em um adejar de asas membranosas. O cheiro que exalava das profundezas recém-abertas era intolerável, até que Hawkins, que tinha ouvidos muito aguçados, pensou ter ouvido um chapinhar repulsivo no interior. Os homens ficaram atentos e ainda tentaram ouvir, quando a Coisa se arrastou, babando, à vista de todos, espremendo Sua imensidade verde e gelatinosa pela passagem escura para o ar exterior infecto daquela venenosa cidade de loucura.
A caligrafia do pobre Johansen quase estancou neste ponto. Dos seis homens que jamais retornaram ao navio, ele acha que dois sucumbiram de puro pavor naquele maldito instante. A Coisa não pode ser descrita — não há linguagem para abismos tão imemoriais de pavor e demência, contradições tão grandes de matéria, força e ordem cósmica. Uma montanha caminhado ou se arrastando. Deus! Não espanta que, por toda a Terra, um grande arquiteto enlouquecesse e o pobre Wilcox delirasse de febre naquele instante telepático! A Coisa dos ídolos, a cria verde e gosmenta vinda das estrelas, tinha despertado para reclamar o que era seu. As estrelas estavam posicionadas uma vez mais e o que um culto ancestral não tinha conseguido deliberadamente, um grupo de inocentes marinheiros tinha obtido por acidente. Após eras incontáveis, o poderoso Cthulhu estava livre outra vez, e ávido de prazer.
Três homens foram varridos pelas patas balofas antes de alguém poder virar-se. Que descansem em paz, se algum repouso existir no universo. Era eles Donovan, Guerrera e Cngstrom. Parker escorregou enquanto os outros três mergulhavam freneticamente em paisagens intermináveis de rocha incrustada de verde para o barco, e Johansen jura que ele foi engolido por um ângulo de parede que não deveria estar ali, um ângulo que era agudo mas se comportava com se fosse obtuso. Assim, só Briden e Johansen conseguiram alcançar o barco e remaram desesperados para o Alert enquanto a monstruosidade montanhosa se deixava cair pesadamente sobre as rochas escorregadias, até parar, hesitante, à beira do mar.
O vapor do navio não estava totalmente extinto, apesar da ida de todos os “braços” para a praia; alguns minutos de correria febril de um lado para outro entre a roda do leme e as máquinas foi o que bastou para colocar o Alert em movimento. Devagar, em meio aos horrores distorcidos daquela paisagem indescritível, ele começou a agitar as águas letais, enquanto sobre a estrutura de pedra daquela praia espectral que não era da Terra, a Coisa titânica das estrelas babava e resmungava como Polifemo maldizendo o navio em fuga de Ulisses.15 Em seguida, mais audacioso do que os célebres Ciclopes, o poderoso Cthulhu deslizou viscosamente para a água e saiu em perseguição do navio com braçadas de uma potência cósmica e tão imensas que chegavam a formar ondas na superfície do mar. Briden olhou para trás e enlouqueceu, rindo histericamente, e assim seguiu rindo, com intervalos, até que a morte o encontrou, certa noite, na cabine, enquanto Johansen perambulava delirante pelo navio.

Mas Johansen ainda não tinha desistido. Sabendo que a Coisa certamente alcançaria o Alert antes que o navio navegasse a pleno vapor, resolveu fazer uma tentativa desesperada e ajustando a máquina para plena velocidade, correu como um raio para o convés e inverteu o leme. Formou-se um portentoso turbilhão de espuma no abominável oceano, e enquanto a pressão do vapor ia aumentando, e aumentando, o bravo norueguês dirigia a proa da embarcação para o caçador gelatinoso que se erguia acima da espuma imunda com a proa de um galeão infernal. A pavorosa cabeça de lula com tentáculos retorcidos já estava quase alcançando o gurupés do robusto iate, mas implacável, Johansen avançava. Houve um ruído de bexiga estourando, uma sujeira gosmenta de peixe-lula rasgado, um fedor como se um milhar de sepulturas fossem abertas e um som que o cronista não conseguiu pôr no papel. Por um instante, o navio ficou coberto por uma nuvem verde, acre e cegante, e depois restou apenas um fervilhar venenoso à ré, onde — Deus! — a massa plástica dispersa daquela inominável criatura celeste ia vagamente recompondo sua odiosa forma original, enquanto se alargava a distância que a separava, a cada segundo, do Alert que ganhava ímpeto com a pressão crescente do vapor.
Isso foi tudo. Em seguida, Johansen apenas meditou sobre o ídolo na cabine e cuidou da comida para si e para o maníaco risonho ao seu lado. Ele não tentou navegar depois da primeira e corajosa fuga, pois o contra-ataque tinha extraído algo de sua energia. Depois veio a tormenta de 2 de abril e sua consciência se anuviou. Há uma sensação de vertigem espectral por abismos líquidos do infinito, de corridas alucinadas por universos instáveis montados em uma cauda de cometa, e de saltos histéricos do poço à lua e da lua novamente ao poço, tudo animado por um coro cachinante dos corrompidos, hilários deuses antigos e dos zombeteiros duendes verdes com asas de morcego do Tártaro.16
Fora daquele sonho, veio a salvação — o Vigilant, o tribunal do vice-almirantado, as ruas de Dunedin e a longa viagem de volta para a velha casa à sombra de Egeberg. Ele não poderia contar — eles o achariam louco. Escreveria tudo que sabia antes da morte chegar, mas sua esposa não devia suspeitar. A morte seria uma bênção se ao menos pudesse apagar as lembranças.
Esse foi o documento que li e coloquei agora na caixa de estanho ao lado do baixo-relevo e dos papéis do professor Angell. Com isto deve seguir este meu registro — esse teste de minha própria atitude mental, em que se reconstituiu aquele que eu espero que jamais se reconstitua de novo. Considerei tudo de que o universo dispõe para conter o horror, e mesmo os céus de primavera e as flores de verão serão, para sempre, veneno para mim. Mas não creio que minha vida dure muito. Assim como meu tio se foi, como o pobre Johansen se foi, eu irei. Sei demais, e o culto ainda vive.
Cthulhu ainda vive, também, imagino, naquele abismo de pedra que o abrigou desde que o sol era jovem. Sua maldita cidade está novamente submersa, pois o Vigilant navegou até o local depois da tormenta de abril; mas seus agentes em terra ainda urram, cabriolam e matam em torno de monólitos coroado por ídolos em locais desertos. Ele dever ter sido apanhado pelo afundamento enquanto estava dentro de seu abismo negro, senão o mundo estaria agora gritando de pavor e loucura. Quem conhecerá o fim? Aquilo que emergiu pode afundar, e o que afundou pode emergir. A repugnância espera e sonha nas profundezas, e a podridão se espalha sobre as precárias cidades dos homens. Chegará um momento... mas não devo e não posso pensar! Deixem-me rezar para que, se não sobreviver a este manuscrito, meus executores testamentários coloquem a cautela a frente da audácia e cuidem que ele não chegue a outros olhos.

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