quarta-feira, outubro 07, 2009

A Chuva (Ray Bradbury)


A chuva continuava. Era uma chuva grossa, perpétua, quente e vaporosa e também uma catarata, cordas, chicotadas no rosto; uma chuva que apagava todas as outras chuvas e a sua recordação. Caía copiosamente, às toneladas, inundava a selva, quebrava as árvores, afogava a erva, apagava o Sol. Contraía as mãos dos homens reduzindo-as às dimensões de uma mão encarquilhada de macaco. Sólida e viscosa, não se detinha.
— Que distância ainda falta, meu tenente?
— Não sei. Uma milha, duas milhas, quinhentas...
— Não pode calcular?
— De que maneira?
— Não gosto desta chuva. Se ao menos soubéssemos a que distância estamos da Cúpula Solar, sentir-me-ia melhor.
— Mais uma ou duas horas...
— Parece-lhe que sim, meu tenente?
— De certeza.
— Ou diz isso para animar?...
— Minto para lhe dar coragem. Apare lá isso!
Os dois homens estavam sentados à chuva. Atrás deles havia outros dois, molhados, fatigados, abatidos, como se fossem pedaços de argila.
O tenente levantou a cabeça. O rosto fora outrora moreno e, agora, a chuva tornara-o pálido! Descorara os olhos, que se tornaram brancos, bem como os dentes e os cabelos. Era todo branco. Até o uniforme perdia a cor, tendo umas pequenas manchas verdes, de bolor.
— Há quantos milhões de anos não chovia em Vênus?
— Está doido? — exclamou um dos outros. — A chuva nunca pára em Vênus. Chove continuamente. Já passei aqui dez anos e não houve um minuto, nem sequer um segundo, que não chovesse torrencialmente.
— É como viver dentro de água — disse o tenente levan­tando-se e reajustando o talabarte. — Bom, é melhor pormo-nos a caminho.
— Vamos já encontrar a Cúpula.
— A não ser que a não encontremos — insinuou o cínico. — Ainda temos mais uma hora.
— O meu tenente pretende agora enganar-me?
— Não, a mim próprio. Há ocasiões em que precisamos de mentir a nós próprios. Mas já não aguentarei muito tempo.
Embrenharam-se pela vereda olhando, de vez em quando, a bússola. Não havia nenhum ponto de referência a não ser a bússola. Nada havia, a não ser o céu escuro, de onde caía a chuva, e a vereda através da selva; e, algures muito para trás, uma nave que os transportara e que se esmagara contra o solo. Uma nave onde jaziam, sob a chuva, mortos, dois dos seus companheiros.
Caminhavam em fila indiana, sem falar. Chegaram às margens de um rio, largo e escuro, que corria para o Mar Único. A superfície era agitada por milhares de bátegas de chuva.
— Vamos lá com isso, Simmons!
Simmons tirou um embrulho que trazia às costas, o qual, sob a acção de uma substância química, se encheu, transfor­mando-se numa canoa. O tenente ordenou o corte de alguns ramos de arbustos e a confecção rápida de pás de remar. Abandonaram a margem remando enèrgicamente, sob a chuva.
O tenente sentia a água fria no rosto, no pescoço, ao longo dos braços em movimento. O frio começava a penetrar-lhe nos pulmões. Sentia a chuva nas orelhas, nos olhos, nas pernas.
— A noite passada não dormi — disse ele.
— Quem é que dormiu? Quando? Quantas noites sem sono? Trinta noites, trinta dias! Quem é que pode dormir com esta chuva a tamborilar no crânio?... Daria tudo por um simples chapéu. Não me importaria, desde que ela não me batesse mais na cabeça. Tenho dores.
— Lamento ter vindo à China — exclamou um outro.
— E a primeira vez que ouço chamar China a Vênus.
— Mas é a China. A terapêutica chinesa pela água. Não te recordas? Amarram-te a uma parede e de meia em meia hora deixam-te cair uma gota de água na cabeça. Enlouqueces à espera da próxima gota. Pois bem: isto é a China, mas em grande escala. Não fomos feitos para a água. Não podemos dormir, não podemos respirar suficientemente e ficamos doidos à força de sermos ensopados em água. Se pudéssemos prever o acidente teríamos trazido impermeáveis e suestes. É, sobretudo, a chuva na cabeça que nos prostra. É tão pesada que dir-se-ia chumbo de caça de grosso calibre. Não sei até quando poderei aguentar.
— Meu amigo, eu cá sou pela Cúpula Solar! O sujeito que a construiu fez uma grande invenção.
Atravessaram o rio e pensavam na Cúpula que estava algures à sua frente, radiosa, entre a selva alagada. Um edifício, amarelo, redondo e tão brilhante como o Sol. Uma construção de quatro metros e meio de altura por mais de trinta de diâmetro, com calor, sossego, alimentos quentes, um abrigo contra a chuva. E no centro da Cúpula Solar havia, evidentemente, um sol. Um globo de fogo amarelo, suspenso no cimo da construção; podia-se vê-lo de qualquer lugar, fumando ou lendo um livro, bebendo chocolate quente com creme. E o sol amarelo lá estaria, com as dimensões do Sol terrestre, quente e contínuo; o mundo fantástico de Vénus seria esquecido durante todo o tempo que lá esti­vessem.
O tenente voltou a cabeça para os três homens que rema­vam cerrando os dentes. Estavam brancos como cogumelos — a mesma cor que a deles. Vénus descoloria fosse o que fosse, em poucos meses. Até a selva era um produto de pesadelo, sem verde, devido à chuva e ao cinzento permanente do céu. A selva branca, com as suas folhas cor de queijo, a terra modelada com pasta branca, os troncos e as árvores como enormes cogumelos venenosos, tudo em negro e branco.
— Cá estamos!
Saltaram para a outra margem, atropelando-se. A canoa foi esvaziada e dobrada. Tentaram acender cigarros. Ficaram durante cinco minutos, à chuva, protegendo a chama dos isqueiros com as mãos, antes que conseguissem tirar algumas fumaças de um cigarro que, imediatamente, amolecia e se desfazia, sob as bátegas de água.
Prosseguiram na marcha.
— Um momento! — gritou o tenente. — Creio avistar qual­quer coisa lá à frente.
— A Cúpula?
— Não tenho a certeza. A chuva é muito cerrada. Simmons pôs-se a correr. — A Cúpula Solar!
— Simmons, pare! — A Cúpula!
Simmons desaparecia entre as torrentes de água que caíam. Os outros foram na sua peugada.
Alcançaram-no numa pequena clareira e detiveram-se a observá-lo, para ver para onde ele olhava.
A nave!
Ali estava ela, onde a tinham deixado. Tinham voltado ao ponto de partida. Entre os destroços do aparelho, uma espécie de algas verdes saíam da boca dos homens mortos. Enquanto olhavam, uma alga floriu, a chuva fez cair as pétalas e a planta morreu.
— Como foi isto?
— Deve haver uma tempestade eléctrica nas proximidades, o que alterou a bússola. Isso explica tudo.
— Deve ser isso.
— Que vamos fazer agora?
— Partir de novo.
— Meu Deus. Já não estamos próximo de nenhum sítio!
— Calma, Simmons!
— Calma! Calma! Esta chuva deixa-me louco!
— Se formos prudentes, ainda teremos comida para dois dias.
A chuva dançava-lhes na pele, nos uniformes; escorria-lhes copiosamente do nariz, das orelhas, dos dedos e dos joelhos. Tinham um ar de fontes petrificadas e murmurantes, no meio da selva.
E nesse momento ouviram ao longe, um rugido.
O monstro emergiu da chuva.
O monstro tinha mil pés eléctricos, azuis. Caminhava, rápido e medonho. A cada avanço, uma árvore era abatida, fulminada.
Grandes baforadas de ozone encheram o ar húmido, erguiam-se nuvens de fumo, logo submergidas pela chuva. O monstro tinha meia milha de largura e uma milha de altura. Tacteava o solo como um gigante cego. Os pés logo desapareceram. No instante seguinte, mil raios saíram do seu ventre, brancos, azuis, mordendo a selva.
— A tempestade eléctrica! A que alterou a bússola!
— Dirige-se para aqui!
— Deitem-se no chão! — gritou o tenente.
— Fujam! — gritou Simmons.
— Não seja parvo, deite-se! Ela atinge os pontos elevados. Talvez escapemos. Deitem-se no chão a quinze metros do foguete. Talvez ele sirva de pára-raios e nos salvemos. Por terra!
Os homens deitaram-se.
— Já vem? — perguntavam de segundo em segundo.
— Já.
— Aproxima-se?
— Está a pouco mais de cem metros.
— Aí está!
O monstro veio e envolveu-os. Descarregou dez raios contra o foguete, que brilhou e ecoou como um «gong». O monstro descarregou-lhe mais vinte raios. Os seus tentáculos dançavam uma pantomima grotesca, tacteando a selva e o chão lodoso.
— Não! Não!
Um dos homens ergueu-se.
— Por terra, idiota! — gritou o tenente.
— Não.
A tempestade atingiu novamente o foguete. O tenente ergueu a cabeça e viu os deslumbrantes coriscos, as árvores abaterem e encarquilhar-se. Viu uma monstruosa nuvem rodopiar como um disco negro por cima dele e lançar cem pilões eléctricos.
O homem que se levantara corria como numa sala de altos pilares.
Corria em ziguezague para os evitar e, por fim, umas dezenas de colunas abateram-se sobre ele. Ouviu-se o ruído semelhante a uma mosca queimada por um filamento eléc­trico. O tenente recordava-se do cheiro desde a sua infância passada numa quinta. Sentiu-se o arder de um homem carbonizado.
O tenente escondeu a cabeça.
— Não olhem — gritou ele.
Tinha receio de também começar a correr de um momento para o outro.
A tempestade descarregou por cima deles uma nova série de relâmpagos e depois afastou-se.
Só havia de novo a chuva que, ràpidamente, lavou o ar do cheiro a carne queimada. Ao cabo de algum tempo os três homens que sobreviveram sentaram-se, aguardando que as palpitações dos seus corações acalmassem.
Dirigiram-se para o corpo pensando que talvez ainda pudessem salvar uma vida. É o gesto natural dos homens que só aceitam a morte quando a tocam, quando a consideram e resolvem enterrar o cadáver ou deixar que a terra o trague.
O homem estava como se fosse ferro retorcido ou couro queimado. Uma múmia de cera retirada de um forno crema­tório, reduzida a um esqueleto carbonizado. Somente os dentes eram brancos, brilhando como um bracelete bizarro num pulso fechado e enegrecido.
— Ele não devia ter corrido — disseram todos quase ao mesmo tempo.
No próprio momento em que o olhavam, começou a desaparecer: a vegetação crescia nele, com ramos, caules e até flores — flores para o morto.
Ao longe, a tempestade desaparecia sobre as suas colunas azuis.
Atravessaram um ribeiro, um rio, uma torrente c uma dúzia de outros cursos de água. Diante dos seus olhos apare­ciam ribeiros, rápidos, depois novos rios, ribeiros, enquanto que os precedentes, mudavam o curso; ribeiros cor de mer­cúrio, cor de prata ou de leite.
Chegaram ao mar.
O Mar Único! Só havia um continente em Vénus. Esta terra tinha três mil milhas de comprimento por mil de largura e à volta desta ilha estendia-se o Mar Único que cobria todo o pluvioso planeta.
— Por ali! — o tenente indicou o sul —. Tenho a certeza que há duas Cúpulas Solares nesta direcção.
— Enquanto aqui estiveram, porque é que não construí­ram mais uma centena?
— Actualmente há cento e vinte, não é verdade?
— Cento e vinte e seis, desde o mês passado. Já tentaram, há cerca de um ano, que o Congresso emitisse uma lei para assegurar a construção de vinte novas cúpulas. Mas vocês já conhecem a cantiga. Não se importam nada que alguns homens apodreçam à chuva.
Partiram em direcção ao sul.
O tenente, Simmons e Pickard caminhavam sob a chuva, que caía pesada e docemente. A chuva que se derramava e que tamborilava, não interrompia nem por um minuto a sua queda sobre a terra, o mar, sobre os homens que caminhavam.
Simmons foi o primeiro a vê-la.
— Ei-la!
— O quê?
— A Cúpula Solar!
O tenente limpou a água dos olhos e ergueu a mão para se proteger das bátegas da chuva.
Ao longe via-se um clarão amarelo, na orla da selva, junto ao mar. Era com certeza a Cúpula Solar.
Os homens riam.
— Tinha razão, meu tenente! — Agora, coragem!
— Só de a ver já tenho forças! Vamos! O último a chegar é um burro!
Simmons partiu a correr. Os outros seguiram-no mecanica­mente, sem fôlego, esgotados, mas com compostura.
— Uma grande chávena de café para mim — arfou Sim­mons, radiante. — E uma fornada de pãezinhos com canela! Ah, uma pessoa deitar-se e deixar que o Sol a asse! O parceiro que inventou isto devia receber uma medalha!
Correram mais ràpidamente. O clarão amarelo tornou-se mais vivo.
— Calculo que muitos já ficaram doidos antes de descobri­rem isto. É que dá cabo do juízo. — Simmons arfava as palavras à cadência da corrida. — A chuva! A chuva! Há alguns anos. Encontrei um dos meus companheiros. Na selva. Errando ao acaso. À chuva. — Repetia sem cessar: — Não sei o que fazer para sair da chuva... Não sei... — Sem parar. — Assim. Pobre rapaz.
— Poupe o fôlego! Corriam.
Riam-se. Atingiram a porta da Cúpula, rindo.
Simmons abriu a porta com um empurrão.
— Êh, gente! — gritou ele. — Tragam café e pãezinhos!
Não houve resposta.
Entraram. A Cúpula Solar estava vazia e sombria. Não havia o sol artificial a flutuar no gás sob pressão, no centro do tecto azul. Não havia comida. Fazia frio com» numa cripta. E através de buracos recentemente feitos no tecto a água corria, a chuva penetrava, embebendo os espessos tapetes, escorrendo pelas mesas de vidro. A selva irrompia como espuma por toda a parte, pelas estantes dos livros, nos divãs. A chuva passava pelos buracos e caía sobre o rosto dos três homens.
Pickard começou a rir baixinho.
— Cale-se, Pickard!
— Olhem o que há aqui para nós... nada para comer, nem sol, nem nada! Foram os Venusianos, está-se a ver!
Simmons abanou a cabeça que pingava. A água que escorria dos seus cabelos prateados, das sobrancelhas brancas.
— De vez em quando os Venusianos saem do mar e atacam uma Cúpula Solar. Sabem que destruindo as cúpulas podem destruir-nos.
— As cúpulas não são defendidas?
— Decerto. — Simmons dirigiu-se para um local menos molhado que os outros. — Mas desde há cinco anos que os Venusianos nada tinham tentado. A defesa foi descurada. Devem tê-los apanhado de surpresa.
— Onde estão os corpos?
— Certamente os Venusianos levaram-nos com eles para o mar. Ouvi dizer que têm uma técnica engraçada para afogar as pessoas. A coisa demora cerca de oito horas.
— Já vi que aqui não há comida — disse Pickard, rindo-se.
O tenente franziu o sobrolho e fez um gesto a Simmons indicando o outro. Simmons abanou a cabeça e entrou numa grande divisão contígua à sala central. Na cozinha estavam espalhados pães que se desfaziam e pedaços de carne cobertos com uma película esverdeada. A chuva caía do tecto, por uma imensidade de buracos.
— Isto está lindo! — O tenente olhou para os buracos. — Creio que não os poderemos tapar e instalarmo-nos con­fortavelmente.
— Sem nada que comer, meu tenente? — Simmons cuspiu para o lado.
— O aparelho solar está partido. O melhor será procurar­mos outra cúpula. A que distância está a mais próxima?
— Não muito longe. Se bem me recordo, construíram duas para estes lados e bastante perto uma da outra. Talvez que uma coluna de socorro da outra cúpula pudesse...
— Sem dúvida que já aqui veio há alguns dias e voltou a partir. Dentro de seis meses enviarão uma equipa para reparar a instalação, mas só depois do Congresso autorizar a verba. Não me parece que seja de esperar.
— De acordo. Vamos comer o que resta das nossas rações e iremos à procura da outra cúpula.
Pickard exclamou:
— Se ao menos a chuva não me batesse na cabeça durante alguns minutos... Se ao menos eu me pudesse lembrar o que é não estar chateado... — Apertou as mãos na cabeça. — Lem­bro-me que, quando andava na escola, um estafermo que estava atrás de mim mordiscava-me de cinco em cinco minutos. E fê-lo durante semanas e meses. Tinha os braços perma­nentemente cobertos de nódoas negras. Julguei que ia ficar doido. Um dia perdi a cabeça por ser torturado dessa forma e voltando-me para trás quase que matei aquele animal com um esquadro de desenho. Estive prestes a cortar-lhe a cabeça. E quase lhe furei os olhos antes que me levassem para fora da aula. E não parava de gritar: «Porque é que ele não me deixa em paz? Porque é que ele não me deixa em paz?» — Apertava a cabeça com as mãos trêmulas e contraídas. — Mas que fazer agora? A quem é que eu posso bater na cara? A quem é que hei-de gritar para estar quieto? Este estafermo desta chuva, sem parar, como os beliscões, é a única coisa que ouvimos, tudo o que sentimos!
— Chegaremos à outra cúpula lá para as quatro da tarde. — Cúpula? Olhem para esta! E se todas as cúpulas de
Vénus foram arrasadas ? E se em todos os tectos houver buracos que deixem passar a chuva?
— É necessário correr o risco.
— Já não posso correr mais riscos. Tudo o que desejo é um tecto e paz. Quero que me deixem tranqüilo.
— São somente oito horas de marcha, se aguentar. — Não se preocupe que aguentarei... — E Pickard riu-se, sem os fitar.
— Vamos comer — disse Simmons com os olhos fixos em Pickard.
Puseram-se em marcha, ao longo da costa, sempre em direcção ao Sul. Ao fim de quatro horas tiveram de cortar para o interior a fim de contornar um rio de uma milha de largura e tão rápido que não era navegável. Percorreram seis milhas até um local onde o rio nascia do solo como de uma ferida, borbulhando. Dirigiram-se de novo para o mar.
— Tenho de dormir — exclamou Pickard a certa altura, vacilando. — Há quatro semanas que não durmo. Já tentei mas não consegui. Vou dormir aqui!
O céu tornara-se mais escuro. A noite venusiana tombava. Era tão negra que seria perigoso andar. Simmons e o tenente deitaram-se também.
— Bem — disse o tenente — vamos lá ver se conseguimos. Já o tentámos muitas vezes, mas nunca se sabe... O sono é uma coisa que não se obtém neste clima.
Estenderam-se ao comprido tapando a cabeça para que a água não lhes penetrasse na boca. Fecharam os olhos.
O tenente estremeceu. Não dormia.
Havia coisas a agitarem-se sobre a sua pele. Caíam gotas que juntando-se a outras formavam fios de água que lhe corriam pelo corpo. Entretanto, as plântulas da selva ganha­vam raízes no seu uniforme. Sentia a hera agarrar-se a ele e cobri-lo como uma segunda vestimenta. Sentia as pequenas flores abrirem-se e, depois, murcharem. Isto enquanto que a chuva continuava a tamborilar-lhe no corpo e na cabeça. Na noite luminosa, pois a vegetação fosforecia, podia dis­tinguir agora os contornos dos dois outros homens, quais troncos de árvores abatidos cobertos de uma camada de relva e flores. A chuva batia-lhe no rosto. Cobriu-o com as mãos. A chuva batia-lhe no pescoço. Voltou-se sobre o ventre, na lama, no meio daquela fibrosa vegetação. A chuva batia-lhe nas costas e nas pernas.
Levantou-se bruscamente e começou a sacudir-se e a enxugar-se. Mil mãos apalpavam-no e ele não desejava que lhe tocassem. Não podia suportar estes contactos. Tropeçou e embateu num outro corpo. Reconheceu Simmons de pé sob a chuva cuspindo cogumelos, tossindo, sufocado. Depois Pickard levantou-se, gritou e começou a correr.
— Calma, Pickard, espere um minuto!
— Basta! Basta! — gritava o outro.
Fez fogo seis vezes contra o céu negro. O clarão de cada tiro deixou-lhes ver a acumulação de gotas, suspensas num universo ambriado e imóvel como que surpreendidas pela explosão; milhares de gotinhas, de lágrimas, de gemas, num painel branco. Extinto o clarão, as gotas, que se haviam detido, como que para ser fotografadas, caíram e morderam-nos, qual nuvem, de insectos gélidos e vorazes.
— Basta! Basta! — Pickard!
Mas Pickard, em pé, não se mexia. Quando o tenente voltou a luz da sua lanterna para o rosto molhado de Pickard, viu uns olhos dilatados, uma boca aberta, voltada para cima, de tal forma que a água salpicava a língua, cobria os olhos, espumava nas narinas.
— Pickard!
O outro não respondeu. Continuava na mesma posição, com bolhas de chuva entre os cabelos embranquecidos, com fios de água correndo pelos braços e pelo pescoço.
— Pickard, vamos partir! Siga-nos!
A chuva corria pelas orelhas de Pickard. — Está a ouvir-me? Pickard!
— Deixe-o! — disse Simmons.
— Não podemos partir sem ele.
— E como é que o levamos? — Simmons cuspiu. — Já não pode ser útil, nem a nós nem a ele próprio. Sabe o que ele vai fazer? Vai ficar assim e deixar-se afogar.
— O quê?
— É preciso que o saiba agora. Não conhece o método? Ele ficará ali, com a cabeça levantada e a água entrar-lhe-á pelas narinas e pela boca. Vai respirar a água.
— Não!
— Foi assim que encontraram o general Mendt. Sentado num rochedo, a cabeça para trás, aspirando a chuva. Tinha os pulmões cheios de água.
O tenente voltou de novo a luz para o rosto de Pickard. As narinas emitiam uma espécie de borbulhar aquoso.
— Pickard! — O tenente esbofeteou-o.
— Já nem sente — exclamou Simmons —. Alguns dias sob esta chuva é quanto basta para deixar de se sentir o rosto, as pernas ou as mãos.
O tenente olhou as dele com horror. Já não as sentia.
— Não podemos abandonar Pickard.
— Vai ver qual é a única coisa que podemos fazer.
Simmons disparou.
Pickard caiu no chão molhado.
— Não se mova, tenente! — exclamou Simmons. — Tenho a arma pronta. De pé ou sentado ele ficaria aqui até se afogar. Foi mais rápido assim.
O tenente olhou para o corpo.
— Mas você matou-o!
— Sim, porque ele, tornando-se para nós um empecilho, matar-nos-ia. Já estava louco.
Ao fim de alguns instantes o tenente murmurou:
— Está bem.
Retomaram a marcha sob a chuva.
Estava escuro e o facho das lâmpadas só penetrava alguns metros na água que caía. Uma meia hora depois fizeram alto, esfomeados, esperando pela alvorada; quando ela se ergueu, era cinzenta e a chuva continuava. Retomaram a marcha.
— Enganámo-nos — disse Simmons.
— Não. Ainda falta uma hora...
— Fale mais alto. Não o ouço! — Simmons deteve-se e sor­riu. — Meu Deus! — Apalpou o rosto. — As minhas orelhas! Já não as tenho! A chuva entorpeceu-me, finalmente, até aos ossos!
— Não ouve nada? — perguntou o tenente.
— Hem ? — Os olhos de Simmons estavam desmesurada­mente abertos.
— Nada. Partamos.
— Parece-me que vou esperar aqui. Vá-se embora.
— Não pode fazer isso!
— Não ouço nada. Vamos, continue o caminho. Estou fatigado. Não me parece que a cúpula esteja nesta direcção. E se está, provavelmente tem buracos no tecto, como a outra. Parece-me que me vou sentar aqui.
— Em pé!
— Até depois, meu tenente.
— Não pode desistir, agora.
— Tenho aqui uma arma que me diz para ficar. Estou-me completamente nas tintas. Ainda não endoideci, mas não tarda que isso aconteça. Assim, não posso partir. Quando deixar de o ver, vou-me servir desta arma.
— Simmons!
— Pronunciou o meu nome. Li nos seus lábios.
— Simmons!
— Ouça, isto é uma questão de tempo. Ou bem que morro já ou daqui a algumas horas. Espere até chegar à próxima cúpula e ver a chuva que cai do tecto... Será agradável, não?
O tenente hesitou um instante, depois afastou-se sob a chuva. Voltou-se e chamou uma vez, mas Simmons não se moveu. Segurava a arma na mão e esperava somente que o tenente desaparecesse. Sacudiu a cabeça e fez um gesto como que indicando que prosseguisse.
O tenente nem sequer ouviu a detonação.
Pôs-se a mastigar flores enquanto caminhava. Não eram venenosas, mas também não alimentavam. Um ou dois minu­tos depois vomitava-as.
Tentou fazer um chapéu com folhas. Já o tinha tentado. A chuva dissolvia as folhas na cabeça. Desde que eram colhidas apodreciam e desfaziam-se nos dedos, numa pasta acinzentada.
Mais cinco minutos — dizia para si —. Mais cinco minutos e depois continuo a caminhar penetrando no mar. Não fomos feitos para isto. Nenhum terrestre foi ou será capaz de o suportar. Os teus nervos, os teus nervos!
Continuou a avançar tropeçando na lama e no amálgama vegetal. Chegou a uma pequena colina.
Viu ao longe uma ténue mancha amarela entre a paisagem esverdeada.
A outra cúpula!
Entre as árvores, a grande distância, uma construção arredondada. Ficou durante alguns instantes a olhá-la, cambaleando.
Começou a correr e, depois, foi abrandando. Tinha medo. E se fosse a mesma? A cúpula extinta, sem sol?
Deixou-se cair. Fica aqui! — pensou. Não é a outra. Fica aqui! Não vale a pena! Conforma-te!
Apesar disso, conseguiu erguer-se e atravessar vários cursos de água. A mancha amarela tornou-se brilhante e ele correu de novo. Os pés partiam espelhos, os braços faziam voar milhares de pedras preciosas. j
Deteve-se diante da porta amarela, sobre a qual estava escrito «Cúpula Solar». Levantou a mão entumecida para a tocar. Depois voltou a maçaneta e quase que caiu na sala.
Olhou. Atrás dele, a chuva batia contra a porta. Diante dele, numa mesa baixa, havia um recipiente prateado onde fumegava chocolate e uma toalha repleta de doces. Ao lado, fartas sanduíches de frango, tomates frescos e vegetais. E pre­cisamente à sua frente estava uma felpuda toalha de banho e um recipiente para colocar as roupas molhadas; e do lado direito uma cabina onde raios de calor o podiam secar instan­tâneamente. E, numa cadeira, um uniforme preparado para o recém-chegado, ele ou qualquer outro. Mais longe, havia café quente em recipientes de cobre, um «pick-up» que tocava uma melodia e livros forrados de couro vermelho ou casta­nho. Próximo dos livros, um canapé — um canapé fundo e fofo no qual se poderia estender, seco, sem roupas, para se impregnar dos raios do pequeno sol que dominava a sala.
Tapou os olhos com as mãos. Vira alguns homens dirigi­rem-se para ele, mas nada lhes disse. Esperava, abriu os olhos e olhou. A água de que a sua roupa estava embebida, formava uma poça a seus pés; sentia secar os cabelos, o rosto, o peito, os braços e as pernas.
Fitou o Sol.
Estava suspenso no centro da abóbada um sol amarelo e quente. Não fazia ruído e a divisão estava silenciosa. A porta, fechada. A chuva, uma recordação do seu corpo ofegante. O sol estava lá em cima, no céu azul da sala, quente, escal­dante, amarelo, reconfortante.
O tenente começou a caminhar arrancando as roupas.

Um comentário:

  1. Gosto desse conto. Uma parábola sobre a persistência e com um clima maravilhoso (ora, um trocadilho...) por usar aquela versão de Vênus antiga, que via o planeta como um pântano gigante. Melhor que esse só Carson Napier, de Edgar Rice Burroughs.
    Valeu. Boa vida.

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