segunda-feira, julho 27, 2009

O LADRÃO DE CORPOS (Robert Louis Stevenson)



O ano todo, todas as noites, nós quatro nos sentávamos na pequena sala do George em Debenham — o agente funerário, o proprietário, Fettes e eu. Às vezes havia outros mais; mas ventasse muito ou pouco, chovesse, nevasse ou geasse, cada um de nós quatro estaria plantado em sua devida poltrona. Fettes era um velho escocês bêbado, um homem visivelmente instruído e possuidor de alguns bens, uma vez que vivia no ócio. Ele viera para Debenham anos antes, ainda jovem, e, pela simples continuidade de sua existência, tornara-se um concidadão adotado. Sua capa de chamalote azul constituía uma antigüidade local, como a agulha da torre da igreja. Seu lugar na sala do George, sua ausência na igreja, seus velhos, ignominiosos vícios de embriaguez eram todos coisas sabidas em Debenham. Ele possuía algumas opiniões vagamente radicais e algumas infidelidades passageiras, as quais vez por outra expressava e enfatizava com pancadas titubeantes na mesa. Bebia rum — cinco copos regularmente toda noite; e durante a maior parte da sua visita noturna ao George sentava-se com seu copo na mão direita, em um estado de melancólica saturação alcoólica. Nós o chamávamos de Doutor, pois ele supostamente possuía algum conhecimento especial de medicina e sabia-se que, sob pressão, poderia consertar uma fratura ou um deslocamento; mas, além desses pequenos casos, não tínhamos conhecimento de seu caráter nem de seus antecedentes.
Numa noite escura de inverno — soara as nove um pouco antes de vir juntar-se a nós o proprietário —, havia um homem doente no George, um ilustre proprietário das vizinhanças subitamente tomado de apoplexia a caminho do Parlamento, e chamara-se por telegrama ao ilustríssimo doutor do ilustre proprietário. Era a primeira vez que tal coisa acontecera em Debenham, pois a estrada de ferro fora inaugurada havia pouco tempo, e nossa curiosidade pelo acontecimento aumentou na mesma proporção.
“Ele chegou”, disse o senhorio, após ter enchido e acendido seu cachimbo.
“Ele?”, disse eu. “Quem, o doutor?”
“Ele mesmo”, respondeu nosso anfitrião.
“Como ele se chama?”
“Doutor Macfarlane”, disse o senhorio.
Fettes já estava bem adiantado em seu terceiro tombo, totalmente embriagado ora cabeceando de sono, ora olhando a sua volta em estupor; mas àquela última palavra pareceu acordar e repetiu o nome “Macfarlane” duas vezes, em voz baixa na primeira, mas com súbita emoção na segunda.
“Sim”, disse o senhorio, “é esse seu nome, Doutor Wolfe Macfarlane.”
Fettes ficou imediatamente sóbrio: seus olhos brilharam, sua voz tornou-se clara, alta e firme, sua articulação, enérgica e determinada. Ficamos todos surpresos diante da transformação, como se alguém tivesse retornado do mundo dos mortos.
“Perdoem-me”, disse ele, “acho que não estava prestando muita atenção a sua conversa. Quem é esse Wolfe Macfarlane?”. E então, quando ouviu o senhorio dizê-lo: “Não pode ser, não pode ser”, acrescentou; “mas mesmo assim gostaria muito de encontrá-lo cara a cara”.
“Você o conhece, Doutor?”, perguntou o agente funerário, boquiaberto.
“Deus me livre, não!”, foi a resposta. “E, no entanto, o nome é estranho; dificilmente imaginaríamos dois. Diga-me, senhorio, ele é velho?”
“Bem”, disse o anfitrião, “não é jovem, com certeza, e seus cabelos estão brancos; mas ele parece mais jovem do que você”.
“No entanto, ele é mais velho; anos mais velho. Mas”, com um tapa na mesa, “é o rum que você vê em meu rosto — rum e pecado. Talvez esse homem tenha uma consciência tranqüila e um bom aparelho digestivo. Consciência! Ouçam. Vocês não imaginariam que fui um bom, velho, decente cristão, não é? Mas não, eu não; eu jamais choraminguei. Voltaire poderia ter choramingado, se estivesse em meu lugar; mas o cérebro” — com um piparote em sua careca — “os miolos estavam limpos e ativos, e eu não vi nem fiz deduções”.
“Se você conhece esse doutor”, aventurei-me a observar, após alguns minutos de certa estupefação, “imagino que não partilhe da mesma boa opinião do senhorio”.
Fettes não me deu atenção.
“Sim”, ele disse, com uma determinação súbita, “preciso olhá-lo cara a cara.”
Houve mais uma pausa e então se ouviu fechar uma porta com estrépito no primeiro andar, e depois um passo na escada.
“É o doutor”, exclamou o senhorio. “Fique atento, e você poderá alcançá-lo.”
Eram apenas dois passos da pequena sala à porta da velha taverna George; a ampla escadaria de carvalho descia até quase a rua; havia espaço para um tapete turco e nada mais entre a soleira e o último lance da escada; mas esse pequeno espaço ficava toda noite fortemente iluminado, não apenas pela luz sobre a escada e pela grande lanterna abaixo do letreiro, mas também pela radiância acolhedora da janela do bar. Assim anunciava-se o George radiantemente aos passantes da rua fria. Fettes caminhou resolutamente para aquele ponto e nós, que ficamos atrás, inclinados, observamos os dois homens se encontrarem, nas palavras de um deles, cara a cara. O Dr. Macfarlane era ágil e vigoroso. Seus cabelos brancos destacavam sua fisionomia pálida e plácida, embora enérgica. Estava ricamente vestido com a mais fina das casimiras e o mais branco dos linhos, com uma grande corrente de ouro de relógio e abotoaduras e óculos do mesmo metal precioso. Usava uma gravata larga em grande laço, branca, salpicada de lilás, e carregava no braço uma confortável capa de viagem de pele. Ele indubitavelmente abrira caminho ao longo dos anos imerso — e nela respirava — na riqueza e respeitabilidade; e era um contraste surpreendente ver nosso companheiro beberrão — careca, sujo, espinhento e envolto em sua velha capa de chamalote — defrontar-se com ele ao pé da escadaria.
“Macfarlane!”, disse ele em voz um pouco alta, mais à maneira de um arauto do que a de um amigo.
O ilustre doutor deteve-se abruptamente no quarto degrau, como se a informalidade do tom surpreendesse e chocasse de algum modo sua dignidade.
“Toddy Macfarlane!”, repetiu Fettes.
O londrino quase vacilou. Encarou por uma fração de segundo o homem diante de si, olhou para trás como que temeroso, e então, com um sussurro assustado, “Fettes!”, disse ele, “você!”.
“Sim”, disse o outro, “eu! Pensou que eu também estivesse morto? Não nos livramos tão facilmente de nossos conhecidos”.
“Fale baixo, fale baixo!”, exclamou o doutor. “Fale baixo, fale baixo! Este encontro é tão inesperado... Vejo que você está abatido. De início, mal o reconheci, confesso; mas estou muito feliz... muito feliz em ter esta oportunidade. No momento, não há tempo senão para um breve cumprimento, pois minha carruagem de aluguel está esperando e não posso perder o trem; mas você pode — deixe-me ver — sim, você pode me dar seu endereço e esteja certo de que lhe mandarei notícias. Devemos fazer algo por você, Fettes. Parece que você está mal de vida; mas veremos o que é possível fazer, em nome dos velhos tempos, como cantávamos nas ceias.”
“Dinheiro!”, exclamou Fettes; “Dinheiro de você! O dinheiro que me deu está aonde o atirei, na lama”.
O Dr. Macfarlane expressara-se com alguma superioridade e confiança, mas a energia incomum dessa recusa lançou-o novamente na sua confusão anterior.
Um olhar horrível, feio, emergiu e se apagou de sua fisionomia quase venerável. “Meu caro”, disse ele, “faça como quiser; a última coisa que desejo é ofendê-lo. Não é de meu feitio intrometer-me na vida de ninguém. Deixo-lhe meu endereço, mesmo assim...”
“Não o quero. Não quero saber que teto o abriga”, interrompeu-o o outro. “Ouvi seu nome; temia que fosse você; queria saber se, afinal, existe um Deus; sei agora que não existe nenhum. Vá embora!”
Ele ainda permaneceu no meio do tapete, entre a escada e a soleira; e o grande médico londrino, para fugir, teria de dar um passo para o lado. Era visível sua hesitação diante da idéia dessa humilhação. Não obstante sua palidez, havia um certo brilho perigoso em seus óculos; mas, enquanto ainda imóvel, hesitante, apercebeu-se de que o cocheiro de sua carruagem observava atentamente da rua aquela cena inusitada e ao mesmo tempo, num relance, do nosso pequeno grupo na sala, amontoado no canto do balaústre. A presença de tantas testemunhas convenceu-o imediatamente a escapar. Ele encolheu-se, encostando-se no lambril, e deu um salto, como uma serpente, arremetendo-se para a porta. Mas sua tribulação ainda não chegara a termo, pois exatamente quando ele passava Fettes agarrou-o pelo braço e disse estas palavras num sussurro, porém dolorosamente claras, “Você o viu novamente?”
O ilustre doutor londrino deu um grito agudo, sufocado; empurrou seu oponente para o espaço livre e, com as mãos na cabeça, voou pela porta como um ladrão pego em flagrante. Antes que a algum de nós ocorresse fazer um movimento, a carruagem já sacolejava em direção à estação. A cena passou como um sonho, mas o sonho deixara provas e vestígios de sua passagem. No dia seguinte, o criado encontrou os óculos de ouro quebrados na soleira e naquela mesma noite nos postamos, a respiração em suspenso, ao lado da janela do bar, Fettes ao nosso lado, sóbrio, pálido e com um olhar decidido.
“Deus nos guarde, sr. Fettes!”, disse o senhorio, o primeiro a recobrar seu juízo normal. “O que, por todos os santos, foi aquilo? Aquelas coisas estranhas que você disse?”
Fettes virou-se para nós; olhou sucessivamente para o rosto de cada um de nós. “Cuidado com a língua”, disse ele. “Aquele homem, Macfarlane, é perigoso contrariá-lo; aqueles que já o fizeram arrependeram-se tarde demais.”
E então, terminando quando muito seu terceiro copo, e sequer esperando os outros dois, despediu-se de nós e mergulhou, sob a lanterna do hotel, na noite escura.
Nós três voltamos para nossos lugares na sala, com a grande lareira acesa e quatro candeeiros acesos; e, à medida que recapitulávamos o ocorrido, o fogo de nosso espanto, arrefecido pelo balde d’água fria, logo reavivou-se, incandescente, em curiosidade. Ficamos até tarde; foi a sessão mais longa, segundo sei, no velho George. Cada um, antes de nos despedirmos, tinha uma teoria e estava determinado a prová-la; e nenhum de nós tinha nada mais urgente a fazer neste mundo do que seguir os rastros do passado de nosso companheiro silenciado e descobrir o segredo que ele partilhava com o ilustre doutor londrino. Não é uma grande glória, mas acredito que minhas chances em desenterrar uma história eram melhores do que as de quaisquer outros de meus companheiros do George; e talvez não reste agora mais ninguém vivo para lhes narrar os eventos sórdidos e extraordinários que se seguem.
Em sua juventude, Fettes estudara medicina nas escolas de Edimburgo. Possuía um talento medíocre, o talento que apanha rapidamente o que ouve e prontamente o costura a seu próprio modo. Trabalhava pouco em casa; mas, era educado, atento, e inteligente na presença de seus mestres. Eles logo o distinguiram como um rapaz que ouvia atentamente e tinha uma boa memória; mais do que isso, estranho que me parecesse quando o ouvi pela primeira vez, naqueles dias ele se beneficiava de uma aparência muito agradável. Havia, àquela época, um certo professor extramuros de anatomia, que aqui denominarei pela letra K. Seu nome tornou-se posteriormente muito conhecido. O homem que o portava transitou sob disfarce pelas ruas de Edimburgo enquanto a turba que aplaudia a execução de Burke clamava ruidosamente pelo sangue de seu empregador. Mas o sr. K. estava então no auge de sua fama; desfrutava de uma popularidade devida em parte a seu próprio talento e habilidade, em parte devido à inépcia de seu rival, o professor da universidade. Os estudantes, pelo menos, o admiravam, e Fettes acreditava — assim como os outros — que assentaria as bases do sucesso quando angariasse o favor desse homem de fama meteórica. O sr. K. era um bon vivant tanto quanto um professor talentoso; não tinha menos apreço por uma insinuação astuta do que por um raciocínio rigoroso. Tanto por esta como por aquela habilidade Fettes desfrutava de sua atenção — e a merecia —, e por volta do segundo ano de seu curso ocupava a posição semi-oficial de segundo demonstrador ou sub-assistente em suas aulas.
A esse título, o encargo do auditório e sala de conferências recaía particularmente sobre seus ombros. Era responsável pela limpeza dos recintos e pela conduta dos outros estudantes, e constituía parte de seus deveres providenciar, receber e distribuir os vários cadáveres. Em virtude desta última obrigação — aquela época muito delicada —, o sr. K. o alojara no mesmo beco e, por fim, no próprio edifício das salas de dissecção. Ali, após uma noite de prazeres turbulentos, a mão ainda vacilante, a visão ainda enevoada e confusa, ele seria tirado da cama nas horas sombrias antes da autora invernal pelos sujos e brutais intrusos que supriam a mesa. Ele abriria a porta a esses homens, desde então mal-afamados em toda a região. Ele os ajudaria com sua trágica carga, pagar-lhes-ia seu sórdido preço e ficaria a sós, após sua partida, com os repugnantes restos da humanidade. De tal cenário ele retornaria para roubar uma hora ou duas de cochilo, recuperar-se dos abusos da noitada e preparar-se para os labores do dia.
Poucos rapazes poderiam ter sido mais insensíveis às impressões de uma vida assim, passada entre as insígnias da mortalidade. Seu espírito estava fechado a todas as considerações gerais. Era incapaz de ter interesse no destino e nos percalços de outrem, escravo de seus próprios desejos e ambições ignominiosas. Frio despreocupado e egoísta até o último grau, ele possuía aquela pequena parcela de prudência, alcunhada de moralidade, que afasta um homem da embriaguez inconveniente ou do roubo passível de punição. Além disso, ele ambicionava um certo respeito de seus mestres e condiscípulos e não tinha nenhum desejo de fracassar de modo conspícuo nos aspectos exteriores da vida. Desse modo, encontrou prazer em adquirir alguma distinção em seus estudos e dia após dia prestava irrepreensíveis serviços visíveis a seu empregador, o sr. K. Por seu dia de trabalho, ele recompensava-se com noites de prazer ruidoso e vil; e quando esse equilíbrio era atingido, o órgão que ele chamava de sua consciência declarava-se satisfeito.
O suprimento de cadáveres constituía um problema constante para ele, assim como para seu mestre. Naquela sala de aula grande e buliçosa, a matéria-prima dos anatomistas estava sempre em falta; e o trabalho assim requerido não era de todo desagradável em si, mas ameaçava acarretar conseqüências perigosas para todos os envolvidos. O sr. K. adotava a política de nunca lhe fazer perguntas sobre seus procedimentos naquele negócio. “Eles trazem o traste e nós pagamos o preço”, costumava dizer, demorando-se na aliteração — quid pro quo. E, novamente e de uma forma um tanto profana, “Não faça perguntas”, dizia a seus assistentes, “a bem da consciência”. Não se cogitava que os cadáveres fossem fornecidos pelo crime de assassinato. Houvesse essa idéia sido aventada explicitamente a ele, teria se encolhido de horror; mas a leveza de seu discurso sobre uma questão tão grave era, em si, uma ofensa às boas maneiras e uma tentação para os homens com os quais lidava. Fettes, por exemplo, muitas vezes observava secretamente o singular frescor dos cadáveres. Repetidas vezes haviam-lhe causado forte impressão os rostos abjetos, abomináveis, dos rufiões que lhe chegavam antes do amanhecer; e ele, ponderando tudo muito bem intimamente, talvez atribuísse um significado demasiado imoral e categórico às opiniões levianas de seu mestre. Em suma, dividia seu dever em três partes: receber o que lhe era trazido, pagar seu preço e fazer vista grossa a quaisquer indícios de crime.
Numa manhã de novembro, essa política do silêncio foi decididamente posta à prova. Ele ficara acordado a noite toda, com uma torturante dor-de-dente — andando em seu quarto como uma fera enjaulada ou atirando-se furioso em sua cama — e caíra por fim naquele profundo, irrequieto estado de dormência que muito freqüentemente se segue a uma noite de dor, quando foi acordado pela terceira ou quarta repetição enraivecida do sinal combinado. A luz do luar era tênue, mas clara; fazia um frio cortante, ventava e geava; a cidade ainda não acordara, mas uma vaga agitação já prenunciava os ruídos e a azáfama do dia. As figuras infames haviam chegado mais tarde do que o costume e pareciam mais ansiosas por partir do que habitualmente. Fettes, zonzo de sono, iluminou seu caminho até a sala superior. Ouviu seus resmungos irlandeses como que através de um sonho; e, quando despejaram do saco sua deplorável mercadoria, ele se inclinou sonolentamente, o ombro apoiado na parede; precisou sacudir-se para encontrar o dinheiro e pagar-lhes. Quando o fez, seus olhos pousaram no rosto inerte. Assustou-se; deu dois passos mais perto, com o candeeiro levantado.
“Deus Todo-Poderoso!”, gritou. “É Jane Galbraith!”
Os homens nada responderam, mas esgueiraram-se para mais perto da porta.
“Eu a conheço, estou dizendo”, continuou, “estava viva e bem disposta ontem. É impossível que esteja morta; é impossível que vocês tenham conseguido esse corpo de forma honesta”.
“Garanto, senhor, que está completamente errado”, disse um dos homens.
Mas o outro olhou sombriamente Fettes nos olhos e exigiu o dinheiro imediatamente.
Era impossível ignorar a ameaça ou exagerar o perigo. O ânimo do rapaz cedeu. Balbuciou algumas desculpas, contou o dinheiro e olhou seus odiosos visitantes partirem. Tão logo o fizeram ele correu a confirmar suas dúvidas. Por uma dezena de marcas inquestionáveis identificou a moça a quem dirigira gracejos no dia anterior. Viu, horrorizado, marcas em seu corpo que poderiam muito bem ser produto de violência. Em pânico, refugiou-se em seu quarto. Lá, refletiu longamente sobre a descoberta; ponderou sobriamente o teor das instruções do sr. K. e o perigo que correria ao intrometer-se em um negócio assim tão sério e, por fim, perplexo e aflito, decidiu aguardar a opinião de seu superior imediato, o assistente de classe.
Este era um jovem doutor, Wolfe Macfarlane, um predileto dentre todos os irrequietos estudantes, extremamente esperto, corrupto e inescrupuloso. Havia viajado e estudado no exterior. Seus modos eram agradáveis e um tanto petulantes. Era entendido em teatro, habilidoso no gelo ou no gramado com patins ou bastão de criquete; vestia-se com elegante ousadia e, como o toque final a coroar sua glória, possuía um trole e um vigoroso cavalo trotador. Entre ele e Fettes havia uma relação de intimidade; na verdade, suas posições correspondentes exigiam algum companheirismo, e quando os cadáveres escasseavam o par se dirigia até bem longe no campo, no trole de Macfarlane, visitava e violava algum cemitério afastado e retornava antes do pôr-do-sol com seu butim à porta da sala de dissecção.
Naquela manhã em particular, Macfarlane chegou um pouco mais cedo do que de costume. Fettes ouviu-o e foi ao seu encontro na escadaria, contou-lhe sua história e mostrou-lhe o motivo de seu alarme. Macfarlane examinou as marcas do corpo.
“Sim”, disse ele com um aceno, “parece suspeito.”
“Então, o que devo fazer?”, perguntou Fettes.
“Fazer?”, perguntou o outro. “Você quer fazer alguma coisa? Todo silêncio é pouco, diria eu.”
“Alguém mais poderia reconhecê-la”, objetou Fettes. “Ela era bem conhecida.”
“Vamos torcer para que isso não aconteça”, disse Macfarlane, “e se isso acontecer — bem, você não viu, não é? E pronto. O fato é que isso foi longe demais. Revolva a lama e porá K. em um problema danado; você mesmo vai se ver em meio a um escândalo. E eu também, se isso lhe acontecer. Eu gostaria de saber como ficaríamos cada um de nós, ou o que iríamos dizer em nossa defesa em qualquer banco de testemunha. De minha parte, você sabe que tenho só uma certeza: que virtualmente todos os nossos cadáveres foram assassinados.”
“Macfarlane!”, exclamou Fettes.
“Ora, vamos!”, disse com desprezo o outro. “Como se você já não tivesse suspeitado disso!”
“Suspeitar é uma coisa...”
“E provar é outra. Sim, eu sei; e estou tão consternado quanto você por isso ter acontecido aqui”, cutucando o corpo com sua bengala. “A melhor coisa a fazer é não reconhecê-lo; e”, acrescentou friamente, “eu não o reconheço. Se você quiser, faça-o; e, posso acrescentar, imagino que é isso que K. esperaria de nossa parte. A pergunta é: por que ele nos escolheu para seus assistentes? Respondo: porque ele não queria velhas comadres faladeiras.”
Foi esse tom, dentre todos os outros, que abalou o espírito de um rapaz como Fettes. Ele concordou em imitar Macfarlane. O corpo da infeliz jovem foi devidamente dissecado e ninguém disse ou pareceu reconhecê-la.
Uma tarde, quando as horas de trabalho haviam se encerrado, Fettes passou por uma taverna popular e encontrou Macfarlane sentado com um estranho. Era um homem pequeno, muito pálido e moreno, com olhos de azeviche. O talhe de suas feições prometia inteligência e refinamento, os quais pouco se cumpriam em suas maneiras, pois, a uma proximidade maior, Fettes verificou ser ele rude, vulgar e tolo. Ele exercia, todavia, um controle extraordinário sobre Macfarlane; dava-lhe ordens como o Grande Samurai; exaltava-se à mais insignificante discussão ou atraso e comentava grosseiramente a servilidade com a qual era obedecido. Essa pessoa extremamente repulsiva tomou-se imediatamente de simpatia por Fettes, saturou-o de bebidas e distinguiu-o com confidencias singulares sobre sua carreira passada. Se uma décima parte do que confessava fosse verdade, tratava-se de um velhaco extremamente repugnante, e a vaidade do rapaz foi deliciosamente lisonjeada pela atenção de um homem tão experiente.
“Eu sou um mau sujeito, mesmo”, observava o estranho, “mas Macfarlane é o tal — Toddy Macfarlane é como o chamo. Toddy, peça um outro copo para seu amigo”. Ou então, “Toddy, vá já fechar a porta”. “Toddy me odeia”, dizia ele novamente. “Oh!, sim, Toddy, você me odeia!”
“Não me chame de novo por esse maldito nome”, resmungava Macfarlane.
“Ouça-o! Você já viu os jovens brincarem com facas? Ele gostaria de fazer aquilo no meu corpo todo”, observava o estranho.
“Nós, médicos, fazemos melhor do que isso”, dizia Fettes. “Quando não gostamos de um de nossos amigos mortos, nós o dissecamos.”
Macfarlane levantou os olhos, repentinamente, como se esse gracejo lhe fosse estranho.
A tarde escoou-se. Gray, pois esse era o nome do estranho, convidou Fettes para acompanhá-los ao jantar, pediu um banquete tão suntuoso que provocou espanto na taverna e quando tudo terminou ordenou a Macfarlane que pagasse a conta. Era tarde quando se separaram; Gray estava totalmente bêbado. Macfarlane, a quem a fúria tornara sóbrio, ruminava a soma de dinheiro que fora forçado a desperdiçar e o desprezo que fora obrigado a engolir. Fettes, com os muitos tragos cantando na cabeça retornou a casa com passos vacilantes e um espírito totalmente em suspenso. No dia seguinte, Macfarlane não compareceu à aula, e Fettes sorriu intimamente, imaginando que ainda estivesse escoltando o intolerável Gray de taverna a taverna. Logo que soou a hora da liberdade, ele saiu à procura dos seus companheiros da noite anterior. Não os encontrou, todavia, em lugar algum; e então retornou cedo a seus aposentos, recolheu-se cedo e dormiu o sono dos justos.
Às quatro da madrugada, ele foi despertado pelo bem conhecido sinal. Ao descer até a porta, encheu-se de espanto ao encontrar Macfarlane com sua carruagem de aluguel e nesta um daqueles grandes e terríveis pacotes que ele conhecia tão bem.
“O quê?”, exclamou. “Você saiu sozinho? Como conseguiu?”
Mas Macfarlane ordenou-lhe rudemente que se calasse e se pusesse a trabalhar. Depois de terem carregado o corpo para cima e colocado-o sobre a mesa, Macfarlane fez um movimento como se estivesse indo embora. Então se deteve e pareceu hesitar; e em seguida disse: “É melhor você dar uma olhada no rosto”, num tom algo constrangido. “É melhor”, repetiu, enquanto Fettes o encarava espantado.
“Mas onde, como e quando você o conseguiu?”, exclamou o outro.
“Olhe o rosto”, foi a única resposta.
As pernas de Fettes bambearam; estranhas dúvidas o assaltaram. Seus olhos foram do jovem doutor para o corpo e novamente para o doutor. Por fim, num impulso fez como o ordenado. O que viu não foi de todo inesperado, e contudo o choque foi tremendo. Ver, imóvel na rigidez da morte e despido naquele leito grosseiro de pano de saco o homem que ele deixara bem vestido e cheio de comida e de pecado à porta de uma taverna despertou, até mesmo no estouvado Fettes, alguns dos acicates da consciência. Era um cras tibi que ressoou em sua alma, que dois dos que ele conhecera acabassem deitados sobre aquelas mesas geladas. No entanto, esses pensamentos eram apenas secundários. Sua principal preocupação era com Wolfe. Despreparado para um desafio de tal monta, ele não sabia como encarar seu companheiro. Não ousava olhar em seus olhos, nem controlava suas palavras ou sua voz.
Foi o próprio Macfarlane quem fez o primeiro movimento. Aproximou-se silenciosamente de suas costas e colocou a mão — suave, mas firmemente — no ombro do outro.
“Richardson”, disse ele, “pode ficar com a cabeça.”
Ora, Richardson era um estudante que ansiara longamente por dissecar aquela parte do cadáver humano. Não houve resposta, e o assassino prosseguiu: “A propósito de negócios, você deve me pagar; suas contas, como sabe, devem ser exatas”.
Fettes recompôs-se e disse, com uma voz que era apenas uma sombra da sua: “Pagar-lhe!”, exclamou. “Pagar-lhe pelo quê?”
“Ora, é claro que você precisa fazê-lo. É claro, em toda prestação de contas é necessário”, replicou o outro. “Não ouso dá-lo em troca de nada, você não ousaria recebê-lo em troca de nada; seria comprometedor para nós dois. Este caso é como o de Jane Galbraith. Quanto mais erradas as coisas, mais devemos agir como se estivesse tudo certo. Onde o velho K. guarda seu dinheiro?”
“Lá”, respondeu Fettes asperamente, apontando para um guarda-louça no canto.
“Dê-me a chave, então”, disse o outro, calmamente, estendendo a mão. Houve um instante de hesitação, e a sorte foi lançada. Macfarlane não pôde reprimir um repelão nervoso, a marca infinitesimal de um enorme alívio, ao sentir a chave entre os dedos. Abriu o guarda-louça, tirou pena e tinta e um caderno que ficava em um compartimento e separou das reservas em uma gaveta uma soma adequada à transação.
“Agora, olhe aqui”, disse ele, “este é o pagamento feito — primeira prova de sua boa-fé: primeiro passo para sua segurança. Você deve segurá-lo por um instante. Registre o pagamento em seu livro e então, no que lhe diz respeito, pode desafiar o diabo.”
Os poucos segundos que se seguiram foram para Fettes uma agonia; mas ao ponderar seus terrores, venceram os mais imediatos. Qualquer dificuldade futura parecia quase bem-vinda se pudesse evitar uma briga atual com Macfarlane. Ele pousou a vela que estivera carregando todo o tempo e, com mão firme, deu entrada da data, natureza e montante da transação.
“E agora”, disse Macfarlane, “é muito justo que você embolse o lucro. Eu já embolsei minha quota. A propósito, quando um homem experiente dá de cara com uma pouco de sorte, alguns shillings extras entram em seu bolso — constrange-me falar disso, mas há uma regra de conduta para esse caso. Não mencioná-lo, não comprar livros de estudo caros, não pagar velhas dívidas; tomar emprestado, não emprestar”.
“Macfarlane”, começou Fettes, ainda com certa aspereza, “pus uma corda em meu pescoço para lhe fazer um favor”.
“Para me fazer um favor?”, gritou Wolfe. “Ora, vamos! Você fez, no máximo, a meu ver, o que claramente tinha de fazer em defesa própria. Suponha-se que eu tivesse me metido em encrenca, como você ficaria? Este segundo pequeno detalhe decorre claramente do primeiro. O sr. Gray é a continuação da senhorita Galbraith. Você não pode começar e depois parar. Se você começa, deve continuar a começar; essa é a verdade. Não há descanso para os maus.”
Uma horrível sensação de negrume e de traição do destino tomou conta da alma do infeliz estudante.
“Meu Deus!”, gritou ele, “mas o que foi que fiz? E quando comecei? Tornar-me um assistente de classe — em nome da razão, o que há de errado nisso? A posição demandava o serviço; o serviço poderia tê-lo demandado. Teria ele estado onde eu estou agora?”
“Meu caro amigo”, disse Macfarlane, “que infantil você é! Que mal lhe aconteceu? Que mal pode lhe acontecer se mantiver a boca fechada? Ora, homem, você sabe como é a vida? Há dois grupos de pessoas — os leões e as ovelhas. Se você é uma ovelha, será deitado numa destas mesas, como Gray ou Jane Galbraith; se for um leão, viverá e terá um cavalo, como eu, como o sr. K, como todos que possuem algum talento ou coragem. Você vacilou no primeiro. Mas olhe para K.! Meu caro, você é esperto, tem peito. Gosto de você, e K. gosta de você. Você nasceu para liderar a matilha; e vou lhe dizer, pela minha honra e minha experiência de vida, daqui a três dias você vai rir de todos esses espantalhos como um colegial de uma farsa”.
E com isso Macfarlane se despediu e sumiu em seu trole pelo beco, encoberto pela escuridão, antes do raiar do dia. Fettes ficou então sozinho com seus remorsos. Ele deu-se conta da desgraça a que se expusera. Ele deu-se conta, com indizível desalento, que não havia limites para suas fraquezas e que, de concessão em concessão, acabara árbitro do destino de Macfarlane a seu cúmplice pago e desarmado. Ele teria dado o mundo para ter sido um pouco mais corajoso na hora, mas não lhe ocorreu que poderia ainda ser corajoso. O segredo de Jane Galbraith e o maldito registro no diário fechava sua boca.
Passaram-se as horas; os estudantes começaram a chegar; os membros do infeliz Gray foram distribuídos para um e outro e recebidos sem comentários. Richardson ficou feliz com a cabeça; e antes que soasse a hora de libertação Fettes tremia de exaltação ao perceber quanto já haviam caminhado em direção à segurança.
Durante dois dias ele continuou a observar, com alegria crescente, o terrível processo de dissimulação.
No terceiro dia, Macfarlane apareceu. Havia estado doente, disse; mas compensou o tempo perdido pela energia com a qual instruiu os estudantes. A Richardson em particular, ele ofereceu grande assistência e conselhos, e esse estudante, estimulado pelos elogios do demonstrador, ardeu em esperanças ambiciosas e viu a medalha já a seu alcance.
Antes que a semana terminasse, a profecia de Macfarlane havia se cumprido. Fettes superara seus temores e esquecera sua vileza. Começou a gabar-se de sua coragem e em sua mente costurara sua história de tal modo que podia recordar esses eventos com um orgulho malsão. Seu cúmplice, ele pouco o via. Encontravam-se, é claro, nas atividades da aula; recebiam juntos as ordens de K. Às vezes trocavam algumas palavras em particular, e a atitude de Macfarlane foi sempre particularmente gentil e jovial. Mas estava claro que evitava qualquer referência ao seu segredo comum: e até mesmo quando Fettes lhe sussurrava que partilhava da sorte dos leões e repudiava as ovelhas, ele, com um sorriso, apenas fazia um gesto para silenciá-lo.
Por fim, surgiu uma ocasião que uniu mais uma vez o par. O sr. K. estava novamente precisando de cadáveres; os alunos estavam inquietos e constituía parte das pretensões desse professor estar sempre bem abastecido. Nesse momento chegaram notícias de um enterro no cemitério rústico de Glencorse. O tempo poucas transformações trouxe a esse lugar. Ele ficava então, como agora, em uma encruzilhada, longe de habitações humanas e mergulhado na densa folhagem de seis cedros. Os balidos das ovelhas nas colinas adjacentes, os riachos em ambos os lados, um deles murmurando entre seixos, o outro gotejando furtivamente de poça em poça, o assobiar do vento nos imensos carvalhos floridos e, uma vez a cada sete dias, o soar do sino e os velhos cânticos do chantre eram os únicos sons a perturbar o silêncio em volta da igreja rural. O Homem da Ressurreição — esse o nome na época — não seria impedido pelos sentimentos da piedade consuetudinária. Constituía parte de seu negócio desprezar e profanar os pergaminhos e trombetas de velhas tumbas, os caminhos batidos pelos pés de devotos e pranteadores, e as oferendas e as inscrições de desolados afetos. Para as cercanias rústicas, onde o amor é extraordinariamente tenaz e onde alguns laços de sangue ou companheirismo unem toda a sociedade de uma paróquia, o ladrão de corpos, longe de ser repelido por um respeito natural, era atraído pela facilidade de segurança na tarefa. Ao corpo que havia sido deitado na terra, em feliz expectativa de um despertar muito diferente, sobreveio aquela ressurreição apressada, à luz de velas, envolta em terror da pá e da enxada. O caixão foi aberto, as mortalhas rasgadas e os restos melancólicos, envoltos em pano de aniagem, depois de sacudidos durante horas em atalhos escuros, foram por fim expostos às mais indizíveis injúrias diante de uma classe de meninos boquiabertos.
Um pouco como dois abutres caem sobre uma ovelha moribunda, Fettes e Macfarlane caíram sobre um túmulo naquele lugar de descanso verdejante e tranqüilo. A esposa de um fazendeiro, uma mulher que vivera durante sessenta anos e fora conhecida somente por sua boa manteiga e uma conversa cristã, foi arrancada de sua tumba à meia-noite e carregada, morta e desnuda, para aquela cidade distante que ela sempre honrara com suas vestes domingueiras; seu lugar entre a família foi esvaziado até a dissolução de todas as coisas no dia do Juízo Final; seus membros inocentes e quase veneráveis foram expostos àquela curiosidade extrema do anatomista.
Numa tarde já avançada, o par se pôs, bem encobertos por capas e providos de uma enorme garrafa. Chovia ininterruptamente — uma chuva fria, densa, abundante. Vez por outra soprava uma rajada de vento, mas os aguaceiros a detinham. Apesar da garrafa, foi triste e silencioso o percurso de carruagem até Penicuik, onde eles deveriam chegar à noite. Pararam uma vez, para esconder suas ferramentas em uma moita densa, não distante do cemitério, e uma vez no Fisher’s Tryst, para fazer um brinde diante da lareira da cozinha e alternar seus goles de uísque com um copo de cerveja. Quando chegaram ao fim de sua jornada, o trole foi abrigado, o cavalo alimentado e cuidado, e os dois doutores, em uma saleta retirada, sentaram-se para fazer seu lauto jantar, regado do melhor vinho que a casa podia fornecer. As luzes, o fogo, a chuva a bater na janela, o frio, o absurdo trabalho que os esperava, acrescentaram sabor à fruição da refeição. A cada copo crescia sua cordialidade. Logo Macfarlane passou uma pequena pilha de ouro a seu companheiro.
“Uma homenagem”, disse ele. “Entre amigos, esses pequenos adianta-mentos de m... deveriam fluir como fogo de cachimbo.”
Fettes embolsou o dinheiro e aplaudiu entusiasticamente o pensamento. “Você é um filósofo”, exclamou. “Eu era um asno até conhecê-lo. Você e K., entre vocês, Aleluia! Mas vocês farão de mim um homem.”
“É claro que o faremos”, aplaudiu Macfarlane. “Um homem? C’os diabos, foi preciso um homem para me dar cobertura outro dia. Há alguns covardões barulhentos, quarentões, que teriam vomitado diante da maldita coisa; mas você não: você manteve a cabeça fria. Eu o observei.”
“Bem, e por que não?”, Fettes assim se vangloriou. “Não era da minha conta. Nada havia a ganhar por um lado, senão perturbação, e, por outro, eu poderia contar com sua gratidão, não é mesmo?” E bateu em seu bolso, fazendo tilintar as peças de ouro.
Macfarlane, por algum motivo, sentiu um certo alarme a essas palavras desagradáveis. É possível que tenha lamentado ter ensinado tão bem a esse jovem companheiro, mas não houve tempo para retrucar, pois o outro ruidosamente continuou em sua veia jactanciosa:
“O segredo é não ter medo. Agora, cá entre nós, não quero ser enforcado — isso é claro; mas, por toda hipocrisia, Macfarlane, nasci com um menosprezo. Inferno, Deus, Diabo, certo, errado, pecado, crime e toda a galeria de curiosidades — tudo isso pode aterrorizar meninos, mas homens do mundo, como você e eu, têm por eles apenas desprezo. A memória de Gray!”
A essa altura, a hora já ia adiantada. O trole, segundo as instruções, foi trazido à porta com ambas as lanternas a reluzir, e os dois jovens tiveram de pagar sua conta e pôr-se à estrada. Eles comunicaram que seu destino era Peebles e se dirigiram para aqueles lados, até deixar para trás as últimas casas da cidade; então, apagando as lanternas, retornaram em seu caminho e tomaram um atalho em direção a Glencorse. O silêncio só era quebrado por sua própria passagem e o ruído incessante do aguaceiro. Estava escuro como breu; aqui e ali uma cancela ou pedra brancas no muro guiavam-nos pelo caminho estreito através da noite; mas na maior parte do tempo era a passos lentos e quase às apalpadelas que abriam caminho em meio àquelas ressonantes trevas até seu destino soturno e ermo. Nas densas florestas que atravessam as cercanias do cemitério, desapareceram as últimas réstias de luz e foi preciso acender um fósforo e iluminar novamente uma das lanternas do trole. Assim, sob as árvores gotejantes e envoltos em grandes e semoventes sombras, chegaram ao palco de seus iníquos labores.
Eles eram bastante experientes nessas questões e vigorosos no manejo da enxada; e mal haviam se passado vinte minutos em sua tarefa quando foram recompensados por surdo ranger na tampa do caixão. No mesmo instante, Macfarlane, machucando a mão numa pedra, lançou-a descuidadamente sobre sua cabeça. A tumba, na qual eles agora estavam afundados quase até os ombros, ficava perto da beirada do plano do cemitério; e a lanterna do trole, para melhor iluminar seus trabalhos, fora escorada contra uma árvore e à borda da margem íngreme que descia até o riacho. O acaso mirara certeiro com a pedra. Ouviu-se então um ruído de vidro quebrado; a noite caiu sobre eles; sons alternadamente surdos e estridentes anunciaram o ricochetear da lanterna ladeira abaixo e sua aleatória colisão com as árvores. Uma ou duas pedras, que haviam sido deslocadas pela primeira na descida, pipocaram atrás dela até as profundezas do vale; e então o silêncio, como a noite, retomou seu domínio; e eles podiam aguçar seus ouvidos ao máximo que absolutamente nada se ouvia exceto a chuva, ora na direção do vento, ora caindo imperturbavelmente sobre milhas de campo aberto.
Eles estavam tão perto do fim de sua entediante tarefa que julgaram ser melhor completá-la na escuridão. O caixão foi exumado e forçado; o corpo enfiado no saco gotejante e carregado entre eles até o trole; um subiu para colocá-lo no lugar e outro, tomando o cavalo pela boca, arrastou-se ao longo do muro e da moita até que alcançassem a estrada mais larga pelo Fisher’s Tryst. Ali havia um brilho difuso que eles aclamaram como a luz do dia; em direção a ela empurraram o cavalo a bom passo e começaram a ranger alegremente em direção à cidade.
Ambos haviam se ensopado até os ossos durante o cumprimento de sua tarefa e agora, com o trole sacolejando entre os sulcos profundos da trilha, a coisa que fora escorada entre eles caía ora sobre um, ora sobre outro. A cada repetição do horrendo contacto cada um deles instintivamente o repelia com maior rapidez; e, por natural que fosse, isso começou a dar nos nervos dos companheiros. Macfarlane fez alguns comentários desairosos sobre a esposa do fazendeiro, mas eles soavam insinceros e foram recebidos em silêncio. Sem embargo, sua carga abominável pulava de um lado para o outro; e ora a cabeça caía, como que a confidenciar, sobre seus ombros, ora o saco encharcado batia geladamente em seus rostos. Um frio enregelante começou a tomar conta da alma de Fettes. Ele observou atentamente o fardo e ele parecia um tanto maior do que de início. Em todo o campo e em todas as distâncias, os cães de fazendas acompanhavam sua passagem com lamentações lúgubres; e seu espírito foi tomado de uma sensação crescente de que algum milagre extraordinário se realizara, de que alguma mudança inominável se operara no corpo inerte e que era por medo de seu fardo terrível que os cães estavam uivando.
“Pelo amor de Deus”, disse ele, fazendo um grande esforço para conseguir falar, “pelo amor de Deus, vamos acender uma vela!”
Aparentemente Macfarlane tivera a mesma sensação; pois, embora não respondesse, deteve o cavalo, passou as rédeas a seu companheiro, desceu e acendeu a lanterna que restara. A essa altura, eles não tinham alcançado senão a encruzilhada para Auchendinny. A chuva ainda precipitava-se, como se o dilúvio retornasse, e não foi fácil acender a luz nesse mundo de água e escuridão. Quando por fim a última chama azul vacilante fora transferida ao pavio e começou a se expandir e iluminar e lançou um amplo círculo de brilho enevoado em volta do trole, tornou-se possível aos dois jovens ver um ao outro e à coisa que traziam consigo. A chuva moldara o embrulho grosseiro, revelando os contornos do corpo envolto; a cabeça estava separada do tronco de ombros largamente modelados; algo ao mesmo tempo espectral e humano emanava do terrível companheiro de sua viagem.
Durante algum tempo Macfarlane ficou imóvel, segurando a lâmpada. Um pavor inominável o dominava, como um lençol branco, ao contemplar o corpo e fez com que a pele do rosto de Fettes se esticasse, esbranquiçada; e um medo que era quase sem causa, um horror do que não poderia ser, assomou a seu cérebro Após uns instantes ele tentou falar. Mas seu companheiro se adiantou.
“Não é uma mulher”, disse Macfarlane, com voz surda.
“Era uma mulher quando a colocamos dentro daí”, sussurrou Fettes.
“Levante essa lâmpada,” disse o outro. “Preciso ver seu rosto.”
E enquanto Fettes pegava a lâmpada seu companheiro desatou as amarrações do saco e puxou para baixo o envoltório da cabeça. A lanterna iluminou com luz clara as feições enegrecidas, bem moldadas e bochechas bem barbeadas de uma fisionomia muito familiar, freqüentemente contempladas nos sonhos daqueles dois jovens. Um grito descontrolado rasgou a noite; cada um deles deu um salto de seu lado na estrada; a lâmpada caiu, quebrou e apagou-se; e o cavalo, aterrorizado por essa agitação incomum, deu um salto e partiu em galope em direção a Edimburgo, levando consigo, como único ocupante do trole, o corpo do morto e há muito dissecado Gray.

2 comentários:

  1. a historia se passa em tres locais
    mais quais sao eles?

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  2. Mario Tadeu Sarokaabril 20, 2017 12:05 PM

    Adorei este conto e tantos outros,bem seus livros,um grande escritor da língua linglesa.

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